Gadamer (VM): opinião do outro

Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse histórico de Dilthey pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em (184) algo. Já a linguagem mostra que o “sobre quê” e o “em quê” não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do “sobre quê” e do “em quê”, isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
No entanto, examinando-o mais de perto, reconhecemos que também as opiniões não podem ser entendidas de maneira arbitrária. Da mesma forma que não é possível manter muito tempo uma compreensão incorreta de um hábito lingüístico, sem que se destrua o sentido do todo, tampouco se podem manter, às cegas, as próprias opiniões prévias sobre as coisas, quando se compreende a opinião de outro. Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do texto. Mas essa abertura já inclui sempre que se ponha a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas. Claro que as opiniões representam uma infinidade de possibilidades mutáveis (em comparação com a univocidade de uma linguagem ou de um vocabulário), mas dentro dessa multiplicidade do opinável, isto é, daquilo em que um leitor pode encontrar sentido e, enquanto tal pode esperar, nem tudo é possível, e quem não ouve direito o que o outro está dizendo, realmente, acabará por não conseguir integrar o mal-entendido em suas próprias e variadas expectativas de sentido. Por isso também aqui existe um padrão. A tarefa hermenêutica se converte por si mesma num questionamento pautado na coisa, e já se encontra sempre determinada por este. Com isso o empreendimento hermenêutico ganha um solo firme sob seus pés. Aquele que quer compreender não pode se entregar, já desde o início, à casualidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e conseqüentemente possível a opinião do texto — até que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em princípio, disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem “neutralidade” com (274) relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Também aqui vemos confirmado que compreender significa, primariamente, sentir-se entendido na coisa, e somente secundariamente destacar e compreender a opinião do outro como tal. Assim, a primeira de todas as condições hermenêuticas é a pré-compreensão que surge do ter de se haver com a coisa em questão. A partir daí determina-se o que pode ser (300) realizado como sentido unitário, e, com isso, a aplicação da concepção prévia da perfeição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Essa exigência fundamental deve ser pensada como a radicalização de um procedimento que, na verdade, estamos constantemente empregando. Aqui não cabe a restrição, segundo a qual ao ouvir alguém ou fazer uma leitura não podemos ter nenhuma opinião prévia em relação ao conteúdo, devendo esquecer todas as opiniões próprias. Ao contrário, quando se abre espaço para a opinião do outro ou do texto, isso sempre já pressupõe a relação dessa opinião com o conjunto das opiniões próprias e vice-versa. É verdade que as opiniões representam a movimentação de uma multiplicidade de possibilidades. Dentro dessa multiplicidade do passível de opinião, isto é, dentro daquilo que um leitor pode encontrar e esperar encontrar de significativo, nem tudo é possível, e todo aquele que não leva em conta o que o outro realmente diz acabará por não poder integrá-lo à própria expectativa múltipla de sentido. Dessa forma, há aqui também um critério. A tarefa hermenêutica transforma-se assim, espontaneamente, num questionamento voltado para as coisas elas mesmas que sempre a codetermina. Com isso, a empresa hermenêutica alcança uma base sólida. Quem quiser compreender não pode de antemão abandonar-se cegamente à casualidade das próprias opiniões, para em conseqüência e de maneira cada vez mais obstinada não dar ouvidos à opinião do texto, até que esta opinião não mais se deixe ouvir, impedindo a compreensão presumida. Quem quiser compreender um texto está, ao contrário, disposto a deixar que ele diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve ser de antemão receptiva à alteridade do texto. Essa receptividade não pressupõe, no (61) entanto, uma “neutralidade” quanto à coisa, nem um anulamento de si mesmo, incluindo a apropriação seletiva das próprias opiniões e preconceitos. Há que se ter consciência dos próprios pressupostos a fim de que o texto se apresente a si mesmo em sua alteridade, de modo a possibilitar o exercício de sua verdade objetiva contra a opinião própria. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
A concepção prévia da completude, que guia toda nossa compreensão, mostra-se ela mesma cada vez determinada por um conteúdo. Não está pressuposta apenas uma unidade de sentido imanente, que direciona o leitor, também o entendimento do leitor está sendo constantemente guiado por expectativas de sentido transcendentes, que brotam da relação com a verdade do que se tem em mente. Quem recebe uma carta compreende suas notícias, vendo imediatamente as coisas como as viu o remetente, ou seja, considera verdadeiro o que o outro escreveu, sem procurar, por exemplo, compreender a opinião do remetente sobre o assunto. Assim também nós compreendemos os textos transmitidos a partir de expectativas de sentido, extraídas de nossa própria relação para com a coisa. E assim como acreditamos nas notícias transmitidas por um repórter, porque ele esteve no local ou porque ele está mais a par do assunto, também frente a um texto que nos é transmitido, estamos fundamentalmente abertos à possibilidade de que ele está melhor informado do que a nossa opinião prévia o pretenderia. É só com o fracasso da tentativa de tomar por verdadeiro o que é dito que surge a pretensão de “compreender” — psicológica ou historicamente — o texto como a opinião de um outro. O preconceito da completude implica portanto não só que um texto deva expressar plenamente sua opinião, como também que aquilo que diz é a verdade completa. Compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal. A primeira de todas as condições hermenêuticas permanece sendo, assim, a compreensão da coisa, o ter de haver-se com a mesma coisa. A partir disto, determina-se o que se pode realizar como sentido unitário e com isso o emprego da concepção prévia da completude. Assim completa-se o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico pela comunhão de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica deve partir do fato de que quem quer compreender está ligado à coisa que vem à fala na tradição, mantendo ou adquirindo um vínculo com a tradição a partir de onde fala o texto transmitido. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar ligada a esta coisa, nos moldes de uma unanimidade inquestionável e óbvia, como no caso da continuidade ininterrupta de uma tradição. Dá-se realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, sobre a qual baseia-se a tarefa da hermenêutica. Esta não deve, porém, ser compreendida psicologicamente como fez Schleiermacher, como o espaço que abriga o mistério da individualidade. Deve ser compreendida de modo verdadeiramente hermenêutico, isto é, na perspectiva de algo dito: a linguagem com que a tradição nos interpela, a saga que ela nos conta. A posição que, para nós, a tradição ocupa entre estranheza e familiaridade, é portanto o Entre, entre a objetividade distante, referida pela história, e a pertença a uma tradição. Nesse Entre situa-se o verdadeiro local da hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Mas por que será que o fenômeno da compreensão tem caráter de linguagem? Por que o “entendimento tácito”, que se estabelece sempre e de novo como uma orientação comum no mundo, significaria estrutura de linguagem? Esse tipo de pergunta já traz implícita a resposta. É a linguagem que constrói e conserva essa orientação comum no mundo. Conversa não é primariamente controvérsia. Parece-me característico da modernidade apreciar em demasia a identificação entre conversa e controvérsia. Conversar também não é mutuamente desentender-se ou passar ao largo do outro. Constrói-se, ao contrário, um aspecto comum do que é falado. A verdadeira realidade da comunicação humana é o fato de o diálogo não ser nem a contraposição de um contra a opinião do outro e nem o aditamento ou soma de uma opinião à outra. O diálogo transforma a ambos. O êxito de um diálogo dá-se quando já não se pode recair no dissenso que lhe deu origem. Uma solidariedade ética e social só pode acontecer na comunhão de opiniões, que é tão comum que já não é nem minha nem tua opinião, mas uma interpretação comum do mundo. Tudo que é justo e se considera como justiça exige, por sua natureza, essa comunhão que se instala na compreensão recíproca das pessoas. Na verdade, a opinião comum constrói-se sempre na mutualidade da conversa e é somente depois que recai no silêncio do consenso e do evidente. Por esse motivo, parece-me justificado afirmar que todas as formas extraverbais de compreensão apontam para a compreensão que se difunde no falar e na mutualidade da conversa. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Esse é o ensinamento inequívoco de Aristóteles no capítulo que passa da ética à política. A filosofia prática pressupõe já estarmos conformados pelas idéias normativas nas quais fomos educados e que sustentam a ordem de toda vida social. De modo algum isso significa que essas perspectivas normativas sejam imutáveis, não podendo ser criticadas. A vida social consiste num processo constante de reajuste das vigências existentes. Mas a tentativa de derivar in abstracto as idéias normativas e dar-lhes validade com o pretexto de sua retidão científica não passa de uma ilusão. Trata-se, pois, de um conceito de ciência que não preconiza o ideal do observador distante, mas que impulsiona a conscientização do elemento comum que vincula a todos. Em meus trabalhos, empreguei esse ponto às ciências hermenêuticas, sublinhando a pertença do intérprete ao interpretandum ou ao objeto a ser interpretado. Aquele que busca compreender algo já traz consigo uma antecipação que o liga com o que busca compreender, um consenso de base. Assim, o orador deve ligar-se sempre a essa antecipação se quiser ter sucesso na persuasão e convencimento sobre questões discutidas. Também a compreensão da opinião do outro ou de um texto se realiza dentro de uma relação de consenso, apesar de todos os possíveis mal-entendidos, e busca o entendimento acima de qualquer dissenso. A praxis de uma ciência viva segue essa mesma linha. Essa praxis também não é uma mera aplicação de um saber e de métodos a um objeto qualquer. Só quem adota a perspectiva de uma ciência é que sente a premência das questões. Todo historiador das ciências sabe até que ponto os problemas pessoais, as experiências intelectuais, as necessidades e esperanças de uma época determinam a orientação e o interesse da ciência e da investigação. Mas a antiga pretensão de universalidade atribuída por Platão à retórica se prolonga sobretudo no âmbito das ciências compreensivas, cujo tema universal é o homem imerso nas tradições. Desse modo, pode-se aplicar à hermenêutica a mesma afinidade com a filosofia que representou o resultado provocativo da discussão do Fedro sobre a retórica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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