Onde a arte domina, aí passam a valer as leis da beleza e são ultrapassadas as fronteiras da realidade. É o “reino ideal”, a ser defendido contra todas as limitações, até mesmo contra a tutela moral do estado e da sociedade. Vincula-se certamente com o deslocamento interno na base ontológica da estética de Schiller, o fato de que também seu extraordinário princípio, nas Cartas sobre a educação estética, se modifique na execução. Torna-se conhecido que uma educação pela arte torna-se uma educação para a arte. No lugar da verdadeira liberdade ética e política, para o que a arte deve nos preparar, desponta a formação de um “estado estético”, uma sociedade de formação que se interessa pela arte Com isso, também a superação do dualismo kantiano do mundo dos sentidos e do mundo ético, que é representado pela harmonia da obra de arte e pela liberdade do jogo estético, transforma-se obrigatoriamente num novo antagonismo. A conciliação do ideal e da vida através da arte é, meramente, uma conciliação particular. O belo e a arte emprestam à realidade somente um brilho efêmero e transfigurado. A liberdade da índole humana, à qual ambos elevam, só é liberdade num estado estético e não na realidade. E assim que se abre no fundamento da conciliação estética do dualismo kantiano do ser e do dever, um dualismo ainda mais profundo e mais insolúvel. É a prosa da realidade alheada que, contra a qual, a poesia da conciliação estética tem de procurar sua própria autoconsciência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O deslocamento da determinação ontológica do estético para o conceito da aparência estética tem pois seu fundamento teórico no fato de que o predomínio do modelo de conhecimento das ciências da natureza conduz ao desacreditamento de todas as possibilidades do conhecimento, que se encontram fora dessa nova metodologia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Com isso repetem-se no fundo as aporias da consciência estética que apresentamos acima. Pois é justamente a continuidade que tem de produzir toda compreensão do tempo, mesmo quando se trata da temporalidade da obra de arte. É aqui que o mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga. Em vez de reter o sentido metodológico da análise existencial da pre-sença, procura-se tratar essa temporalidade existencial e histórica da pre-sença, determinada pela cura, pelo preceder a morte, isto é, pela finitude radical, como uma entre outras possibilidades de compreensão da existência, esquecendo além do mais que o que se revela aqui como temporalidade é o próprio modo de ser da compreensão. Querer distinguir a verdadeira temporalidade da obra de arte, como “tempo sagrado”, do tempo decadente e histórico, não passa, na verdade, de um mero reflexo da experiência humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, cujo saber não procede do ponto de vista da autocompreensão humana mas da revelação divina, poderia falar de um “tempo sagrado” e legitimar teologicamente a analogia entre a a-temporalidade da obra de arte e esse “tempo sagrado”. Sem essa legitimação teológica, o discurso sobre o “tempo sagrado” encobre o verdadeiro problema que reside não no fato de a obra de arte poder subtrair-se ao tempo mas na sua temporalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
2.2.1. A valência ontológica do quadro VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A intenção da presente análise conceitual não é, assim, artístico-teorética, mas ontológica. Para ela, a crítica da estética tradicional, que é a primeira que tem em vista, é apenas uma transição para alcançar um horizonte que abranja comumente a arte e a história. Na análise do conceito do quadro, temos em vista somente duas perguntas. De um lado, em que sentido se (142) diferencia o quadro da cópia (portanto, de acordo com a problemática do quadro original), é além disso, a partir daí, como se estabelece a relação do quadro com o seu mundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
No que diz respeito à primeira pergunta, é somente aqui que o conceito da representação se emaranha com o conceito do quadro, que se vincula com o seu quadro original. Nas artes transitórias, das quais partimos, falamos, é verdade, de representação, mas não de quadro. A representação aparecia, nesse caso, ao mesmo tempo dupla. Tanto a obra literária como a sua reprodução, como por exemplo, no palco, é representação. E foi para nós de importância decisiva que a verdadeira experiência da arte passasse por entre a duplicação dessas representações, sem as diferenciar. O mundo que aparece no jogo da representação não está posicionado como uma cópia de seu ser. E tão-somente a reprodução, p. ex., a encenação no palco, não é uma cópia, ao lado da qual o quadro originário do próprio drama manteria seu ser-para-si. O conceito da mimesis, que foi empregado para ambas as formas de representação, não significa tanto o ato de copiar (Abbildung), como a manifestação do representado. Sem a mimesis da obra, o mundo não está aí, do mesmo modo como ele está na obra, e sem a reprodução, a obra de sua parte, não está aí. Na representação se realiza, assim, a presença do representado. Iremos reconhecer como justificado o significado fundamental desse entrelaçamento ontológico do ser original e reprodutivo com a primazia metódica que demos às artes transitórias, caso a compreensão que ali obtivemos se preserve nas artes plásticas. É claro que aí não podemos falar da reprodução como sendo genuíno ser da obra. O quadro, antes, enquanto original, rejeita o ser reproduzido. Parece claro, da mesma maneira, que o copiado na cópia possui um ser independente do quadro, e isso de tal maneira que o quadro em contraste com o representado parece ser um ser inferiorizado. Emaranhamo-nos assim na problemática ontológica do quadro original e da cópia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A esta altura, o conceito estético do quadro, através do modelo da imagem do espelho, não esgota sua compreensão essencial. Somente a inseparabilidade ontológica do quadro com relação ao “representado” torna-se visível nisso. O que, porém, é suficientemente importante, na medida em que isto torna evidente que a intenção primária, em contraposição ao quadro, não diferencia entre o representado e a representação. Somente secundariamente ergue-se sobre isso aquela intenção própria da diferenciação a que demos o nome de diferenciação “estética”. Esse tem em vista a representação como tal, distinguindo-a do representado. Faz isso, sem dúvida, não de uma maneira que viesse a aceitar a cópia de um copiado na representação, tal qual noutras ocasiões aceitam-se reproduções. Ao contrário, o quadro torna válido seu próprio ser, para deixar o reproduzido. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A realidade de ser do quadro se fundamenta, segundo isso, na relação ontológica de quadro original e cópia. Porém, o que importa é justamente ver que a relação conceitual platônica de cópia e quadro original não esgota a valência do ser daquilo que denominamos quadro. Parece-me que não se pode caracterizar (146) melhor seu modo de ser, do que através do conceito sacral-jurídico, ou seja, através do conceito de re-presentação (Repräsentation ). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
É evidente que o conceito da repraesentatio não se apresenta por acaso, quando se quer determinar o status ontológico do quadro, em contraste com a cópia. Tem de dar-se uma modificação substancial, sim, quase uma inversão da relação ontológica do quadro original com a cópia, caso o quadro seja um momento de “re-presentação” e, com isso, possua uma valência própria do ser. O quadro tem então uma independência que estende seu efeito sobre o quadro original. Pois, num sentido estrito, acontece que, somente através do quadro, o quadro original se torna imagem-da-origem (Ur-Bild), isto é, somente a partir do quadro é que o representado se torna plástico. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Em contrapartida ao modo de pensar da mais recente estética, tínhamos desenvolvido acima o conceito do jogo como o genuino acontecimento da arte. Essa tentativa veio agora a se confirmar no fato de que, também o quadro — e com isso o conjunto da arte não dependente de re-produção — é um acontecimento do ser e, por isso, não pode ser adequadamente entendido como objeto de uma consciência estética, mas, antes, (149) pode ser compreendido em sua estrutura ontológica, a partir de fenômenos como o da re-presentação. O quadro é um acontecimento do ser — nele o ser torna-se um fenômeno sensorial-visível. A originalidade da imagem, portanto, não se limita à função “retratante” do quadro — e, assim, também não ao domínio particular da pintura e das artes plásticas “objetivas”, do qual, por exemplo, a arte da construção ficaria totalmente excluída. A originalidade da imagem é, antes, um momento da essência, que encontra seu fundamento no caráter de representação da arte. A “idealidade” da obra de arte não pode ser determinada através da relação com uma idéia como um ser a ser imitado, reproduzido, senão que, como diz Hegel, como o “aparecer” da própria idéia. A partir do fundamento de uma tal ontologia do quadro, torna-se infundada a primazia do quadro pintado sobre madeira, que faz parte de um acervo de pinturas e que corresponde à consciência estética. O quadro guarda, antes, uma relação indissolúvel com o seu mundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O que importa reconhecer é que aquilo que chamamos de ocasionalidade não representa, de forma alguma, uma redução da exigência artística e da univocidade artística de tais obras. Pois, o que se apresenta à subjetividade estética como “irrupção do tempo no jogo” e que na era da arte vivencial apareceu como uma redução do significado estético de uma obra. É, na verdade, apenas o reflexo subjetivo daquela relação ontológica que elaboramos acima. Uma obra de arte pertence tão estreitamente àquilo com o qual tem relação, que enriquece o ser daquele outro como que através de um novo acontecimento do ser. No quadro, ser-fixado; na poesia, ser-tratado; ser meta de uma alusão, do ponto de vista do palco, isso tudo não são efemeridades, que permanecem distanciadas do ser, mas representações desse próprio ser. O que dissemos de modo geral acima sobre a valência de ser do quadro inclui também esse momento ocasional. Assim, apresenta-se o momento da ocasionalidade, que vem ao encontro nos fenômenos citados, como um caso de exceção de uma relação geral, que convém ao ser da obra de arte: a fim de experimentar a continuidade da determinação de seu significado a partir da “ocasião” de seu vir à representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Uma tal participação ontológica é atribuída, é claro, não somente ao quadro, mas também àquilo que denominamos de símbolo. Para o símbolo vale, tal como para o quadro, o fato de que não se refere a algo que não esteja concomitantemente presente nele próprio. Apresenta-se assim a tarefa de se distinguir o modo de ser do quadro, do modo de ser do símbolo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Na realidade, o conceito da decoração tem de ser liberado dessa oposição ao conceito da arte vivencial e encontrar seu fundamento na estrutura ontológica da representação, que já elaboramos como modo de ser da obra de arte. Bastará recordar que o adorno, o decorativo são, por seu sentido originário, o belo como tal. Vale a pena reconstruir esse antigo conhecimento. Tudo o que é adorno, e adorna, está determinado pela sua relação com o que ele adorna, com aquilo em que ele é, com aquilo que é seu portador. Não possui um conteúdo estético próprio, o qual somente a posteriori receberia um condicionamento restritivo através da relação para com seu portador. Inclusive Kant, que pode ter alentado essa opinião, leva em conta, na sua conhecida assertiva contra as tatuagens, que um adorno só é tal, quando é conveniente ao portador e lhe cai bem. Forma parte do gosto, não somente que se saiba apreciar que algo é bonito em si, mas também que se saiba o âmbito onde ele pertence e onde não. O adorno não é primeiramente uma coisa para si, que mais tarde se acrescenta a uma outra, mas pertence ao representar-se de seu portador. Do adorno tem-se de dizer também, que pertence à representação; a representação, porém, é um acontecimento ôntico, é re-presentação. Um adorno, um ornamento, uma plástica colocada num local preferencial são re-presentativos no mesmo sentido em que o é, por exemplo, a própria igreja em que foram feitos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Há que se colocar isso em prova agora, igualmente, no exemplo de se saber, se o aspecto ontológico que temos elaborado até aqui se estende também ao modo de ser da literatura. Aqui já não parece haver nenhuma representação que pudesse reivindicar uma valência ôntica própria. A leitura é um processo da pura interioridade. Nela parece consumada a liberação com respeito a toda ocasião e contingência, como se encontram na conferência pública ou na encenação. A única condição, sob a qual se encontra a literatura, é a transmissão lingüística e seu cumprimento na leitura. Será que a diferenciação estética não encontrará, com o fato de que a consciência estética se afirma a si mesma ante a obra, uma legitimação na autonomia da consciência ontológica. De qualquer livro não somente daquele afamado — pode-se dizer que é para todos e para ninguém. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Seja como for, somente a partir daqui torna-se compreensível o que vem a ser para Ranke “uma ação verdadeiramente histórico-universal, assim como o que sustenta, na realidade, o nexo da história universal”. Ela não possui nenhum telos que se possa descobrir e fixar fora dela. Enquanto tal, na história não domina nenhuma necessidade que possa ser percebida a priori. E, no entanto, a estrutura do nexo histórico é, apesar de tudo, teleológica. Seu padrão é o êxito. Já vimos que o que segue é o que primeiramente decide sobre o significado daquilo que o precedeu. Ranke pode ter tido isso em mente como uma simples condição do conhecimento histórico. Mas, na realidade, repousa sobre isso também o peso característico que convém ao próprio ser da história. O fato de que se alcance sucesso ou se fracasse não decide somente sobre o conteúdo desse fazer, permitindo-lhe engendrar um efeito duradouro ou passar sem efeito algum, mas este sucesso ou fracasso faz que nexos completos de fatos e de acontecimentos sejam plenos de sentido ou se tornem sem sentido. A estrutura ontológica da história, portanto, embora não tenha telos, é em si mesma teleológica. O conceito da ação verdadeiramente histórico-universal, que Ranke utiliza, define-se precisamente por isso. Ela é tal, quando faz história, isto é, quando tem um efeito que lhe confere um significado histórico duradouro. Os elementos do nexo histórico determinam-se pois, de fato, no sentido de uma teleología inconsciente que os congrega e que exclui deles o que não tem significado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A própria formulação de Ranke ganha com isso um perfil histórico universal, um perfil dentro da história universal do pensamento e da filosofia. Nesse mesmo contexto, o próprio Platão já havia enfocado, pela primeira vez, a estrutura reflexiva (210) da dynamis, tornando possível a sua transposição à essência da alma, que Aristóteles empreendeu da teoria das dynameis, as potências da alma. A força é, segundo sua essência ontológica, “interioridade”. Nesse sentido é absolutamente correto que Ranke escreva: “A liberdade se associa à força”. Pois a força, que é mais que a sua exteriorização, já é sempre liberdade. Sabe que tudo poderia ter sido diferente, que cada indivíduo que atua teria podido também atuar de outra maneira. A força que faz história não é um momento mecânico. Para evitar isso, Ranke fala expressamente de “uma força original”, e da “fonte primeira e comum de todo fazer e deixar de fazer humano” — e isto é para Ranke a liberdade. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Também Heidegger está determinado, inicialmente, por aquela tendência comum a Dilthey e a Yorck, que um e outro formularam como “conceber a partir da vida”, tendência que, em Husserl, encontrou expressão como retorno a uma posição anterior à objetividade da ciência. Entretanto, ele não ficou mais submetido às implicações epistemológicas, segundo as quais o retorno à vida (Dilthey), tal como a redução transcendental (o caminho de Husserl da auto-reflexão absolutamente (259) radical), encontram seu fundamento metódico no fato de as vivências darem-se por si mesmas. Antes, tudo isso torna-se o objeto de sua crítica. Sob o termo-chave de uma “hermenêutica da facticidade” Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e à distinção entre fato e essência, sobre que ela repousa, uma exigência paradoxal. A facticidade da pre-sença, a existência, que não é passível de fundamentação nem de dedução, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro “cogito”, como estruturação essencial de uma generalidade típica: uma idéia tanto audaz como difícil de ser cumprida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Era claro, portanto, que o projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental tinha como pano de fundo o problema da história. Todavia, em breve se perceberia que, nem a solução do problema do historicismo, nem uma fundamentação originária das ciências, e até nem mesmo uma autofundamentação ultra-radical da filosofia de Husserl corresponderiam ao sentido dessa ontologia fundamental; é a própria idéia da fundamentação que experimenta agora uma inversão total. O questionamento já não é mais igual ao dé Husserl, quando Heidegger empreende a interpretação do ser, verdade e história a partir da temporalidade absoluta. Pois essa temporalidade já não era mais a da “consciência” ou a do eu-originário transcendental. E verdade que na linha de pensamentos de Ser e tempo soa, todavia, como uma intensificação da reflexão transcendental, como a conquista de uma etapa mais elevada da reflexão, quando o tempo se revela como o horizonte do ser. Pois é a carência de uma base ontológica da subjetividade transcendental, que já Heidegger havia reprovado na fenomenologia de Husserl, o que parece ficar superado na ressurreição do ser. O que o ser significa terá de ser determinado a partir do horizonte do tempo. A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Porém ela era mais do que isso. A tese de Heidegger era: o próprio ser é tempo. Com isso se rompe todo o subjetivismo da mais recente filosofia — sim, como logo se mostraria todo o horizonte de questionamento da metafísica, assumindo no ser como o presente (Anwesende). O fato de que à pre-sença importe o seu ser, e o fato de que se distinga de todo outro ente por sua compreensão do ser, isso não representa, como dá a entender em Ser e tempo, o fundamento último de que deve partir um questionamento transcendental. O que está em questão é um fundamento completamente diferente, o qual é o último que possibilita toda compreensão do ser, é o próprio fato de que exista um “pré” (“dá”), uma clareira no ser, isto é, a (262) diferença entre ente e ser. A indagação que se orienta para esse fato básico de que “há” tal coisa, pergunta, na verdade, ser, mas numa direção que ficou necessariamente impensada em todos os questionamentos anteriores sobre o ser dos entes, e que inclusive foi encoberta e ocultada pela indagação metafísica pelo ser. Sabe-se que Heidegger manifesta esse esquecimento essencial do ser que domina o pensamento ocidental desde a metafísica grega, apontando a confusão ontológica que o problema do nada provoca nesse pensamento. E, enquanto deixa manifesto que essa indagação pelo ser é ao mesmo tempo a indagação pelo nada, une o começo e o final da metafísica. O fato de que a indagação pelo ser pode ser colocada a partir da indagação pelo nada já pressupõe o pensamento do nada, ante o qual havia fracassado a metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O que Heidegger, finalmente, chama de “conversão” não é uma nova guinada no movimento da reflexão transcendental, mas justamente a liberação e a realização dessa tarefa. Embora Ser e tempo ponha criticamente a descoberto a deficiente determinação ontológica do conceito husserliano da subjetividade transcendental, a sua própria exposição da questão do ser encontra-se formulada segundo os meios da filosofia transcendental. Na verdade, a renovação da questão do ser, que Heidegger tomou como tarefa, significa, no entanto, que, em meio ao “positivismo” da fenomenologia, ele reconheceu o problema fundamental da metafísica, ainda não resolvido, problema que, na sua culminação extrema, ocultou-se no conceito do espírito tal como foi pensado pelo idealismo especulativo. Por isso, a tendência de Heidegger é orientar a sua crítica ontológica contra o idealismo especulativo, passando pela crítica a Husserl. Em sua fundamentação da hermenêutica da “facticidade”, sobrepassa tanto o conceito do espírito, desenvolvido pelo idealismo clássico, como o campo temático da consciência transcendental, purificado pela redução fenomenológica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Diante do pano de fundo dessa análise existencial da pre-sença, com todas as suas amplas e mal exploradas conseqüências para os interesses da metafísica geral, de repente o círculo de problemas da hermenêutica das ciências do espírito porta-se totalmente diferente. Nosso trabalho tem por escopo desenvolver esse novo aspecto do problema hermenêutico. Na medida em que Heidegger ressuscita o tema do ser e, com isso, ultrapassa toda a metafísica precedente — e não somente o seu ponto mais alto no cartesianismo da ciência moderna e da filosofia transcendental — ganha ele, face às aporias do historicismo, uma posição fundamentalmente nova. O conceito da compreensão já não é mais um conceito metódico como em Droysen. A compreensão não é, tampouco, como na tentativa de Dilthey de fundamentar hermeneuticamente as ciências do espírito, uma operação que só se daria posteriormente na direção inversa, ao impulso da vida rumo à idealidade. Compreender é o caráter ôntico original da própria vida humana. Se, a partir de Dilthey, Misch tinha reconhecido no “livre distanciamento de si mesmo” uma estrutura fundamental da vida humana, sobre a qual repousa toda a compreensão, a reflexão ontológica radical de Heidegger procura cumprir a tarefa de esclarecer essa estrutura da pre-sença mediante uma “analítica transcendental da pre-sença”. Revelou o caráter de projeto que reveste toda compreensão e pensou a própria compreensão como o movimento da transcendência, da ascensão acima do ente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer prático (“er versteht nicht zu lesen” “ele não entende ler”, o que significa tanto como: “ele fica perdido na leitura”, ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a idéia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que “compreende” um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no (265) esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de “absurda” a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Por isso, aqui colocamos a questão de se saber se podemos ganhar algo para a construção de uma hermenêutica histórica a partir da radicalização ontológica que Heidegger leva a cabo nesse caso. Certamente que a intenção de Heidegger era outra, e não seria correto extrair conseqüências precipitadas de sua analítica existencial da historicidade da pre-sença. A analítica existencial da pre-sença não inclui em si, segundo Heidegger, nenhum ideal de existência histórico determinado. Nesse sentido ela própria reivindica uma validez apriórico-neutral, inclusive para uma proposição teológica sobre o homem e sua existência na fé, como mostra, por exemplo, a polêmica em torno a Bultmann. E, inversamente, com isso não se exclui, de modo algum, que tanto para a teologia cristã como para as ciências do espírito históricas haja premissas (existenciais), determinadas quanto ao seu conteúdo, e às quais estejam submetidas. Mas precisamente por isso, ter-se-á de outorgar reconhecimento ao fato de que a analítica existencial, ela mesma, segundo seu próprio propósito, não contém uma formação “existencial” de ideais, não sendo portanto criticável nesse sentido (por mais que se tenha tentado). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas conseqüências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas conseqüências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O fato de que a palavra, que nomeia um objeto, nomeie-o como aquele que ele é, porque ela própria possui o significado, pelo qual o intencionado é nomeado, não implica necessariamente uma relação de cópia. Na essência do mimema prejaz certamente o fato de que nela se represente também algo diferente do que ele mesmo representa. A mera imitação, o “ser como”, contém pois, sempre, a possibilidade de insertar a reflexão sobre a distância ontológica entre a imitação e seu modelo. A palavra, porém, nomeia a coisa de uma maneira muito mais íntima ou espiritual do que se houvesse aqui uma distância de similitude, um copiar mais ou menos correto. Crátilo tem toda a razão quando se pronuncia contra isso. Tem-na também quando diz que, na medida em que uma palavra é uma palavra, tem de ser “correta”, corretamente “existente”. Se não o é, se não tem significado, não difere em nada do som que produz o bronze ao ser golpeado. Não tem o menor sentido se falar, nesse caso, de falsidade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Esse conceito do ser em si, como se vê, só se corresponde na aparência com o conceito grego do kath auto. Este último se refere basicamente à diferença ontológica entre o que é um ente, segundo sua substância e sua essência, e aquilo que nele pode ser e que é cambiante. O que pertence à essência permanente de um ente é conhecível também num sentido pregnante, isto é, detém sempre uma correspondência prévia com o espírito humano. Por outro lado, o que é “em si”, no sentido da ciência moderna, não tem nada a ver com essa diferença ontológica entre essencial e inessencial, mas se determina como conhecimento assegurado, que permite a possessão da coisa. As realidades asseguradas são como objeto e a resistência, com a qual se tem de contar. Portanto, e como particularmente Max Scheler mostrou, o que é em si é relativo a um determinado modo de querer e saber. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
O pensamento mais antigo levou isso em conta, atribuindo à idéia da teleología uma função ontológica universal. Pois quando se pensa em objetivos, as mediações pelas quais algo é agenciado não se mostram casualmente adequadas à consecução de um fim, mas são eleitas e adotadas, desde o princípio, como meios adequados. A subordinação do meio a um fim é, portanto, prévia. A isso chamamos sua “idoneidade”, e é sabido que a ação humana racional é idônea para seus fins não somente nesse sentido, mas inclusive onde não se trata de colocar objetivos nem de escolher meio. Assim ocorre também em todas as relações vitais: Estas somente podem ser pensadas sob a idéia da idoneidade para um fim, ou seja, como a congruência recíproca de todas as partes entre si. Também aqui a relação do todo é mais originária do que as partes. Aliás, na teoria da evolução, o conceito da adaptação só pode ser utilizado com precaução, já que pressupõe, de sua parte, a inadaptação como relação natural, como se os seres tivessem sido postos num mundo a que teriam de se adaptar posteriormente. Tal como neste caso, a adaptação perfaz a própria relação vital, assim também o conceito do conhecimento se determina, sob o domínio da idéia do fim, como a subordinação natural do espírito humano à natureza das coisas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Com a cunhagem ontológica que o nosso questionamento hermenêutico sofreu, acabamos nos acercando de um conceito metafísico, cujo significado podemos tornar fecundo ao voltarmos às suas origens. O conceito do belo, que no século XVIII compartilhava com o conceito do sublime uma posição central dentro da problemática estética, e que ao longo do século XIX acabaria por ser completamente eliminado pela crítica estética ao classicismo, foi antes um conceito metafísico universal e teve dentro da metafísica, isto é, da teoria geral do ser, uma função que não estava, de modo algum, restringida ao estético, no sentido estrito. Mostrar-se-á que também esse velho conceito do belo pode ser posto a serviço de uma hermenêutica abrangente como a que resultou a partir da crítica ao metodologismo das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Como se vê, essas determinações do belo são universais e ontológicas. Nelas a natureza e a arte não estão opostas. Naturalmente, isso significa que também em relação à beleza é indiscutível a primazia da natureza. A arte pode obviamente perceber, dentro do conjunto da forma da ordem natural, possibilidades minguadas de conformação artística, e, desse modo, aperfeiçoar a natureza bela da ordem do ser. Não obstante, isso não quer dizer, de modo algum, que na arte se encontre, antes de tudo e sobretudo, “a beleza”. E na medida em que se compreenda a ordem do ente como divina ou como criação de Deus — e isso continuará vigente até o início do século XVIII — , o caso especial da arte somente poderá ser entendido a partir do horizonte dessa ordem do ser. Já demonstramos acima como a problemática estética somente se localiza no ponto de vista da arte do século XIX. Agora vemos que isso se apoiava num processo metafísico. Essa mudança do ponto de vista da arte pressupõe ontologicamente uma massa ontológica pensada sem forma e regida por leis mecânicas. O espírito da arte humana, que constrói coisas úteis mecanicamente, acabará por compreender também todo o belo a partir do ponto de vista exclusivo da obra de seu próprio espírito. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Concorda com isso o fato de que a ciência moderna só tenha se recordado da valência ontológica autônoma da “forma” (Gestalt), quando chegou aos limites da construtibilidade mecânica do ente, e que somente então tenha incluído a idéia dessa forma — mesmo que de simetrias bem mais formais — como princípio suplementar de conhecimento na explicação natural, sobretudo na explicação da natureza viva (biologia, psicologia). Não é que com isso renuncie à sua atitude fundamental, mas que meramente procura alcançar, por um caminho mais refinado, o seu objetivo, o domínio do ente. Isso deve ser acentuado em contraste com a autocompreensão da ciência moderna da natureza. Mas ao mesmo tempo, e em seus próprios limites, nos limites do domínio da natureza que ela própria conseguiu, a ciência faz valer a beleza da natureza e a beleza da arte que servem a um prazer livre de qualquer (484) interesse. A partir da inversão da relação entre o que é belo por natureza e o que é pela arte, já descrevemos o processo de alternância, pelo qual o que é belo por natureza acaba perdendo sua primazia, até o ponto de ser pensado como reflexo do espírito. Poderíamos ter acrescentado que o mesmo conceito da “natureza” obtém a cunhagem que ele carrega consigo, desde Rousseau, somente a partir de seu reflexo no conceito da arte. Converte-se num conceito polêmico, ou seja, o do outro do espírito, o não-eu, e como tal já não lhe convém nada da dignidade ontológica universal, própria do cosmo como ordem das coisas belas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Nessa função anagógica do belo, que Platão descreve de forma inolvidável torna-se visível um momento ontológico da estrutura do belo e também uma estrutura universal do próprio ser. Evidentemente que o que caracteriza o belo, face ao bom, é que se mostra por si mesmo, que se torna transparente diretamente em seu próprio ser. Com isso ele assume a função ontológica mais importante que pode haver, a da mediação entre a idéia e o fenômeno. Ela é a cruz metafísica do platonismo, que se cristaliza no conceito da participação (methexis) e é concernente tanto à relação do fenômeno com a idéia como à das idéias entre si. Como o Fedro mostra, não é casual que Platão goste de ilustrar essa problemática relação da “participação” com o exemplo do belo. A idéia do belo encontra-se verdadeiramente presente naquilo que é belo, indiviso e inteiro. Por isso, o exemplo do belo permite tornar patente a “parusia” do eidos a que se refere Platão, mostrando a evidência da coisa, face às dificuldades lógicas da participação do “devir” no “ser”. “A presença” pertence ao ser do próprio belo, de maneira plenamente convincente. Por mais que a beleza se experimente como reflexo de algo supraterreno, ela está no visível. É no modo de seu aparecer, que ela mostra como algo realmente diferente, uma essência de outra ordem. Aparece de repente, e igualmente de repente e sem transições, sem mediações, já se foi. Se se tem de falar, com Platão, de um hiato (chorismos) entre o sensível e o ideal, aqui está ele, e aqui já está também encerrado. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Trata-se pois da metafísica platônico-neoplatônica da luz, com a qual se vincula a doutrina cristã da palavra, do verbum creans, a que antes nos dedicamos detidamente. E se designamos a estrutura ontológica do belo como o aparecer, em virtude do qual as coisas se mostram em sua medida e em seu contorno, isso vale na mesma medida para o âmbito inteligível. A luz que faz com que tudo apareça de maneira que seja luminoso e compreensível em si mesmo, é a luz da palavra. Em conseqüência, a metafísica da luz é o fundamento da estreita relação entre o aparecer do belo e a evidência do compreensível . Foi justamente essa relação que orientou nosso questionamento hermenêutico. Gostaria de recordar, nesse ponto, como a análise do ser da obra de arte nos tinha conduzido ao questionamento da hermenêutica, e como esta tinha se ampliado até converter-se num questionamento universal. Isso tudo deu-se sem qualquer consideração paralela da metafísica da luz. Se considerarmos agora o parentesco desta, com nosso questionamento, ajudar-nos-á o fato de que a estrutura da luz pode ser separada, evidentemente, da representação metafísica de uma fonte luminosa sensório-espiritual, ao estilo do pensamento neoplatônico cristão. Isso já pode ser apreciado na interpretação dogmática do relato da criação, em Santo Agostinho. Este observa que a luz foi criada antes da distinção das coisas e da criação dos corpos celestes que a emitem. Ele põe uma ênfase especial no fato de que a criação inicial do céu e da terra tem lugar ainda sem a palavra divina. Deus só fala pela primeira vez ao criar a luz. E esse falar, pelo qual se nomeia e se cria a luz, é interpretado por ele como um vir à luz espiritual, que tornará possível a diferença entre as coisas formadas. Só pela luz a massa informe e primeira do céu e da terra adquire a capacidade de configurar-se em muitas formas diferentes. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
2. Se partirmos da constituição ontológica fundamental, segundo a qual o ser é linguagem, isto é, representar-se — tal como se nos abriu na experiência hermenêutica do ser — , a conseqüência não é somente o caráter de evento do belo e o caráter de acontecer de toda compreensão. Assim como o modo de ser do belo tinha se mostrado como prefiguração de uma constituição ontológica geral, algo semelhante ocorrerá com respeito ao correspondente conceito da verdade. Também aqui podemos partir da tradição metafísica, mas também aqui teremos de nos indagar sobre o que continua sendo válido nela, para a experiência hermenêutica. Segundo a metafísica tradicional, o caráter de verdade do ente pertence à determinação transcendental e está estreitamente vinculado ao ser bom (de onde também aparece o ser belo). Recordamos, desse modo, a frase de Tomás de Aquino, segundo a qual o belo deve ser determinado por referência ao conhecimento, e o bom por referência ao desejo. É belo aquilo em cuja contemplação o anseio chega ao seu repouso: cuius ipsa apprehensio placet. O belo acrescenta ao ser bom uma referência à capacidade de conhecer: addit supra bonum quemdam ordenem ad vim cognoscitivam. O “aparecer” do belo aparece aqui como uma luz que brilha sobre o que foi formado: lux splendens supra formatum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Procuramos separar novamente essa frase de sua conexão metafísica com a teoria da forma, apoiando-nos outra vez em Platão. Ele foi o primeiro que mostrou como momento essencial doijelo a aletheia, e é muito claro o que queria dizer com isso: o belo, o modo como aparece o bom, manifesta-se a si mesmo no seu ser, representa-se. O que se representa assim não se torna distinto de si mesmo, na medida em que se representou. Não é uma coisa para si, e outra distinta para os demais. Nem sequer se encontra noutra coisa. Não é o resplendor despejado sobre uma forma, e que chega a ela a partir de fora. Ao contrário, a constituição ontológica, própria dessa forma, é brilhar assim, é representar-se assim. Disso resulta que, em relação com o ser belo, o belo tem de ser compreendido ontologicamente sempre como “imagem”. E não há nenhuma diferença entre o fato de que apareça “ele mesmo” ou sua imagem. Já havíamos visto que a característica metafísica do belo era justamente a ruptura do hiato entre idéia e aparência. Com toda segurança, é “idéia”, ou seja, pertence a uma ordenação de ser que se destaca sobre a corrente dos fenômenos como algo consistente em si mesmo. Mas igualmente certo é que aparece por si mesmo. Como vimos, isso não significa, de modo algum, uma instância contra a doutrina das idéias, mas uma exemplificação concentrada de sua problemática. Aí onde Platão invoca a evidência do belo, não necessita reter a oposição entre “ele mesmo” e imagem. É o belo o que simultaneamente põe e supera essa oposição. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Em um empreendimento como este é questão de ordem levar-se em conta a ressonância que o projeto pessoal encontrou junto à crítica. Também nesse caso, não podemos negligenciar que o fato de a história efeitual pertencer à coisa ela mesma é uma verdade hermenêutica. Nesse sentido há que se remeter para o prefácio à 2a edição e o posfácio à 3a e 4a edições. Olhando retrospectivamente, hoje, parece-me que não se alcançou plenamente a consistência de caráter teorético desejada, pelo menos num ponto. Não fica suficientemente claro como se harmonizam os dois projetos fundamentais que contrapõem o conceito de jogo ao princípio subjetivista que determina o pensamento da modernidade. Por um lado, encontra-se a orientação no jogo da arte, e ademais, a fundamentação da linguagem no diálogo, que trata do jogo da linguagem. Com isso coloca-se a questão mais ampla e decisiva: até que ponto consegui tornar visível a dimensão hermenêutica como um além da autoconsciência, e isto quer dizer, não suspender mas conservar a alteridade do outro na compreensão? Tive, assim, que recuperar o conceito de jogo em minha perspectiva ontológica, ampliada ao caráter universal da linguagem. Tratava-se de vincular estreitamente o jogo da linguagem com o jogo da arte, no qual havia vislumbrado como o caso hermenêutico por excelência. Era natural agora pensar a nossa experiência de mundo em seu aspecto da linguagem, que é universal, sob o modelo do jogo. Já no prefácio à 2 — edição de meu livro assim como nas páginas conclusivas de minha contribuição “Die phänomenologische Bewegung” (O movimento fenomenológico) mostrei a convergência das minhas idéias concebidas nos anos trinta com o conceito de jogo do Wittgenstein tardio. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Isso mostra-se claramente quando, hoje, procuro repensar o meu próprio relacionamento com Heidegger e minha adesão ao seu pensamento. A crítica viu este relacionamento de modo muito diverso. Em geral, essa determinou-se pelo fato de eu empregar o conceito de “consciência histórico-efeitual”. O fato de voltar a empregar o conceito de “consciência”, cuja preconceptualidade ontológica foi demonstrada claramente por Heidegger em Ser e tempo, significa para mim apenas uma adaptação a um uso de linguagem que me parece natural. Por certo, isso deu a impressão de um atrelamento ao questionamento do primeiro Heidegger, o qual parte da pre-sença, em que está em jogo seu ser e que se caracteriza pela compreensão de ser. O Heidegger tardio tratou de superar expressamente a autoconcepção filosófico-transcendental de Ser e tempo. A minha própria motivação de introduzir o conceito de consciência histórico-efeitual consistiu justamente em abrir caminho para o Heidegger tardio. Quando o pensamento de Heidegger se projetou para fora da linguagem dos conceitos da metafísica, ele viu-se enredado numa carência de linguagem que o levou a apoiar-se na linguagem de Hõlderlin e num dizer quase poético. Numa série de pequenos trabalhos sobre o Heidegger tardio, tentei esclarecer que a conduta do Heidegger tardio no que se refere à linguagem não é uma recaída na poesia, mas já estava contida na linha de seu pensamento, o qual me introduziu em minhas próprias questões. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Meu período de aprendizagem junto a Heidegger encerrou-se com o seu retorno de Marburgo para Friburgo e com o começo de minha própria atividade acadêmica em Marburgo. Foi quando surgiram as três conferências de Frankfurt, hoje conhecidas como “Origem da obra de arte”. Escutei-as em 1936. Ali encontrava-se o conceito de “terra”, com o qual Heidegger supera de modo dramático o vocabulário da filosofia moderna, vocabulário que ele renovara a partir do espírito da língua alemã e revitalizado em suas preleções. Como isso veio de encontro às minhas próprias perguntas e à minha própria experiência da proximidade entre arte e filosofia, despertou em mim uma ressonância imediata. Minha hermenêutica filosófica procura manter-se na direção de questionamento do Heidegger tardio e torná-la acessível de uma nova maneira. Considerei que para esse fim deveria manter o conceito de consciência, (11) contra cuja função fundamentadora havia se voltado a crítica ontológica de Heidegger. Procurei, no entanto, delimitar esse conceito nele próprio. Heidegger viu aqui, sem dúvida, uma recaída na dimensão de pensamento que ele havia superado — mesmo que tenha percebido que minha intenção voltava-se na direção de seu próprio pensamento. Creio que não compete a mim decidir se o caminho que segui pode pretender alcançar de certo modo os desafios de pensamento de Heidegger. Uma coisa, porém, precisa ser dita hoje. Trata-se de um trecho de caminho, a partir do qual podem-se demonstrar alguns dos intentos do Heidegger tardio, e dizer alguma coisa àquele que não consegue acompanhar a orientação de pensamento do próprio Heidegger. De qualquer modo, deve-se ler corretamente o meu capítulo sobre a consciência histórico-efeitual em Verdade e método. Ali, não se deve ver uma modificação da autoconsciência, algo como uma consciência da história efeitual ou um método hermenêutico nele fundamentado. Antes, precisamos reconhecer aqui a delimitação da consciência pela história efeitual, na qual todos nos encontramos. Trata-se de algo que não conseguimos penetrar completamente. A consciência histórico-efeitual, como foi dito naquele ponto, “é mais ser do que consciência”. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Creio, porém, que esse desvio da reflexão filosófico-transcendental não passa de uma grande incompreensão de seu sentido conseqüente à decadência sofrida pelo conhecimento filosófico após a morte de Hegel. A recorrência desse desvio, mesmo no filosofar de nossos dias, tem sua razão de ser. Quando, por exemplo, se coloca em jogo a realidade ontológica superior da ordem criada por Deus, diante da qual nossa vontade pretensiosa se envergonha (Gerhard Krüger) ou a indiferença do mundo natural frente ao homem e sua história (Karl Löwith), pode-se compreender esse desvio polêmico como um apelo à natureza da coisa. Parece-me, no entanto, que um tal apelo à natureza da coisa encontra seus limites na pressuposição que domina de forma inquestionada todas essas tentativas de restabelecimento do ser-em-si da coisa. Trata-se da pressuposição de que a subjetividade humana é uma vontade que tem validade inquestionável mesmo lá onde o ser-em-si se opõe à determinação da vontade do ser humano, mostrando-se como seu limite. Isso significa propriamente que os críticos do subjetivismo moderno não estão verdadeiramente livres daquilo que criticam, nada mais fazendo do que articular a oposição pelo outro lado. Contrapõem a unilateralidade do neokantianismo, que assume como fio condutor o progresso da cultura científica, à unilateralidade de uma metafísica do ser-em-si, que também compartilha com seus adversários o predomínio da determinação da vontade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Um outro exemplo muito simples é o conceito aristotélico de hylé, a matéria. Quando falamos de matéria já nos encontramos muito distantes da compreensão aristotélica do conceito de matéria. Isto porque Aristóteles compreendeu hylé, que originariamente significa madeira para construção, empregada para com ela se fazer algo, como um princípio ontológico. Expressa o espírito técnico dos gregos, que colocam essa palavra num lugar central na filosofia. Aquilo que é a forma, aparece como o resultado de um esforço e produção técnicos, que conformam algo que não tinha forma. Seria, no entanto, subestimar Aristóteles, acreditar que o conceito aristotélico de hylé equivaleria ao conceito tosco de um material que é por si e que depois o artesão espiritual toma e lhe imprime “forma”. Com esse conceito tosco tirado do universo do artesão, Aristóteles quis descrever sobretudo uma relação ontológica, um momento estrutural do ser que exerce sua função em todo pensamento e conhecimento dos entes, não apenas naquilo que nos rodeia como natureza, mas também no âmbito da matemática (noété hylé). Quis mostrar que, ao conhecermos e determinarmos algo como algo, esse é sempre pensado como algo ainda indeterminado, que só distinguimos de todo o resto por uma determinação adicional. É nesse sentido que afirma que a hylé exerce a função de gênero. A isso corresponde a teoria clássica da definição de Aristóteles, segundo a qual a definição contém o gênero próximo e a diferença específica. No pensamento aristotélico, portanto, a hylé assumiu função ontológica. . VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Se o que caracteriza a conceitualidade filosófica é o fato de o pensamento estar sempre na necessidade de buscar uma expressão\ realmente adequada àquilo que ele quer propriamente dizer, então toda filosofia incorre no perigo de o pensamento sempre se colocar aquém de si mesmo e sofrer uma inadequação de seus recursos conceptuais trazidos da linguagem. Isso é fácil de se ver nos exemplos acima mencionados. Zenão, o seguidor mais próximo de Parmênides, coloca a seguinte questão: Onde está propriamente o ser? Que lugar é este em que ele está? Se estiver em algo, então esse algo em que está deve, por seu turno, estar em algo outro. E certo que Zenão, tão astuto em suas perguntas, já não pôde manter o sentido filosófico da teoria do ser, e identificou o “ser” como o “todo”. Não cremos, porém, que seja correto imputar somente aos seguidores a decadência do pensamento. A carência de linguagem própria do pensamento filosófico é a carência do próprio pensador. Onde a linguagem fracassa, ele já não consegue manter com segurança a orientação de sentido de seu pensamento. Não só Zenão, mas já o próprio Parmênides fala, como se aludiu acima, do ser como se fosse uma bola bem redonda. — Assim também em (88) Aristóteles, e não apenas na sua “escola”, a função ontológica do conceito de matéria não foi pensada adequadamente e nem explicitada conceptualmente, de tal modo que a escola aristotélica já não pôde sustentar a intenção do pensamento original. Por isso, também para os intérpretes modernos, só poderá seguir sua verdadeira intenção a elucidação histórico-conceitual que se transfere igualmente para o actus do pensamento em busca de sua linguagem. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.
Passando pelo historicismo radical e sob o impulso da teologia dialética (Barth, Thurneysen) e desembocando no tema da desmitologização, foi a reflexão hermenêutica de R. Bultmann que fundamentou uma autêntica mediação entre a exegese histórica e a exegese dogmática. Isso representou, sem dúvida, um marco histórico. O dilema entre a análise histórico-individualizante e o anúncio do querigma permanece, do ponto de vista teórico, insolúvel; o conceito de “mito” usado por Bultmann mostrou desde logo ser (102) uma construção carregada de pressupostos, baseada no Iluminismo moderno. Não obstante, o debate sobre a desmitologização, apresentado com muito acerto por G. Bornkamm, continua a despertar um grande interesse hermenêutico geral, visto reapresentar a antiga tensão entre dogmática e hermenêutica numa versão contemporânea. Bultmann distanciou sua auto-reflexão teológica do idealismo para aproximá-la do pensamento de Heidegger. Isso evidencia a influência direta do postulado de Karl Barth e da teologia dialética que tornaram consciente a problemática humana e teológica do “falar sobre Deus”. Bultmann procurava uma solução “positiva”, isto é, passível de ser legitimada metodologicamente, sem renunciar a nenhuma das conquistas da teologia histórica. A filosofia existencial de Heidegger, presente em Sere tempo, parecia-lhe oferecer nesse caso uma posição antropológica neutra, a partir da qual a autocompreensão da fé poderia encontrar uma fundamentação ontológica. O caráter de devir da pre-sença no modo da autenticidade e, no seu lado oposto, a decadência no mundo, podiam ser interpretados teologicamente com os conceitos de fé e pecado. Mas essa interpretação não seguia a linha da exposição heideggeriana da questão do ser, sendo uma reinterpretação antropológica. Não obstante, a relevância universal da questão de Deus para a existência humana, fundamentada por Bultmann na “autenticidade” do poder-ser, alcançou um ganho hermenêutico real. Consistia, sobretudo, no conceito da compreensão prévia — sem falar nas abundantes contribuições exegéticas dessa consciência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, (103) assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as idéias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela idéia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como conseqüência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma idéia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença. O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença, delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual (125) não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
A continuidade da história remete ao enigma do tempo que flui. O fato de o tempo não parar constitui o antigo problema da análise temporal aristotélica e agostiniana. Sobretudo Agostinho nos faz ver a perplexidade ontológica que acomete o antigo pensamento grego, quando precisa enunciar o que é o tempo. O que é essa realidade que em nenhum momento pode-se identificar realmente consigo mesma como aquilo que existe? Pois mesmo o agora já não é agora no momento em que o identifico como agora. O decurso dos agoras num passado infinito, seu incurso desde um futuro infinito, deixa no ar a pergunta sobre o que é o agora e o que é propriamente esse rio de tempo transitório que chega e que passa. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
A problemática ontológica do tempo consiste, portanto, no (136) fato de não ser possível expressar e nem conceber seu próprio ser com os recursos da filosofia do ser desenvolvida pela Antigüidade. Creio que o conceito de continuidade da história vem a refletir o mesmo problema. Isso não significa que o discurso da continuidade da história derive diretamente dessa experiência constante dos agoras que se sucedem ininterruptamente. Quiçá a experiência de continuidade tem uma base muito diferente da simples experiência do fluir incessante do tempo. A continuidade da história investigada na pergunta pelo ser da história culmina em última instância no fato de que, apesar de toda transitoriedade, todo passar implica necessariamente um devir. A verdade da consciência histórica parece alcançar sua perfeição quando percebe o devir no passar e o passar no devir e quando extrai do fluir incessante das transformações a continuidade de um nexo histórico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
Para a reflexão hermenêutica, o conceito de reflexão e conscientização utilizado por Habermas aparece carregado de dogmatismos, e é nesse particular que gostaria de ver os efeitos da reflexão hermenêutica que eu proponho. Através de Husserl (em sua teoria das intencionalidades anônimas) e de Heidegger (na demonstração da redução ontológica presente no conceito subjetivo e objetivo do idealismo) aprendemos a desmascarar a falsa objetivação que pesa sobre o conceito de reflexão. Há sem dúvida uma regressão interna da intencionalidade que jamais tematiza o conotado (Mitgemeinte) como objeto. Brentano já percebera esse ponto ao retomar as idéias aristotélicas. Não saberia como conceber a enigmática figura ôntica da linguagem, se não a partir dessa idéia. Devemos distinguir (para falar com as palavras de J. Lohmann) entre a reflexão “efetiva”, que acontece no desenvolvimento da linguagem, e a reflexão expressa e temática, formada na história do pensamento ocidental, ao converter tudo em objeto temático, quando a ciência criou os pressupostos da civilização planetária do futuro. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
A partir do ponto de vista da metafísica, o critério de verdade que deriva a idéia do verdadeiro da idéia do bem e o ser do conceito de inteligência “pura” parece-me bem familiar. O conceito de inteligência pura procede da teoria medieval de inteligência e ganha corpo na figura do anjo que tem o privilégio de ver a Deus em sua essência. Nesse aspecto, parece-me difícil eximir Habermas de uma autocompreensão ontológica falsa, como me pareceu ser o caso da superação do ser natural na racionalidade. Mas Habermas me acusa de falsa ontologização, por exemplo, porque não vejo uma oposição excludente entre autoridade e Iluminismo. Segundo ele, a falsidade consistiria em pressupor que o reconhecimento legitimador se produz sem violência e sem o acordo que fundamenta a autoridade (267). Mas não se deveria fazer essa pressuposição. Realmente não? O próprio Habermas não faz essa pressuposição quando reconhece que deveria haver essa concordância livre como a idéia diretriz de uma vida social livre de violência e dominação? Eu mesmo jamais tive em mente essas relações “ideais”. Sempre me referi antes a todos os casos de experiência concreta, nos quais falamos de uma autoridade natural e do seguimento que essa encontra. Falar sempre de uma comunicação coercitiva, por exemplo, na afirmação de que o amor, a escolha de um modelo ou a submissão voluntária servem sempre de alicerce para estabilizar um superior e um subordinado, parece-me ser um preconceito dogmático em relação ao que significa a “razão” entre os homens. Assim, não consigo ver como no âmbito social a competência comunicativa e seu domínio teórico possam derrubar as barreiras que há entre os grupos, que numa crítica mútua acusam o caráter coercitivo do acordo existente no outro. Nesse caso, parece ser indispensável “a violência suave da iniciativa” (Giegel, 249) e com ela o postulado de uma competência totalmente diferente, ou seja, a da ação política, com o objetivo de possibilitar a comunicação onde ela não existe. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O autor finca pé num conceito de “hermenêutica construtiva” que ele formulou e com a qual busca conectar de modo um tanto ridículo o conceito husserliano dos atos que dão sentido (83s). O certo é que, contra essa doutrina de Husserl, há certas objeções que deveriam partir sobretudo da crítica ontológica de Heidegger contra os preconceitos de Husserl. Mas o que tem isso a ver com uma “hermenêutica construtiva”? E o que seria “hermenêutica construtiva”? Tampouco a idéia da força expressiva da linguagem (298) tem algo a ver com a frase heideggeriana “a linguagem fala”. O sentido da formulação provocativa de Heidegger é a precedência da linguagem com relação a qualquer interlocutor singular. Cabe afirmar assim, num certo sentido — mas certamente não no sentido suposto pelo autor — que a linguagem possui também uma certa prioridade, embora limitada, sobre o pensamento. O sentido inteligível da frase “a linguagem fala” está implícito, segundo me parece, na idéia neoplatônica de que a palavra singular, que é na verdade a palavra do pensamento, articula-se nas palavras e no discurso. O próprio autor toca nesse tema no final do seu tratado quando cita a psyque de Plotino (82), mas sem extrair dele nenhuma conclusão. Creio ter demonstrado que essa doutrina tem a seu favor tanto o pensamento de Agostinho quanto o de Nicolau de Cusa. O papel que o pietismo desempenha na “psicologização” da interpretação representa quem sabe a mediação decisiva entre o legado retórico-humanista e a teoria romântica (A.H. Francke, Rambach). Jaeger não faz nenhuma referência a essa mediação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
Para isso é preciso uma visão certeira. A admirável empresa de uma crítica da razão histórica, empreendida por Dilthey, foi marcada e também obstaculizada, pensamos hoje, por sua dependência em relação ao modelo metodológico das ciências experimentais da (328) natureza. De certo, seu repúdio à teoria axiológica do neokantismo (Rickert) tem sua razão de ser; mas era preciso superar a mera oposição à teoria neokantiana dos valores. Foi o que fez Theodor Litt. Quando no ano de 1941, eu escutei, em Leipzig, a conferência de Litt na Academia saxônica de ciências, da qual acabara de ser eleito membro — seu membro mais jovem — esse estudo sobre “o universal na elaboração do conhecimento das ciências do espírito” pareceu-me uma síntese na qual Litt ratificava sua posição intermediária entre Kant e Herder. Ele a havia elaborado no ano de 1930 num belo livro. Como a linguagem constituía nesse caso a ponte entre o universal e o particular ou singular, pareceu-me muito natural aproveitar meu próprio estudo da crítica ontológica que Heidegger fez à metafísica grega e a sua conseqüência histórica, aplicando-o ao pensamento subjetivo da modernidade para precisar melhor a natureza das ciências do espírito. Ainda hoje sinto-me próximo de Litt, por exemplo, na defesa da linguagem da cotidianidade frente à linguagem técnica e o conceito “puro”, o qual tem sua plena justificação nas ciências da natureza. Litt aprendeu a articular seu próprio pensamento na dialética hegeliana do universal e do particular e na fusão do juízo determinante com o juízo reflexivo. Desse modo tocava no nervo hermenêutico. Eu mesmo procurei ultrapassar o horizonte da teoria moderna da ciência e da filosofia das ciências do espírito para examinar o problema hermenêutico, tomando como referência a estrutura fundamental do ser humano baseada na linguagem. A virtude aristotélica da racionalidade, a phronesis, acaba sendo a virtude hermenêutica fundamental. Serviu de modelo para a formação de minha própria linha argumentativa. Desse modo, a hermenêutica, essa teoria da aplicação, quer dizer, da conjugação do universal e do particular, converteu-se para mim numa tarefa filosófica central. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
O fato de a mediação dialética ao estilo de Hegel já ter realizado a seu modo a superação do subjetivismo moderno permaneceu um desafio constante para o novo pensamento pós-metafísico do século XX. O conceito hegeliano de espírito objetivo dá um testemunho eloqüente a esse respeito. A mediação total da dialética pôde absorver inclusive a própria crítica de raiz religiosa que o lema kierkegaardiano “ou isso ou aquilo” exerceu sobre o lema “tanto isso quanto aquilo”, próprio da auto-superação dialética de todas as teses. A própria crítica de Heidegger ao conceito de consciência, que, mediante uma radical destruição ontológica, demonstrou que todo o idealismo da consciência não passa de uma alienação do pensamento grego e que atinge em cheio a fenomenologia de Husserl, revestida de neokantismo, tampouco isso representou uma ruptura total. O que se chamou de ontologia fundamental da pre-sença, apesar de todas as análises temporais sobre o caráter de (363) “cura” da presença, não pôde superar sua auto-referência e com isso a posição fundamental ocupada pela autoconsciência. Por isso, não pôde produzir uma verdadeira ruptura que pudesse se libertar da imanência da consciência de cunho husserliano. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Não podemos analisar aqui como foi que, partindo de sua intenção fundamental, Heidegger manteve e subsumiu em seu pensamento tardio a obra de destruição de seus inícios. O estilo sibilino de seus últimos escritos atesta isso muito claramente. Ele estava plenamente consciente de sua carência de linguagem assim como da nossa. Ao lado de suas próprias tentativas de abandonar “a linguagem da metafísica” com a ajuda da linguagem poética de Hölderlin, parece-me que só houve dois caminhos transitáveis para indicar esse caminho que leva ao aberto, frente à autodomesticação ontológica própria da dialética. Esses dois caminhos foram (368) efetivamente transitados. Um deles é o regresso da dialética ao diálogo e desse à conversação. Eu mesmo procurei seguir esse caminho em minha hermenêutica filosófica. O outro caminho é o da desconstrução, estudado por Derrida. Não se trata aqui de resgatar o sentido que desaparecera da vivacidade da conversação. No pano de fundo da trama das relações de sentido que sustentam todo falar, num conceito ontológico de écriture, portanto — em lugar do falatório ou da conversação — deve-se dissolver a unicidade de sentido, levando a cabo, assim, a verdadeira ruptura da metafísica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
(411) Foi nesse ponto que o trabalho da escola fenomenológica mostrou-se fecundo. Hoje, uma vez tendo ganho uma visão de conjunto das diversas fases de desenvolvimento da fenomenologia de Husserl, parece-me claro que foi ele quem deu o primeiro passo radical nessa direção, ao demonstrar o modo de ser da subjetividade como historicidade absoluta, ou seja, como temporalidade. A obra a que se costuma referir nesse contexto e que marcou época, Ser e tempo de Heidegger, tinha uma intenção bem diferente e muito mais radical: colocar a descoberto a inadequação da concepção ontológica prévia que domina a compreensão moderna da subjetividade e da “consciência”, incluindo ainda sua formulação extrema como fenomenologia da temporalidade e da historicidade. Essa crítica serviu à tarefa positiva de recolocar a questão do “ser”, à qual os gregos deram uma primeira resposta com a metafísica. Mas Ser e tempo não foi compreendido nessa sua intenção autêntica, mas no que Heidegger tinha em comum com Husserl, uma vez que se viu nessa obra a defesa radical da absoluta historicidade da “pre-sença”, tal como essa procedia já da análise husserliana da fenomenalidade originária da temporalidade (“fluir” = Strömen). Argumentava-se assim, por exemplo: O modo de ser da pre-sença ganha agora uma determinação ontologicamente positiva. Não é um ser simplesmente dado, mas tem o caráter do porvir. Não há verdades eternas. Verdade é a abertura do ser que se dá juntamente com a historicidade da pre-sença. Aqui poder-se-ia encontrar o fundamento para justificar a crítica ao objetivismo histórico que se dava nas próprias ciências. É, por assim dizer, um historicismo de segunda ordem, que não apenas contrapõe a relatividade histórica de todo conhecimento à reivindicação absoluta de verdade, mas também pensa seu fundamento, a historicidade do sujeito conhecente (412), e por isso não pode mais considerar a relatividade histórica como uma restrição da verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de Aristóteles tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de “ontologia do ser simplesmente dado” (“Ontologie des Vorhandenen “). Mas na filosofia de Aristóteles havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao “eidos universal” de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Isto, e não um puro irracionalismo, é a contribuição feita pela filosofia da existência, a saber, reconhecer a decisão, a escolha ou como se queira chamar esse momento de todo juízo, como uma modalidade de razão. Jaspers formulou o caráter racional desse saber com a idéia de uma elucidação da existência enxertada nas (428) situações-limite, nas quais a ciência como saber apodíctico deixa o homem sozinho. Para descrever esse fenômeno seguiu-se utilizando o conceito de saber próprio da ciência, e nesse sentido Heidegger foi mais radical quando tomou o conceito de situação-limite como ponto de partida de uma guinada ontológica. Heidegger contrapôs-se ao conceito ontológico do ente simplesmente dado (Vorhanden), que forma a base da ciência. Partindo do conceito do “estar à mão” (zuhanden) e do ser-compreendido-em-função-de (Sich-auf-etwas-Verstehens), próprios do domínio prático-técnico do mundo, ele definiu a estrutura ontológica da “pre-sença” humana como “compreensão do ser”, quer dizer, recorrendo à verdadeira ação clarificadora da razão. Desse modo, o conceito de hermenêutica adotado por Dilthey, ou seja, a arte de compreender estruturas de sentido, se converteu no paradoxo de uma “hermenêutica da facticidade”. Essa hermenêutica continha uma crítica ontológica aos conceitos tradicionais de norma, especialmente ao conceito de valor (Rickert, Scheler) e ao conceito “platônico” de significado unívoco e ideal (Husserl). O ser em si, liberto da interpretação psicológica para poder ser atribuído à esfera do normativo na lógica e na ética, do ponto de vista puramente ontológico não passava de “ser simplesmente dado”, carente de todo fundamento. Esse ser em si só não se encontrava carente de fundamento na medida em que o jovem Scheler pressupunha uma fundamentação baseada na teologia da criação que poderia servir de base ao conceito de valor, de bem e para o conceito de uma ordem de valores e de bens. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
A ciência pode fazer muitas objeções a isso. Desde há muito a hermenêutica é uma parte constitutiva da teologia. Sobretudo com a crítica feita pela teologia dialética à linguagem sobre Deus, e desde que a teologia histórica do liberalismo assumiu a tarefa de harmonizar sua própria pretensão científica com o sentido querigmático da Sagrada Escritura e com sua interpretação, surgiu de novo a problemática hermenêutica. Assim, Rudolf Bultmann”, adversário ferrenho de toda teoria da inspiração e de toda exegese pneumática, e mestre do método histórico, reconheceu a relação ontológica prévia que o sujeito tem com o texto que procura compreender. Fez isso, na medida em que, na relação do crente com a Sagrada Escritura descobriu uma “pré-compreensão” inerente à (430) existência humana que se manifesta na pergunta por Deus. Quando adotou o lema da desmitologização, procurando liberar o núcleo querigmático do Novo Testamento e salvar assim a Sagrada Escritura do estranhamento histórico, Bultmann estava seguindo na verdade um velho princípio hermenêutico. Isso porque é evidente que o verdadeiro objetivo dos escritos do Novo Testamento é sua mensagem de salvação e que esses escritos devem ser lidos à luz dessa mensagem. Foram sobretudo alguns discípulos que radicalizaram o tema da hermenêutica redescoberto por Bultmann. Ernst Fuchs, com um livro que reuniu de forma genial a reflexão e a exegese, e Gerhard Ebeling, partindo sobretudo da hermenêutica luterana. Ambos falam de um “acontecimento de linguagem” próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. Mesmo que não faltem contra-reações na teologia moderna, esses estímulos obrigam a consciência hermenêutica a progredir não só na teologia protestante, mas também na católica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Mas justamente quando se reconhece a problemática da relevância ficará difícil permanecer fiel ao lema da liberdade dos valores desenvolvido por Max Weber. Não é suficiente manter um deci-sionismo cego com relação aos últimos objetivos, em favor do qual falou abertamente Max Weber. Aqui o racionalismo metodológico desemboca num irracionalismo tosco. Conjugar nele a assim chamada filosofia existencial seria desconhecer as coisas por completo. A verdade, porém, é exatamente o seu contrário. Mas a intenção do conceito de clarificação da existência proposto por Jasper era justamente submeter as decisões últimas a uma clarificação racional; não é por acaso que ele considerava os conceitos de “razão e existência” como sendo inseparáveis. Heidegger, por sua vez, tirou conseqüências ainda mais radicais. Ele buscou esclarecer a falácia ontológica da distinção entre valor e realidade e dissolver o conceito dogmático do “fato”. Nesse sentido, a questão dos valores não desempenha nenhum papel nas ciências da natureza. É verdade que, no contexto próprio de sua investigação, essas ciências estão submetidas a nexos que podem ser esclarecidos hermeneuticamente. Mas com isso ainda não extrapolam o círculo de sua competência metodológica. Mas nelas o que se questiona é algo parecido, pelo menos em um único ponto. Em sua investigação científica, as ciências são real e totalmente independentes da imagem de mundo que guardam pela linguagem, onde vivem os investigadores enquanto tais? E serão independentes sobretudo do esquema de mundo de sua própria língua materna? Mas, em outro sentido, também aqui está sempre em jogo a hermenêutica. Mesmo que, usando uma linguagem normatizada pela ciência, se conseguisse filtrar todas as conotações que provêm da língua materna, ainda assim permaneceria o problema da “tradução” dos conhecimentos científicos para a linguagem comum, único meio de as ciências da natureza alcançarem sua universalidade comunicativa e com isso sua relevância social. Mas isso já não afetaria a investigação como tal. Apenas mostraria que a mesma não é “autônoma”, mas está inserida em um contexto social. Isso vale para toda e qualquer ciência. Nesse caso, não é necessário reservar uma autonomia especial para as ciências “compreensivas”, e tampouco se pode deixar de perceber que nelas o saber pré-científico desempenha um papel muito importante. Decerto, tudo aquilo que nessas ciências possui esse modo de ser pode ser classificado como “acientífico”, como cientificamente incomprovável etc. Mas é exatamente por isso que se reconhece a estrutura dessas ciências. Então devemos objetar também que é justamente o saber pré-científico, remanescente nessas ciências como um resto lamentável de acientificidade, que constitui seu modo próprio de ser e determina a vida prática e social das pessoas — inclusive as condições para que estas possam fazer ciência — mais decisivamente que tudo que se pode conseguir e até querer por meio de uma crescente racionalização dos contextos humanos de vida. Será realmente possível e desejável que confiemos a um especialista todas as questões decisivas tanto da vida social e política quanto da vida privada e pessoal? E, afinal de contas, na aplicação concreta de sua ciência, o próprio especialista não empregaria sua ciência, mas apenas sua razão prática. E mesmo que esse fosse um engenheiro social ideal, por que razões sua razão prática deveria ser melhor que a das outras pessoas? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
Em minhas investigações, coloquei em jogo conceitos “clássicos” como o conceito de mimesis, de “re-presentação”, não para (478) defender ideais classistas, mas para poder ultrapassar o conceito do estético, que corresponde à religião da cultura burguesa. Compreendeu-se isso como uma espécie de recaída em um platonismo, completa e definitivamente superado pela concepção moderna de arte. Mas isso também não me parece tão simples. A teoria do reconhecimento, sobre o que repousa toda representação mimética, não é mais que um primeiro aceno para compreender corretamente a pretensão ontológica da representação artística. O próprio Aristóteles, que derivou a arte, como mimesis, a partir da alegria do conhecimento, caracteriza a diferença entre o poeta e o historiador pelo fato de que aquele não apresenta as coisas como aconteceram, mas como poderiam acontecer. Com isso, atribui à poesia uma generalidade que nada tem a ver com a metafísica substancialista de uma estética classista da imitação. A formulação conceitual de Aristóteles aponta, antes, para a dimensão do possível — e com isso também a da crítica à realidade (podemos sentir um forte sabor dessa crítica na comédia antiga). Apesar de tantas teorias classistas da imitação terem se apoiado em Aristóteles, a legitimidade hermenêutica desses conceitos parece-me incontestável. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
A meu ver, o programa aristotélico de uma ciência prática é o único modelo de teoria da ciência a partir donde se pode conceber as ciências “da compreensão”. A reflexão hermenêutica sobre as condições da compreensão põe de manifesto que suas possibilidades se articulam em uma reflexão formulada dentro da linguagem, que (500) nunca começa do zero e não pode ser esgotada. Aristóteles mostra que a razão prática e o conhecimento prático não podem ser ensinados como a ciência. Eles só são possíveis na praxis, o que significa, na vinculação interna ao ethos. Convém não esquecer esse ponto. O modelo da filosofia prática deve ocupar o lugar dessa theoria, cuja legitimação ontológica só poderia ser encontrada em um intellectus infinitus, do qual nossa experiência existencial nada sabe sem apoio numa revelação. Esse modelo também deve ser contraposto a todos aqueles que subordinam a racionalidade humana à idéia metodológica da ciência “anônima”. Frente ao aperfeiçoamento da autocompreensão lógica da ciência, essa parece-me ser a verdadeira tarefa da filosofia, inclusive e justamente frente à significação prática da ciência para nossa vida e sobrevivência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.