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Gadamer (VM): obra de arte

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Algo semelhante vale para a experiência da arte. Aqui é a pesquisa científica, que se dedica à chamada ciência da arte, que se encontra desde o princípio conscientizada de que não pode substituir nem suplantar a experiência da arte. O fato de sentirmos a verdade numa obra de arte, o que não seria alcançável por nenhum outro meio, é o que dá importância filosófica à arte, que se afirma contra todo e qualquer raciocínio. Assim, ao lado da experiência da filosofia, a experiência da arte é a mais peremptória advertência à consciência científica, no sentido de reconhecer seus limites. VERDADE E MÉTODO Introdução

As pesquisas a seguir, portanto, iniciam-se com uma crítica da consciência estética, a fim de defenderem a experiência da verdade, que nos é proporcionada pela obra de arte, contra a teoria estética, que se deixa limitar pelo conceito de verdade da ciência. Elas, porém, não se contentam somente com a justificação da verdade da arte. Antes, procuram, desse ponto de partida, um conceito de conhecimento e de verdade, que corresponde ao todo de nossa experiência hermenêutica. Tal como na experiência da arte temos de nos haver com verdades que suplantam fundamentalmente o âmbito do conhecimento metódico, algo semelhante vale para o todo das ciências filosóficas, nas quais nossa tradição histórica, em todas as suas formas, é transformada em objeto de pesquisa, e acaba, porém e ao mesmo tempo, ela mesma manifestando-se em sua verdade. A experiência da tradição histórica vai fundamentalmente além do que nela é possível ser pesquisado. Ela não mostra apenas no sentido de verdade ou inverdade, sobre o que decide a crítica histórica — transmite sempre a verdade, da qual urge em parte tirar proveito. VERDADE E MÉTODO Introdução

Se a formação pressupõe tudo isso, então isso significa que não se trata de uma questão de processo ou de comportamento, mas do ser que deveio. Considerar com maior exatidão, estudar com maior profundidade não é tudo, caso não esteja preparada uma receptividade para o que há de diferente numa obra de arte ou no passado. Foi justamente a isso que, seguindo Hegel  , salientamos como uma característica universal da formação, o manter-se aberto para o diferente, para outros pontos de vista mais universais. Nela existe um sentido universal para a medida e para a distância com relação a si mesmo, e, por isso, uma elevação por sobre si mesmo, para a universalidade. Ver a si mesmo e seus fins privados significa: vê-los como os outros os vêem. Essa universalidade não é, certamente, uma universalidade do conceito ou da compreensão. Não se determina algo particular a partir de algo universal, não se pode comprovar nada por coação. Os pontos de vista universais, a que se mantém aberto o formado, não são para ele um padrão fixo, que tenha validade, mas se fazem presentes ante ele apenas como os pontos de vista de possíveis outros. É assim que, de fato, a consciência formada tem mais o caráter de um sentido. Pois todo sentido, p. ex., o sentido da visão, é, como tal, já universal pois abrange sua esfera, abre-se para um campo e, no âmbito daquilo que lhe está aberto, percebe as diferenças. A consciência formada suplanta cada um dos sentidos naturais, somente na medida em que cada qual esteja restrito a uma determinada esfera. Ela mesma ocupa-se em todas as direções. É um sentido universal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Quando mostramos a insuficiência de uma tal auto-interpretação das ciências do espírito e queremos lhes abrir possibilidades adequadas, teremos de trilhar o caminho que passa pelos problemas da estética. A função transcendental, que Kant   atribui ao juízo estético, é bastante para satisfazer à delimitação contra o conhecimento conceitual e, como tal, à função dos fenômenos do belo e da arte. Mas a questão será a de salvaguardar o conceito da verdade do conhecimento conceitual? Não se tem também de reconhecer que a obra de arte tem uma verdade? Ainda veremos que um reconhecimento dessa faceta da questão coloca sob nova luz não somente o fenômeno da arte, mas também o da história. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Com as últimas observações é claro que já antecipamos bastante o texto de Kant, mas a continuação do processo de pensamentos (parágrafo 17) mostra o direito a essa alusão. A distribuição de pesos desse parágrafo só se tornará nítida com uma pós-avaliação refinada. Aquela idéia normal da beleza, de que o texto fala extensivamente, não é justamente o principal e não representa o ideal da beleza, a que, por sua natureza, o gosto aspira. Antes, um ideal da beleza só existe com relação à figura humana: na "expressão do ético", "sem a qual o objeto não agradaria de forma universal". O julgamento de acordo com um ideal da beleza não é, pois, certamente, como Kant diz, nenhum mero juízo do gosto. Mas, como a mais importante conseqüência dessa doutrina, mostrar-se-á o seguinte: Para agradar como obra de arte é preciso que algo seja também mais do que apenas de bom gosto — agradável. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Que Kant ponha o conceito do gênio totalmente a serviço de seu questionamento transcendental, e de forma alguma o derive da psicologia empírica, percebe-se com toda nitidez na sua restrição do conceito do gênio à criação artística. Quando ele sonega essa designação aos grandes inventores e descobridores no âmbito da ciência e da técnica, isso se torna, visto empírico-psicológicamente, inteiramente injustificado. Por toda parte onde a gente tem de "chegar a alguma coisa" que não se pode descobrir somente através do aprendizado e do trabalho metódico; por toda parte, portanto, onde há inventio, onde se há de agradecer à inspiração e não ao cálculo metódico o que passa a importar é o ingenium, isto é, o gênio. Mesmo assim, a intenção de Kant é correta: somente a obra de arte, segundo o seu sentido, encontra-se determinada a ser criada pelo gênio e por ninguém mais. Somente no caso do artista é que o seu "invento", a obra, de acordo com o seu próprio ser, continua vinculada ao espírito, o espírito que cria, como aquele que julga e usufrui. Somente estas invenções não se deixam imitar, e por isso — do ponto de vista transcendental — é correto quando Kant somente aqui fala do gênio e define as belas artes, como a arte do gênio. Todos os demais desempenhos (Leistungen) e invenções geniais, por maior que seja a genialidade da invenção, não são, em sua essência, determinados por ela. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Só que, no caso de Kant, para uma tal alteração dos valores, não faltavam possibilidades de vinculação. Mesmo depois de Kant não é indiferente, para a capacidade de julgamento do gosto, que as belas artes sejam arte do gênio. É justamente isso que participa no julgamento do gosto, no sentido de se julgar se uma obra de arte possui espírito ou não. Kant disse, certa vez, a respeito da beleza artística, que, relativamente à sua possibilidade — portanto, ao gênio que aí se inclui — "tem de se ter também cuidado no julgamento de um objeto dessa espécie", e num outro lugar, com muita naturalidade, diz que sem o gênio não somente não são possíveis as belas artes, mas, da mesma forma, não é possível um gosto correto, um gosto próprio que as julgue. Por isso o ponto de vista do gosto, na medida em que é exercitado no seu mais distinto objeto, as belas artes, desloca-se por si mesmo para o ponto de vista do gênio. À genialidade da criação corresponde uma genialidade da compreensão. Kant não o expressa assim, mas o conceito espírito, que ele utiliza aqui, vale para ambos os pontos de vista da mesma forma. Essa é a base sobre a qual mais tarde se iria continuar construindo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

É, de fato, elucidativo que o conceito do gosto perca o seu significado quando o fenômeno da arte passa a ocupar o primeiro plano. Em face da obra de arte, o ponto de vista do gosto é secundário. A sensibilidade de escolha, que o perfaz, possui, em contraste com a originalidade da obra de arte genial, uma função muitas vezes niveladora. O gosto evita o que é incomum e monstruoso. Ele é um sentido superficial, não se mete com o que há de original numa produção artística. Já a ascensão do conceito do gênio no século XVIII mostra uma ponta polêmica contra o conceito do gosto. Ele era dirigido contra a estética do classicismo, na medida em que se reivindicava ao ideal dos clássicos franceses o reconhecimento de Shakespeare (Lessing!). Kant é, nesse particular, antiquado e assume uma posição medianeira, quando ele ficou apegado, em sua intenção transcendental, ao conceito de gosto que, sob o signo de tempestade e impulso (Sturm und Drang), não somente foi repudiado com élan, mas também foi ferido de maneira tempestuosa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

No final da nossa análise conceitual da "vivência" tornar-se-á claro que afinidade há entre a estrutura da vivência como tal e o modo de ser do estético. A experiência estética não é apenas uma espécie de vivência ao lado de outras, mas representa a forma de ser da própria vivência. Com a obra de arte, como tal, é um mundo para si, assim o vivenciado esteticamente, como vivência, distancia-se de todas as correlações com a realidade. Parece, por assim dizer, que a determinação da obra de arte é a de se tornar uma vivência estética; ou seja, que arranque a um golpe aquele que a vive, do conjunto de sua vida, por força da obra de arte e que, não obstante, volte a referi-lo ao todo de sua existência. Na vivência da arte há presente uma pletora de significados que não somente pertence a este conteúdo específico ou a esse objeto, mas que, antes, representa o todo do sentido da vida. Uma vivência estética contém sempre a experiência de um todo infinito. E seu significado é infinito justamente porque não se conecta com outras coisas para a unidade de um processo aberto de experiência, já que representa o todo imediatamente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Na medida em que a vivência estética, como dissemos acima, representa exemplarmente o conteúdo do conceito da vivência, é compreensível que o conceito desta seja determinante para a fundamentação do ponto de vista da arte. A obra de arte é compreendida como a consumação da representação simbólica da vida, a caminho da qual já se encontra igualmente toda a vivência. É por isso que ela mesma é caracterizada como objeto da vivência estética. Para a estética, isso tem como conseqüência que a chamada arte vivencial aparece como a verdadeira arte. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O conceito da "arte vivencial", como quase sempre se dá nesses casos, foi cunhado a partir da experiência do limite, que se coloca à sua pretensão. O conceito da arte vivencial somente se torna consciente na sua circunscrição, quando deixa de ser auto-evidente que uma obra de arte represente uma transposição de vivências, e quando já não é auto-evidente que essa transposição se deve à vivência de uma inspiração genial que, com a segurança de um sonâmbulo, cria a obra de arte que, por sua vez, converter-se-á numa vivência para aquele que a recebe. Para nós, o século caracterizado pela auto-evidência desses pressupostos é o de Goethe  , um século que é toda uma era, uma época. Somente porque para nós já está encerrado, e porque isso nos permite ver além de seus limites, podemos vê-lo nos seus limites e para isso temos um conceito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Certamente, tudo isso poderá transformar-se numa "vivência" para nós. Essa autocompreensão estética está sempre disponível. Mas a gente não pode deixar-se iludir pelo fato de que a própria obra de arte que, desse modo, torna-se para nós uma vivência, não foi destinada para uma tal concepção. Nossos conceitos de valor sobre o gênio e a vivencialidade não são, aqui, adequados. Podemos nos lembrar também de padrões totalmente diversos e, por exemplo, dizer: Não é a autenticidade da vivência ou a intensidade de sua expressão, mas a disposição artística de formas e maneiras fixas de dizer, que faz com que a obra de arte seja uma obra de arte. Essa contradição quanto aos padrões vale para todos os gêneros de arte, mas possui nas artes lingüísticas sua especial legitimação. Ainda no século XVIII, de uma forma surpreendente para a consciência moderna, a poesia e a retórica encontravam-se lado a lado. Kant vê em ambas "um jogo livre da imaginação e um negócio do entendimento". Tanto a poesia como a retórica são, para ele, belas artes, e valem como "libres", na medida em que a harmonia das duas capacidades do conhecimento, a sensibilidade e o entendimento, é alcançada em ambas de maneira não deliberada. O padrão da vivencialidade e da inspiração genial teria de contrapor a esta tradição um conceito muito diferente de arte "livre", a que somente responderia a poesia, na medida em que nela se tivesse suprimido todo o ocasional, e da qual a retórica deveria ser excluída inteiramente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

No conceito do símbolo ressoa, porém, um pano de fundo metafísico, que se afasta totalmente do uso retórico da alegoria. É possível ser conduzido, a partir do sensorial, ao divino. Pois o sensorial não é mera nadidade e treva, mas emanação e reflexo do verdadeiro. O conceito moderno de símbolo é desprovido dessa sua função gnóstica, e não é o seu bastidor metafísico compreensível. A palavra "símbolo" só pode ser elevada da sua aplicação originária, enquanto documento, sinal de reconhecimento, senha, conceito filosófico de um misterioso sinal, indo parar, com isso, na proximidade do hieróglifo, cuja decifração só alcançam os iniciados, porque o símbolo não é adoção qualquer de um signo ou a criação de um signo, mas pressupõe uma correlação metafísica do visível com o invisível, essa "coincidência" de duas esferas, encontra-se na base de todas as formas do culto religioso. Da mesma forma, a versão encontra-se nas proximidades da estética. O simbólico, segundo Solger, caracteriza uma "existência em que, de alguma forma, a idéia é reconhecida", portanto, a íntima unidade do ideal e do fenômeno, que é específica para a obra de arte. O alegórico, ao contrário, só deixa surgir essa unidade significante através da indicação a um outro, fora de si. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Na estética filosófica, sobretudo a caminho da "religião artística" grega, esse uso lingüístico já devia encontrar-se aclimatado. É o que demonstra nitidamente o desenvolvimento da filosofia da arte de Schelling  , a partir da mitologia. Karl-Philipp Moritz, a quem Schelling se reporta, já tinha, é verdade, rejeitado, na sua Doutrina dos deuses, a "dissolução numa mera alegoria" do que dissesse respeito às poesias mitológicas, mas ainda não empregava a expressão símbolo para essa linguagem da fantasia". Em contraposição Schelling escreve: "A mitologia em si, e em especial, toda composição da mesma, não devem ser entendidos nem como esquemáticos, nem como alegóricos, mas como simbólicos. Porque a exigência da representação absoluta da arte é a seguinte: representação com inteira indiferença, de maneira que o geral seja plenamente o singular, e o singular ao mesmo tempo seja o geral pleno, portanto, que seja e não que signifique". Quando Schelling (na crítica à concepção que Heyne tinha de Homero  ) estabelece dessa forma a verdadeira relação entre a mitologia e a alegoria, está ele preparando ao conceito do símbolo, ao mesmo tempo, uma posição central no âmbito da filosofia da arte. Semelhantemente, nos deparamos, em Solger, com a frase em que diz que toda arte é simbólica. O que ele quer dizer com isso é que a obra de arte é a própria existência da "idéia" — e não, por assim dizer, que significaria uma "idéia que se teria de procurar ao lado da obra de arte propriamente dita". É isso que, mais que tudo, é característico para a obra de arte, a criação do gênio, que o seu significado reside no próprio fenômeno e não que venha a ser introduzido arbitrariamente nele. Schelling reporta-se à germanização do símbolo através da palavra "imagem do sentido" (Sinnbild): Tão concreta, somente igual a si mesma como a imagem, e, no entanto, tão geral e significativa como o conceito". De fato, na caracterização do conceito do símbolo, já em Goethe, o decisivo tom está em que é a própria idéia que se dá existência nisso. Somente porque no conceito do símbolo encontra-se implícita a unidade interna de símbolo e simbolizado, é que esse conceito pôde elevar-se a um conceito básico universal e estético. O símbolo significa a coincidência do fenômeno sensorial com o significado supra-sensorial, e essa coincidência não é, tal qual no sentido original da palavra grega symbolon e sua sobrevivência no uso da terminologia das confissões religiosas, um acréscimo posterior, como a adoção de um signo, mas como a união de seres que se pertencem. Todo o simbolismo, através do qual "o sacerdócio faz refletir o mais elevado saber", repousa, antes, naquela "vinculação inicial" entre deuses e homens, assim escreve Friedrich Creuzer, de cujo "simbolismo" ele se impôs a tarefa, muito discutida, de trazer à fala o misterioso simbolismo dos tempos primitivos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Devemos nos conscientizar de que o aparecimento de tais indagações implica numa revisão fundamental dos conceitos básicos e estéticos. Isso porque, claramente, trata-se aqui de mais do que uma mudança reiterada do gosto e da avaliação estética. Mais do que isso, o conceito da consciência estética torna-se, ele mesmo, duvidoso — e com isso o ponto de vista da arte a que pertence. Será que, em face da obra de arte, o comportamento estético é uma atitude adequada? Ou será que o que denominamos "consciência estética" é uma abstração? A nova avaliação da alegoria, de que falamos, indica que, na verdade, também na consciência estética há um momento dogmático que firma sua validade. E causa diferença entre a consciência mítica e estética não deva ser absoluta, será que o conceito da arte não passará a ser, ele mesmo, questionável, por ser, como vimos, uma criação da consciência estética. Seja como for, não podemos duvidar de que as grandes épocas da história da arte foram aquelas em que a gente se acercava de configurações, sem qualquer consciência estética e sem o nosso conceito de "arte", configurações, cuja função de vida, religiosa ou profana, era compreensível para todos e não era degustável para ninguém apenas esteticamente. Pode-se acaso aplicar a elas o conceito de consciência estética, como tal, sem restringir seu verdadeiro ser? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Onde a arte domina, aí passam a valer as leis da beleza e são ultrapassadas as fronteiras da realidade. É o "reino ideal", a ser defendido contra todas as limitações, até mesmo contra a tutela moral do estado e da sociedade. Vincula-se certamente com o deslocamento interno na base ontológica da estética de Schiller  , o fato de que também seu extraordinário princípio, nas Cartas sobre a educação estética, se modifique na execução. Torna-se conhecido que uma educação pela arte torna-se uma educação para a arte. No lugar da verdadeira liberdade ética e política, para o que a arte deve nos preparar, desponta a formação de um "estado estético", uma sociedade de formação que se interessa pela arte Com isso, também a superação do dualismo kantiano do mundo dos sentidos e do mundo ético, que é representado pela harmonia da obra de arte e pela liberdade do jogo estético, transforma-se obrigatoriamente num novo antagonismo. A conciliação do ideal e da vida através da arte é, meramente, uma conciliação particular. O belo e a arte emprestam à realidade somente um brilho efêmero e transfigurado. A liberdade da índole humana, à qual ambos elevam, só é liberdade num estado estético e não na realidade. E assim que se abre no fundamento da conciliação estética do dualismo kantiano do ser e do dever, um dualismo ainda mais profundo e mais insolúvel. É a prosa da realidade alheada que, contra a qual, a poesia da conciliação estética tem de procurar sua própria autoconsciência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A idéia da formação estética, ao contrario — como a derivamos de Schiller — reside justamente em não mais vigorar nenhum padrão de conteúdo e em dissolver a unidade de filiação da obra de arte com o seu mundo. Uma expressão disso é a ampliação universal da posse que a consciência formada e estética reivindica para si. Tudo a que se atribui "qualidade" é seu. Abaixo disso, não faz mais nenhuma seleção, por não ser ela mesma, e não querer ser nada onde se pudesse mensurar uma seleção. Na qualidade de consciência estética, ela é refletida a partir de todo o gosto determinante e determinado e representa, ela mesma, um grau zero de determinação. A essa consciência não vale mais a filiação da obra de arte com seu mundo, sendo que, ao contrário, a consciência estética é o centro que vivencia, a partir do qual se mede tudo o que é válido como arte. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O que chamamos de obra de arte e vivenciamos esteticamente repousa, portanto, sobre um desempenho de abstração. Na medida em que não se leva em consideração tudo em que uma obra se enraíza, como seu contexto de vida originário, isto é, toda função religiosa ou profana em que se encontrava e em que possuía seu significado, é aí que se tornará visível a "pura obra de arte". A abstração da consciência estética produz, nesse particular, um desempenho que é, para si mesma, positivo. Permite ver e ser para si próprio aquilo que é a pura obra de arte. Denomino esse seu desempenho a "diferenciação estética". VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Essa crítica à doutrina da percepção pura, que se fez a partir da experiência pragmática, foi tornada, por Heidegger, em algo fundamental. Com isso, ela passa a ter validade também para a consciência estética, embora aqui o ver simplesmente não "faça vista grossa" sobre o que é visto, p. ex., com relação à sua utilidade geral para algo, mas demorar-se no aspecto. O olhar (Schauen) demorado e o perceber não são simplesmente um ver o puro aspecto, mas continuam sendo, eles próprios, um aprender como… O gênero de ser do que foi concebido (Vernommen) esteticamente não é ocorrência (Vorhandenheit). Onde se trata de uma representação significante, p. ex., em obras da arte plástica, desde que não sejam abstratas-desprovidas-de-objeto, a significância para o ler do aspecto é claramente norteadora. Só quando "reconhecemos" o que está representado, podemos "ler" uma pintura, só então é que ela é, no fundo, uma pintura. Ver significa subdividir desmembrando. Enquanto ficamos testando formas variáveis de agrupamento ou ficamos oscilando entre elas, como no caso de certos quadros enigmáticos, ainda não conseguimos ver o que é. Um quadro enigmático é, ao mesmo tempo, a eternização artística de tal oscilar, o "tormento" do ver. Algo semelhante a isso ocorre com a obra de arte lingüística. Só quando entendemos um texto — portanto, quando, pelo menos, dominamos a linguagem de que se trata — , é que poderá ser uma obra de arte lingüística para nós. Mesmo quando, por exemplo, escutamos a música absoluta, é necessário que a "entendamos". E somente quando a entendemos, quando ela se torna "clara" para nós, é que vem a ser para nós uma configuração artística. Assim, embora a música absoluta seja, como tal, uma pura mobilidade da forma, uma espécie de matemática toante, onde não há conteúdo objetivamente significativo que possamos perceber, não obstante o entender mantém uma relação para com o que é significativo. A indeterminação dessa relação é que representa a relação específica de significado de uma tal música. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O mero ver, o mero ouvir são abstrações dogmáticas, que reduzem artificialmente os fenômenos. A percepção abrange sempre o significado. É por isso um formalismo ao avesso, que, além disso, não pode se reportar a Kant, no sentido de procurar, tão-somente na sua forma, a unidade da configuração estética, em oposição ao seu conteúdo. Kant, com o seu conceito da forma, tinha em mente algo bem diferente. Não contra o conteúdo significativo de uma obra de arte, mas contra o mero estímulo sensorial do que seja material, o conceito de forma de Kant designa a construção da configuração estética. O chamado conteúdo objetivo não é, de forma alguma, matéria à espera de uma conformação posterior, mas encontra-se sempre vinculada, na obra de arte, à unidade da forma e do significado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Se quisermos levar em conta a crítica à doutrina da produtividade inconsciente do gênio, vemo-nos colocados de novo diante do problema que Kant tinha resolvido através da função transcendental, que atribuía ao conceito de gênio. O que é uma obra de arte, e como se diferencia de um produto artesanal ou mesmo de uma "obra mal feita", isto é, de algo esteticamente de menor valor? Para Kant e para o idealismo, a obra de arte era definida como a obra do gênio. Sua caracterização, de ser algo completamente bem sucedido e exemplar, confirmava-se ao oferecer ao usufruto e à contemplação um objeto inesgotável de permanência e interpretação. O fato de que à genialidade do criar corresponde uma genialidade do desfrutar já se encontrava na doutrina de Kant do gosto e do gênio, e o ensinavam ainda mais expressamente K. Ph. Moritz e Goethe. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Como deve-se pensar também a consumação de uma obra de arte, o seu estar pronta? O que é feito ou produzido alheado a isso ganha o padrão de sua consumação através de sua finalidade, isto é, é determinado pelo uso que deve ser feito disso. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

[100] O que foi produzido alcança o seu fim, o que foi feito fica pronto, quando satisfazem à finalidade que lhe foi determinada. Mas de que maneira deve-se imaginar, agora, o padrão de perfeição de uma obra de arte? Por mais racional e sobriamente que se encare a "produção" artística — muita coisa do que denominamos obra de arte não se destina, absolutamente, ao uso, e nenhuma delas ganha, através de uma tal finalidade a medida do seu estar pronta. Nesse caso, o ser da obra de arte se apresenta apenas como uma interrupção de um processo de formação que, virtualmente, aponta para além de si? Será que, em si mesmo, não poderá, de forma alguma, consumar-se? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Paul Valéry viu as coisas, de fato, dessa maneira. Ele também não temeu as conseqüências que surgem para aquele que se defronta com uma obra de arte e procura entendê-la. Se realmente é válido o fato de que uma obra de arte não é consumável em si mesma, em que se irá mensurar a adequabilidade da recepção não pode, afinal, conter nada que seja obrigatório. Daí resulta pois que tem de ser deixado ao receptor o que venha a fazer, de sua parte, daquilo que tem diante de si. Assim, uma maneira de compreender uma configuração não será menos legítima que a outra. Não existe nenhum padrão de adequabilidade. Não somente pelo fato de que o próprio poeta não o possui — com o que iria concordar também a estética do gênio. Antes, todo encontro com a obra tem a categoria e o direito de uma nova produção. — Isso me parece um nihilismo hermenêutico insustentável. Se Valéry tirou possivelmente tais conseqüências para a sua obra, para escapar ao mito da produção inconsciente do gênio, parece-me que, na verdade, acabou se deixando prender por ele. Porque então transfere ao leitor e ao intérprete o poder pleno da criação absoluta, que ele mesmo não quer exercitar. A genialidade da compreensão não oferece, na verdade, nenhuma informação melhor que a da genialidade da criação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A mesma aporia ocorre quando, em lugar de partir do conceito do gênio, parte-se do conceito da vivência estética. Esse problema já foi levantado pela dissertação fundamental de Georg von Lukács, A relação sujeito-objeto na estética. Ele [101] confere à esfera estética uma estrutura heracíítica, e com isso quer dizer o seguinte: a unidade do objeto estético não chega a ser uma situação dada real. A obra de arte é apenas uma forma do vazio, o mero ponto nodal na possível maioria das vivências estéticas, nas quais se encontra apenas o objeto estético. Como se vê, há absoluta descontinuidade, isto é, decomposição da unidade do objeto estético na multiplicidade de vivências, uma conseqüência necessária da estética da vivência. Vinculando-se à idéia de Lukács, Oskar Becker chegou à seguinte formulação: "Vista temporalmente, a obra é apenas um momento (isto é, agora), é ’agora’ esta obra, e já agora não é mais!" Isso, de fato, é algo conseqüente. A fundamentação da estética na vivência conduz à absoluta pontualidade, que suspende tanto a unidade da obra de arte como a identidade do artista consigo mesmo e a identidade de quem a compreende ou a usufrui. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O panteão da arte não é uma atualidade independente do tempo, que se apresenta à pura consciência estética, mas o fato de um espírito histórico que se concentra e se congrega. Também a experiência estética é uma forma de compreender-se. Todo compreender-se se completa, porém, em algo diferente do que aí se compreende, e inclui a unidade e a mesmidade desse diferente. Uma vez que encontramos no mundo a obra de arte e em cada obra de arte individual um mundo, este não continua a ser um universo estranho em que, por encantamento, estamos à mercê do tempo e do momento. Nele, mais do que isso, aprendemos a nos compreender, e isso significa que suspendemos a descontinuidade e a pontualidade da vivência na continuidade da nossa existência. O que importa, por isso, é chegar a um ponto de partida, com relação ao belo e à arte que não pretenda a imediaticidade, mas que corresponda à realidade histórica do homem. A invocação à imediaticidade, ao que for genial no momento, ao significado da "vivência", não poderá resistir à reivindicação da existência humana à continuidade e à unidade do que é auto-evidente. A experiência da arte não poderá ser comprimida no descomprometimento da consciência estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Essa visão negativa significa positivamente: a arte é conhecimento e a experiência da obra de arte torna esse conhecimento partilhável. Com isso se coloca a pergunta de como se poderá fazer jus à verdade da experiência estética e de como suplantar a radical subjetivação do estético, que teve início com a "Crítica do juízo estético" de Kant. Já mostramos que foi uma abstração metódica, tendo por finalidade um trabalho de fundamentação bem determinado e transcendental, que levou Kant a vincular o juízo estético inteiramente ao estado do sujeito. Se, em seguida, essa abstração estética foi entendida do ponto de vista do conteúdo, e foi transformada na exigência de compreender a arte "meramente do ponto de vista estético", vemos agora como essa exigência de abstração para a experiência real da arte depara-se com uma contradição insolúvel. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Eis o que só dificilmente se pode reconhecer quando, com Kant, se mensura a verdade do conhecimento com o conceito do conhecimento da ciência e com o conceito de realidade da ciência da natureza. É necessário entender o conceito da experiência com mais amplidão do que Kant o fez, a fim de que se possa entender também, como experiência, a experiência da obra de arte. Com relação a essa tarefa, podemos nos reportar às admiráveis preleções de Hegel sobre a estética. Nelas, de uma forma extraordinária, o conteúdo de verdade que há em toda experiência da arte é trazido ao reconhecimento e, ao mesmo tempo, transmitido com consciência histórica. Com isso, a estética torna-se uma história das cosmovisões, isto é, uma história da verdade, tal qual se faz visível no espelho da arte. Com isso, confirma-se fundamentalmente a tarefa que formulamos, ou seja, a de justificar na própria experiência da arte o conhecimento da verdade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Para fazer justiça à experiência da arte, iniciamos com a crítica da consciência estética. A experiência da arte confessa, de si mesma, que não consegue apreender num conhecimento definitivo a verdade consumada daquilo que experimenta. Aqui não existe, por assim dizer, nenhum progresso de per si, e nenhum esgotamento definitivo daquilo que se encontra numa obra de arte. A experiência da arte sabe disso por si mesma. Seja como for, o que importa é não simplesmente admitir o que a consciência estética pensa como sua experiência. Porque ela a pensa, como vimos, em conseqüência extrema, como a descontinuidade das vivências. No entanto, consideramos como inaceitável essa conseqüência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Se quisermos saber o que é a verdade nas ciências do espírito, teremos então de dirigir a questão da filosofia ao conjunto dos procedimentos das ciências do espírito, da mesma forma que Heidegger a dirigiu à metafísica e tal qual nós a dirigimos à consciência estética. Não iremos ter de aceitar a resposta da auto-evidência das ciências do espírito, mas teremos de indagar o que é, na verdade, a sua compreensão. Na preparação dessa pergunta de longo alcance o que poderá servir, em especial, será a indagação sobre a verdade da arte, justamente porque inclui a compreensão da experiência da obra de arte, ou seja, representa até mesmo um fenômeno hermenêutico, e não, certamente, no sentido de um método científico. A compreensão pertence, antes, ao próprio encontro com a obra de arte, de maneira que apenas do ponto de vista do modo de ser da obra de arte é que se pode aclarar essa pertença. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

[107] A ontologia da obra de arte e seu significado hermenêutico VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Para isso, escolhemos, como primeiro ponto de partida, um conceito que desempenhou importante papel na estética: o conceito do jogo. No entanto, o que nos importa é libertar esse conceito de seu significado subjetivo, que apresenta em Kant e em Schiller e que domina toda a nova estética e toda a nova antropologia. Quando, em correlação com a experiência da arte, falamos de jogo, jogo não significa aqui o comportamento ou muito menos o estado de ânimo daquele que cria ou daquele que usufrui e, sobretudo, não significa a liberdade de uma subjetividade que atua no jogo, mas o próprio modo de ser da obra de arte. Havíamos reconhecido na análise da consciência estética que a contraposição de uma consciência estética e de um objeto não corresponde ao estado das coisas. É esse o motivo por que nos é importante o conceito do jogo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Nossa indagação quanto à natureza do próprio jogo não poderá, por isso, encontrar nenhuma resposta, se é que a estamos esperando da reflexão subjetiva de quem joga. Em vez disso perguntamos pelo modo de ser do jogo como tal. Já tínhamos visto que não é a consciência estética, mas a experiência da arte e, com isso, a questão pelo modo do ser da obra de arte que terá de ser objeto de nossa ponderação. Mas justo isso a experiência da arte, que temos de fixar contra a nivelação da consciência estética, ou seja, que não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é por si. A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá transformar aquele que a experimenta. O "sujeito" da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte. Encontra-se aí justamente o ponto em que o modo de ser do jogo se torna significante. Pois o jogo tem uma natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam. O jogo encontra-se também lá, sim, propriamente lá onde nenhum ser-para-si da subjetividade limita o horizonte temático e onde não existem sujeitos que se comportam ludicamente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

É sobretudo desse sentido medial do jogo que só então resulta a relação com o ser da obra de arte. A natureza, na medida em que existe sem finalidade e intenção, inclusive sem esforço, e enquanto é um jogo que sempre se renova, pode, por isso mesmo, surgir como um modelo da arte. Nas palavras de Friedrich Schlegel: "Todos os jogos sagrados da arte são apenas reproduções remotas do jogo infinito do mundo, da obra de arte que se forma eternamente". VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

"A realidade" encontra-se sempre num horizonte de futuro de possibilidades desejadas e temidas, seja como for, ainda não decididas. Por isso, ela é sempre de tal modo que se despertam expectativas que se excluem umas às outras, das quais nem todas podem ser preenchidas. É a indefinição do futuro que permite um tal excesso de expectativas, de modo que a realidade acaba ficando necessariamente abaixo de nossas expectativas. Quando, um caso especial, uma correlação de sentido com o real se fecha e se preenche de tal maneira que desaparece todo esse terminar-no-vazio dos encaminhamentos de sentido, então uma tal realidade passa a ser como um espetáculo. Da mesma maneira, quem consegue ver o conjunto da realidade como um círculo de sentido fechado, no qual tudo se plenifica, falará propriamente da comédia e da tragédia da vida. Nesses casos em que a realidade é entendida como jogo, sobressai o que é a realidade do jogo, que caracterizamos como o jogo da arte. O ser de todo jogo é sempre resgate, pura realização, energeia, que traz seu telos em si mesmo. O mundo da obra de arte, no qual um jogo vem à fala pleno, dessa maneira, na unidade de seu decurso, é, de fato, um mundo totalmente transformado. Nele, toda e qualquer pessoa reconhece: é assim mesmo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Dessa ponderação há algo a fixar: O sentido do conhecimento da mimesis é reconhecimento. Mas o que vem a ser reconhecimento? Apenas uma análise mais exata do fenômeno é o que nos tornará bem evidente o sentido do ser da representação, que é o que nos importa. É conhecido o fato de que já Aristóteles   destaca que a representação artística faz parecer agradável até mesmo o que é desagradável, e por essa razão, Kant define a arte como a bela representação (Vorstellung) de uma coisa, porque a arte sabe fazer parecer belo também o que é feio. Com isso, é claro, não se está aludindo, por exemplo, à artificialidade e habilidade (Kunstfertigkeit) como tais. Não costumamos admirar, como no caso dos artistas acrobatas do circo, a arte com que se faz alguma coisa. A isso dedicamos apenas um interesse secundário, como diz expressamente Aristóteles. O que propriamente experimentamos numa obra de arte e para onde dirigimos nosso interesse é, antes, quão verdadeira ela é, isto é, em que medida conhecemos e reconhecemos algo e a nós próprios nela. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Depois que as aporias dessa mudança subjetiva da estética se tornaram nítidas para nós, vemo-nos remetidos de volta à antiga tradição. Se a arte não é a variedade de vivências cambiantes, cujo objeto, cada vez subjetivo, é preenchido com significado, como se fosse uma fórmula vazia, a "representação" terá de ser reconhecida como o modo de ser da própria obra de arte. Isso deveria ser preparado através do fato de que o conceito da representação foi derivado do conceito do jogo, na medida em que o representar-se é a verdadeira essência do jogo (espetáculo) — e com isso também da obra de arte. O jogo jogado é que, através de sua representação, se dirige ao espectador, e de tal maneira que o espectador passa a ser parte integrante do objeto, apesar de todo o distanciamento da contraposição. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A mesma coisa e de maneira semelhante vale para o espetáculo teatral em si e para aquilo que ele é enquanto poesia. A encenação de um espetáculo teatral não pode ser separada dele como algo que não pertence ao seu ser essencial, já que é tão subjetivo e fluente como as vivências estéticas, nas quais é experimentado. Antes, na execução e somente nela — o mais claro exemplo é o da música — encontra-se a obra, ela mesma, tal qual no culto encontra-se a divindade. Aqui se torna visível o proveito metódico que se obtém, partindo-se do conceito de jogo (espetáculo). A obra de arte não é simplesmente isolável da "contingência" das condições de acesso sob as quais se mostra, e onde essa isolação acaba ocorrendo, o resultado é uma abstração, que reduz o ser próprio da obra. O espetáculo só acontece onde está sendo representado, e música em plenitude deve soar. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Que conseqüências ontológicas isso tem? O que é que resulta, quando partimos dessa maneira do caráter lúdico do jogo, a fim de determinar mais acuradamente o modo de ser do ser estético? Uma coisa é clara: o espetáculo teatral e a obra de arte, entendida a partir dele, não são um mero sistema de regras e de prescrições comportamentais, no âmbito das quais o jogo (espetáculo) pode se realizar. O representar de um espetáculo não quer ser entendido como uma satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar-na-existência da própria poesia. Assim, a questão é saber o que é propriamente, de acordo com o seu ser, essa obra poética, que só se torna espetáculo quando é representada, na representação, e que no entanto é o seu ser próprio que nisso se torna representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Com isso não se quer negar que aqui resida um possível ponto de partida para a reflexão estética. Em diversas encenações da mesma peça teatral pode-se, por exemplo, diferenciar um modo de intermediação de outro, assim como se pode imaginar diversamente também as condições de acesso a obras de arte de outro gênero — p. ex., quando se examina uma construção relacionando-a com a pergunta do efeito que produziria se fosse "descoberta" ou que aspecto deveria ter sua circunvizinhança. Ou quando nos encontramos diante da questão da restauração de um quadro. Em todos esses casos, a obra em si virá a ser diferenciada de sua "representação", mas se menospreza a vinculação da obra de arte, quando se acha que suas possíveis variações podem, na representação, ser livres e feitas aleatoriamente. Na verdade, todas elas se subordinam ao padrão da representação "correta". VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Conhecemos isso, por exemplo, no teatro moderno, como sendo a tradição que provém de uma encenação, da criação de um personagem ou da prática de uma execução musical. Não há aqui nada que seja um um-ao-lado-do-outro aleatório, uma mera variedade de concepções antes, forma-se, a partir da tomada constante de modelos e da modificação produtiva da tradição, com a qual cada nova tentativa terá de dialogar. O artista reprodutivo tem disso uma certa consciência. A maneira pela qual ele se aproxima de uma obra ou de um personagem já está sempre relacionada, de alguma forma, com modelos que fizeram a mesma coisa. Não se trata aqui, de maneira alguma, de uma cega imitação. A tradição que é criada por um grande ator, regente ou músico, na medida em que seu modelo continua atuante, não é necessariamente um obstáculo para livre criação, mas se terá fundido de tal maneira com a própria obra, que o confronto com esse modelo não evoca menos a reformulação criativa posterior de todo artista, do que o confronto com a própria obra. As artes reprodutivas possuem exatamente esse algo especial, ou seja, algo que libera expressamente as obras, com as quais elas têm a ver, para tais reformulações e com isso mantêm visivelmente aberta a identidade e a continuidade da obra de arte, voltadas para o futuro. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A intermediação total significa que o intermediante, enquanto intermediante, suspende-se. Isso quer dizer que a reprodução (no caso de peça teatral ou de música, mas também na palestra épica ou lírica), não será, como tal, temática, mas através dela, perpassando-a, e nela, a obra torna-se representação. Veremos que a mesma coisa vale para o caráter de acesso e de encontro, em que, construções e quadros se representam. Também aqui o acesso, como tal, não será ele mesmo temático, mas, ao contrário, também não é o caso de que se tenha de abstrair dessas relações de vida, a fim de compreender a própria obra. Antes, está nelas próprias. O fato de que existem obras que se originam num passado, do qual penetram no presente como monumentos duradouros, ainda não torna o seu ser, nem de longe, um objeto da consciência estética ou histórica. Enquanto mantêm-se em suas funções, elas são contemporâneas a todo e qualquer presente. Mesmo quando, como obras de arte, ainda somente encontram seu lugar nos museus, não estão totalmente alheados de si mesmas. Não somente porque uma obra de arte jamais deixa apagar inteiramente os indícios de sua função originária, tornando possível ao perito, em reconhecendo-as, vir a restaurá-la, — a obra de arte, que recebe a indicação de seu lugar na justaposição de uma galeria, continua a ser sempre uma origem própria. Dá validade a si mesma, e como o faz — ao "matar" uma outra ou tornar-se bom complemento de uma outra — é algo ainda de si mesma. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Perguntamos pela identidade desse si-mesmo, que se representa tão diversamente na mudança dos tempos e das circunstâncias. É evidente que, nos aspectos cambiantes de si mesmo, não se esfacela de tal maneira que venha a perder sua identidade, mas está presente em todos eles. Todos lhe pertencem. Todos eles são simultâneos a ele. Assim é que se apresenta a tarefa de uma interpretação temporal da obra de arte. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Que simultaneidade é essa? Que temporalidade é essa que convém ao ser estético? Em geral, a essa simultaneidade e essa presencialidade do ser estético chamamos de a-temporalidade. Mas a tarefa que se apresenta é pensar essa a-temporalidade juntamente com a temporalidade à qual pertence essencialmente. De início, a a-temporalidade não é nada mais que uma determinação dialética que se eleva sobre o fundamento da temporalidade e sobre a oposição em relação à temporalidade. Também o discurso sobre duas temporalidades, uma temporalidade histórica e uma temporalidade supra-histórica, pelas quais Sedlmayr procura determinar a temporalidade da obra de arte em correlação com Baader   e reportando-se a Bollnow  , não consegue ultrapassar uma oposição dialética. O tempo "sagrado", supra-histórico, no qual o "presente" não é o momento efêmero mas a plenitude do tempo, é descrito do ponto de vista da temporalidade "existencial", pouco importando o que a caracterize, seja a indolência, o desembaraço, a inocência ou o que quer que seja. Percebe-se a insuficiência dessa objeção quando analisamos a questão e concedemos que o "verdadeiro tempo" soergue-se no "tempo-aparente" histórico-existencial. Um tal soerguimento teria, evidentemente, o caráter de uma epifania; isto significa, porém, que seria sem continuidade para a consciência que o experimenta. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Com isso repetem-se no fundo as aporias da consciência estética que apresentamos acima. Pois é justamente a continuidade que tem de produzir toda compreensão do tempo, mesmo quando se trata da temporalidade da obra de arte. É aqui que o mal-entendido que se deu com a exposição ontológica do horizonte do tempo de Heidegger se vinga. Em vez de reter o sentido metodológico da análise existencial da pre-sença, procura-se tratar essa temporalidade existencial e histórica da pre-sença, determinada pela cura, pelo preceder a morte, isto é, pela finitude radical, como uma entre outras possibilidades de compreensão da existência, esquecendo além do mais que o que se revela aqui como temporalidade é o próprio modo de ser da compreensão. Querer distinguir a verdadeira temporalidade da obra de arte, como "tempo sagrado", do tempo decadente e histórico, não passa, na verdade, de um mero reflexo da experiência humano-finita da arte. Somente uma teologia bíblica do tempo, cujo saber não procede do ponto de vista da autocompreensão humana mas da revelação divina, poderia falar de um "tempo sagrado" e legitimar teologicamente a analogia entre a a-temporalidade da obra de arte e esse "tempo sagrado". Sem essa legitimação teológica, o discurso sobre o "tempo sagrado" encobre o verdadeiro problema que reside não no fato de a obra de arte poder subtrair-se ao tempo mas na sua temporalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Partimos do fato de que a obra de arte é jogo, isto é, que seu verdadeiro ser não é separável de sua representação e que na representação surge a unidade e identidade de uma configuração. A dependência que esta tem de representar-se faz parte de sua essência. Isso significa que, por mais mudança e desfiguração que a representação venha a sofrer, continua sendo a mesma. O que perfaz a vinculabilidade de toda e qualquer representação é justamente o fato de conter ela mesma a referência para com a configuração e de se subordinar ao padrão de correção que se deriva daí. Isso pode ser confirmado até mesmo no caso extremo e privativo de uma representação absolutamente deformadora. Torna-se consciente como deformação, na medida em que a representação é julgada e pensada como representação da própria configuração. A representação tem, de forma inextinguível e inseparável, o caráter da repetição do mesmo. É claro que, aqui, repetição não significa que algo venha a se repetir em sentido próprio, isto é, seja reconduzido a um original. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Seja como for, a "simultaneidade" convém ao ser da obra de arte. Ela perfaz a natureza do "tomar-parte". Não é a simultaneidade da consciência estética. Pois essa simultaneidade significa o ser-ao-mesmo-tempo e a igual-validade (Gleich-Gültigkeit) de diversos objetos estáticos da vivência numa consciência. A "simultaneidade", ao contrário, significa aqui que algo individual, por mais remota que seja sua origem, na sua representação, alcança plena atualidade. A simultaneidade não é, pois, uma forma de acontecimento na consciência, mas uma tarefa para a consciência e um desempenho que será exigido dela. É constituída de maneira a se prender de tal forma à coisa em causa que esta se torna "simultânea", o que significa, porém, que toda intermediação é subsumida em total atualidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Nesse sentido, a simultaneidade convém principalmente à [133] ação cúltica, como também à anunciação na pregação. O sentido do tomar-parte é, aqui, a genuína participação no próprio acontecimento salvífico. Ninguém pode duvidar que a diferenciação estética, por exemplo, da "bela" cerimónia ou da "boa pregação", rente à reivindicação que nos é dirigida, encontra-se fora do lugar. No entanto, eu afirmo que, no fundo, a mesma coisa vale para a experiência da arte. Também aqui a intermediação tem de ser pensada como sendo total. Nem o ser-para-si do artista que cria — por exemplo, sua biografia — nem o ser-para-si do ator que representa uma obra, nem mesmo o ser-para-si do espectador, que acolhe o espetáculo, nenhum deles possui, em face do ser da obra de arte, uma legitimação própria. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que está sendo representado diante de cada um é para eles tão destacado dos moldes usuais de mundo e tão concentrado num núcleo de sentido independente, que não motiva ninguém a sair daí para qualquer outro futuro ou realidade. O receptor é remetido a uma distância absoluta, que lhe veda qualquer participação que tenha uma finalidade de cunho prático. No seu verdadeiro sentido, essa distância para o olhar, que possibilita a participação genuína e sob todos os ângulos, daquilo que está sendo representado diante dele. Ao auto-esquecimento estático do espectador corresponde, por isso, a sua continuidade consigo mesmo. Justamente a partir daquilo em que ele, como espectador, se perde, é que lhe é exigida a continuidade do sentido. É a verdade do seu próprio mundo, do mundo religioso e do ético, no qual vive, que está sendo representada diante dele e na qual se reconhece. Tal qual a parusia, o absoluto presente caracterizou o modo de ser do ser estético e, não obstante, uma obra de arte continua sendo a mesma, por toda parte onde quer que ocorra um tal presente, assim também o momento absoluto, em que se encontra o espectador é, ao mesmo tempo, auto-esquecimento e intermediação consigo mesmo. O que arranca de tudo, devolve-lhe, concomitantemente, o todo do seu ser. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A teoria aristotélica da tragédia deverá nos servir, portanto, como exemplo para a estrutura do ser estético. É conhecido que ela está em correlação com a poética e que somente parece ter validade para escritos dramáticos. Não obstante, o trágico é um fenômeno fundamental, urna figura de sentido, que não ocorre somente na tragédia, a obra de arte trágica no sentido estrito da palavra, mas que tem seu lugar também noutros gêneros de arte, principalmente nas obras épicas. Na verdade, nem se trata de um fenômeno especificamente artístico, na medida em que se encontra também na vida. Por esse motivo, os mais recentes pesquisadores (Richard Hamann, Max Scheler  ) estão vendo o trágico simplesmente como um momento extra-estético. Tratar-se-ia aqui de um fenômeno ético-metafísico, que intervém na esfera da problemática estática somente de fora. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Não é diferente o que ocorre com as outras artes, sobretudo com as artes plásticas. O mito estético da fantasia que cria livremente, que transforma a vivência em obra literária, e o culto do gênio, que dele faz parte, testemunha apenas que, no século XIX, o acervo da tradição mítico-histórica já não era mais um bem incontestável. Porém, mesmo aí, o mito estético da fantasia e da invenção genial ainda representa um exagero, que não resiste àquilo que realmente é. Mesmo assim, a escolha do tema e a formulação do tema escolhido não surgem do livre-arbítrio do artista e não são uma mera expressão de sua interioridade. Antes, o artista dirige-se a estados de ânimo preparados e, para isso, escolhe o que promete causar-lhe efeito. Ele próprio encontra-se em meio às mesmas tradições como o público que ele tem em vista e que se congrega. Nesse sentido, é verdade que ele, como indivíduo, como consciência pensante, não precisa saber expressamente o que faz e o que manifesta sua obra. Não se trata nunca apenas de um mundo estranho da magia, do arrebatamento, do sonho ao qual se sente arrastado o ator, o escultor ou o espectador, mas é sempre ainda o seu próprio mundo, ao qual ele, mais propriamente se transfere, ao se reconhecer mais profundamente nele. Permanece uma continuidade de sentidos, que congrega a obra de arte e o mundo da existência, e da qual nem mesmo a consciência alheada de uma sociedade instruída nunca se separa totalmente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Assim de início, parece que, nas artes plásticas, a obra possui uma identidade tão inequívoca, que a ela não corresponde nenhuma variabilidade da representação. O que varia não parece pertencer à faceta da própria obra, e tem, visto desse ângulo, um caráter subjetivo. Assim, do ponto de vista do sujeito, é possível que surjam restrições que prejudicam a vivência adequada da obra, porém tais restrições subjetivas podem ser fundamentalmente superadas. Cada uma das obras da arte plástica pode ser "diretamente" experienciada por si mesma, isto é, sem que necessite de outra intermediação. Na medida em que existem reproduções de quadros, estes certamente já não pertencem à obra de arte, ela mesma. Porém, na medida em que sempre existem pré-requisitos subjetivos, sob os quais um quadro se torna acessível, teremos naturalmente, de abstrair deles, se quisermos experienciar a ele próprio. Por essa razão, parece que a diferenciação estética possui aqui sua inteira legitimidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Ela poderá apelar, especialmente, para aquilo que, segundo o uso da linguagem corrente, se chama um "quadro". Sob essa designação, entendemos, sobretudo, o quadro de parede contemporâneo, que não está fixado em lugar determinado, e cercado pela moldura, a si mesmo se representa inteiramente — possibilitando, por isso mesmo, uma justaposição ao gosto de cada um, tal qual se vê na galeria moderna. Um tal quadro, ao que parece, não tem absolutamente nada em si da dependência objetiva de intermediação, que realçamos na obra literária e na música. Esse quadro, que é pintado exclusivamente para a exposição ou galeria, o que foi se tornando regra com o recuo da arte por encomenda, vem claramente ao encontro da exigência de abstração da consciência estética, bem como da teoria da inspiração, que foi formulada na estética do gênio. O quadro parece pois dar razão à imediaticidade da consciência estética. É como se fosse a principal testemunha com relação à sua exigência universal e não se trata, visivelmente, de nenhuma coincidência casual o fato de que a consciência estética, que desenvolve o conceito da arte e do artístico como forma de concepção de configurações tradicionais, e que, com isso, realiza a diferenciação estética, é simultânea com a criação de acervos que reúnem no museu tudo o que, nesse sentido, estamos vendo. Com isso, tornamos toda obra de arte ao mesmo tempo num quadro; ao livrá-la de todas as suas relações vitais e do que há de especial nas suas condições de acesso, como um quadro, colocamo-la cercada por uma moldura e penduramo-la igualmente na parede. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Partimos do seguinte: que o modo de ser da obra de arte é representação e nos indagamos como se torna verificável o sentido da representação, naquilo que denominamos quadro. A representação não pode, aqui, significar ato de copiar. Teremos de determinar mais de perto o modo de ser do quadro, procurando diferenciar a maneira pela qual, nele, a representação se vincula a um quadro originário, da relação da ação de copiar, o vínculo da cópia com o quadro original. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Em contrapartida ao modo de pensar da mais recente estética, tínhamos desenvolvido acima o conceito do jogo como o genuino acontecimento da arte. Essa tentativa veio agora a se confirmar no fato de que, também o quadro — e com isso o conjunto da arte não dependente de re-produção — é um acontecimento do ser e, por isso, não pode ser adequadamente entendido como objeto de uma consciência estética, mas, antes, [149] pode ser compreendido em sua estrutura ontológica, a partir de fenômenos como o da re-presentação. O quadro é um acontecimento do ser — nele o ser torna-se um fenômeno sensorial-visível. A originalidade da imagem, portanto, não se limita à função "retratante" do quadro — e, assim, também não ao domínio particular da pintura e das artes plásticas "objetivas", do qual, por exemplo, a arte da construção ficaria totalmente excluída. A originalidade da imagem é, antes, um momento da essência, que encontra seu fundamento no caráter de representação da arte. A "idealidade" da obra de arte não pode ser determinada através da relação com uma idéia como um ser a ser imitado, reproduzido, senão que, como diz Hegel, como o "aparecer" da própria idéia. A partir do fundamento de uma tal ontologia do quadro, torna-se infundada a primazia do quadro pintado sobre madeira, que faz parte de um acervo de pinturas e que corresponde à consciência estética. O quadro guarda, antes, uma relação indissolúvel com o seu mundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Se partirmos do fato de que a obra de arte não pode ser compreendida do ponto de vista da consciência estética, muitos fenômenos, que assumem uma posição marginal para a mais recente estética, perdem o seu caráter problemático, e até se deslocam para o centro de um questionamento "estético", que não se reduz através de uma forma artificial. O que estou querendo dizer são fenômenos como o portrait, a poesia em homenagem a, ou mesmo a alusão feita na comédia contemporânea. Os conceitos estéticos portrait, em homenagem a e alusão são, eles próprios, naturalmente, formados pela própria consciência estética. O que há de comum nesses fenômenos apresenta-se, para a consciência estética, no caráter da ocasionalidade, que tais formas de arte por si mesmas reivindicam. Ocasionalidade quer dizer que o significado continua se determinando, quanto ao conteúdo, a partir da ocasião em que ele é pensado, de maneira que ele contém mais do que sem essa ocasião. Assim, o portrait contém uma relação com o representado, para a qual não temos de deslocá-lo primeiro, mas que é intensionado expressamente na própria representação, caracterizando-o como portrait. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que importa reconhecer é que aquilo que chamamos de ocasionalidade não representa, de forma alguma, uma redução da exigência artística e da univocidade artística de tais obras. Pois, o que se apresenta à subjetividade estética como "irrupção do tempo no jogo" e que na era da arte vivencial apareceu como uma redução do significado estético de uma obra. É, na verdade, apenas o reflexo subjetivo daquela relação ontológica que elaboramos acima. Uma obra de arte pertence tão estreitamente àquilo com o qual tem relação, que enriquece o ser daquele outro como que através de um novo acontecimento do ser. No quadro, ser-fixado; na poesia, ser-tratado; ser meta de uma alusão, do ponto de vista do palco, isso tudo não são efemeridades, que permanecem distanciadas do ser, mas representações desse próprio ser. O que dissemos de modo geral acima sobre a valência de ser do quadro inclui também esse momento ocasional. Assim, apresenta-se o momento da ocasionalidade, que vem ao encontro nos fenômenos citados, como um caso de exceção de uma relação geral, que convém ao ser da obra de arte: a fim de experimentar a continuidade da determinação de seu significado a partir da "ocasião" de seu vir à representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Reside pois na natureza das obras dramáticas ou musicais que a sua execução em diversas épocas e em diversas ocasiões é e terá de ser diferente. Agora, o que importa é compreender que, mutatis mutandis, o mesmo corresponde às artes estatuárias. Também aí não se poderia dizer que a obra seja "em si" e que apenas o efeito seja algo cada vez diferente — é a própria obra de arte que se apresenta diferentemente, segundo as condições vão se modificando. O observador dos nossos dias não apenas vê diferente, ele também vê outra coisa, pense-se apenas no fato de que a idéia do mármore pálido da antiguidade domina o nosso gosto, bem como o nosso comportamento conservador desde os dias da Renascença, ou qual o espelhamento da percepção classicista representa, no Norte romântico, a espiritualidade puritana das catedrais góticas. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Mas, basicamente, também as formas de arte especificamente ocasionais, p. ex., a parabase na comédia antiga ou a caricatura na luta política, que tomaram por alvo uma "ocasião" plenamente determinada — e, finalmente, também o portrait — são formulações da ocasionalidade geral, que faz jus à obra de arte através do fato de que se determina novamente de ocasião em ocasião. Mesmo a determinação única à qual, nesse sentido restrito, se preenche um momento ocasional na obra de arte, ganha no ser da obra de arte uma participação na universalidade, que a torna capaz de uma nova realização — de maneira que a singularidade de sua relação de ocasião torna-se indissociável, mas a relação na própria obra, tornada portrait, torna-se independente da singularidade de sua relação com o quadro original e, mesmo assim, contém-no em si mesmo, ao superá-lo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

As obras em quadro, que são monumentos religiosos ou profanos, dão, por isso, testemunho da valência universal do ser do quadro, com maior nitidez do que o portrait íntimo. Pois é sobre essa valência que repousa a sua função pública. Um monumento contém o que nele está representado, numa atualidade específica, que evidentemente é algo muito diferente do que a atualidade da consciência estética. Não vive apenas da capacidade de expressão autônoma do quadro. Isso é o que ensina já o fato de que, também coisas diferentes dos quadros, p. ex., símbolos ou inscrições, podem assumir a mesma função. A premissa é sempre a reconhecibilidade daquilo que deve ser lembrado através do monumento, e igualmente o seu presente potencial. É assim que as figuras dos deuses, do rei, o monumento, que são apresentados a alguém pressupõem que o Deus, o rei, o herói, ou o acontecimento, a vitória ou o tratado de paz, já possuam uma atualidade determinante para todas as atualidades. O quadro que os representa, nesse caso, não atua diferente de uma inscrição, p. ex., mantêm-nos presentes nesse seu significado geral. Seja como for — quando se trata de uma obra de arte, isso não significa apenas que esse significado pressuposto acrescenta alguma coisa, mas também que pode falar de si próprio e que, com isso, se torna independente do prévio conhecimento que traz em si. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que é um quadro — a despeito de toda diferenciação estética — continua sendo uma manifestação daquilo que ele representa, ainda que permita a manifestação do mesmo, através de sua capacidade autônoma de expressão. Na imagem do culto isso é indiscutível. Mas a diferença do sagrado e do profano é relativa nas próprias obras de arte. Mesmo o portrait individual, quando se trata de uma obra de arte, tem ainda parte na radiação misteriosa do ser, que resulta do status ontológico, daquilo que vem à representação ali. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A relatividade do profano e do sagrado faz parte não somente da dialética dos conceitos, mas é reconhecível no fenômeno do quadro, como uma relação real. É, sem dúvida, correto que uma obra de arte religiosa, que está sendo exposta no museu, ou uma estátua de um monumento, que lá está sendo mostrada, não podem mais ser profanadas no mesmo sentido, que uma obra que continue no seu originário lugar. Mas isso significa apenas que, na verdade, já foi vulnerada, ao [156] se tornar uma peça de museu. É evidente que isso não vale apenas para obras de arte religiosa. É essa mesma sensação que temos às vezes numa loja de antigüidades, quando velhas peças estão à venda, às quais ainda adere um bafejo de vida íntima, algo assim como desonroso, como uma espécie de vulneração da piedade ou de profanação. E, afinal de contas, toda obra de arte possui algo que a rebela contra a profanação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

De todas essas ponderações, justifica-se caracterizar o modo de ser da arte, no seu todo, através do conceito da representação, o qual abarca do mesmo modo jogo como quadro, comunhão como representação. A obra de arte será entendida, com isso, como um acontecimento do ser e desfaz-se sua abstração, na qual a diferenciação estética a coloca. Também o quadro é um acontecimento da representação. Sua relação com o quadro original é tampouco uma redução de sua autonomia de ser, que nós, ao contrário, tendo em vista o quadro, tivemos motivo para falar de um crescimento de seu ser. O emprego de conceitos jurídico-sacrais mostrou-se, a partir daí, como um mandato. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Mas, evidentemente, depende de não se deixar confundir o sentido especial da representação, que convém à obra de arte, simplesmente com a representação sagrada, como convém, por exemplo, ao símbolo. Nem todas as formas de "representação" têm o caráter de "arte". Formas de representação são também os símbolos, também as insígnias. Também estes possuem a estrutura da referência, que faz deles representações. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que importa agora é observar que uma obra de arte não deve o seu significado genuíno a uma instituição, nem mesmo se tiver sido instituída realmente como quadro cúltico ou como monumento profano. O ato público da consagração ou da revelação, que o remete à sua determinação, não lhe empresta por primeiro o seu significado. Antes, já é uma configuração, com sua própria função de significado, como representação figurativa ou não, antes de ser encaminhada à sua função como monumento. A instituição e a consagração de um monumento — e não é por acaso que se chama de monumentos da construção, tanto a obras de construção religiosa como profana, quando a distância histórica as consagrou — realiza, pois, só uma função, que se encontra subentendida no próprio conteúdo da obra. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Uma obra arquitetônica alastra-se de dupla maneira para além de si mesma. E determinada tanto pelo fim a que deve servir, como pelo lugar que tem de ocupar no todo de uma conjuntura espacial. Todo mestre-de-obras tem de contar com ambos os fatores. O próprio esboço que faz é determinado pelo fato de que a construção terá de servir a uma postura de vida e tem de se subordinar a pré-condições naturais e arquitetônicas. É assim que a uma construção optimal denominamos de uma "feliz solução", querendo manifestar com isso que, tanto preenche a sua finalidade de uma maneira plena, como também introduz algo novo no espaço visual urbano ou paisagístico, ao ser erguida. Também a construção, através dessa sua dupla subordinação, representa um verdadeiro crescimento do ser, isto é, é uma obra de arte. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Ela não é tal, se apenas estiver de qualquer modo, em algum lugar qualquer, como um edifício que comprometesse a paisagem, mas somente o é quando representa a solução de uma "tarefa arquitetônica". Por isso a também ciência da arte só considera os edifícios que contêm algo que mereça sua consideração, e chama-os de "monumentos arquitetônicos". Quando um edifício é uma obra de arte, não representa somente a solução artística de uma tarefa arquitetônica, proposta pelo contexto de finalidade e de vida a que a obra pertence originariamente, senão que, de uma certa forma, a solução mantém também esse contexto, de maneira que ele está ali de modo patente, ainda que sua manifestação atual esteja já muito afastada de sua determinação de origem. Há algo nele que alude ao original. E quando essa determinação original se tornou completamente irreconhecível, ou a sua unidade acaba por romper-se ao cabo de tantas transformações em sucessivos tempos, o próprio edifício se torna incompreensível. A arte arquitetônica, a mais estatuária de todas as espécies de arte, é a que torna mais patente até que ponto a "distinção estética" é secundária. Um edifício não é nunca primariamente uma obra de arte. A determinação do objetivo, pelo qual ele se integra no contexto da vida, não pode separar-se dela, sem que perca algo de sua própria realidade. Se ele for ainda apenas objeto de uma consciência estética, sua realidade será pura sombra e já não vive mais senão sob a forma degenerada do objeto turístico ou de reprodução fotográfica. A "obra de arte em si" se apresenta como uma pura abstração. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O significado especial que a arquitetura tem para o nosso questionamento consiste em que, também nela, pode se tornar manifesta aquela mediação, sem a qual uma obra de arte não possui verdadeira atualidade. Também onde a representação não ocorre primeiramente em virtude da re-produção (da qual todo mundo sabe que pertence a seu próprio presente), na obra medeia-se passado e presente. O fato de que cada obra de arte tenha seu mundo não significa que, uma vez que seu mundo original tenha mudado, já não mais possa ter realidade a não ser numa consciência alienada e estética. Isso é algo sobre o que a arquitetura pode nos ensinar, à qual adere de modo irreversível a sua pertença ao mundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Se se observa desse modo, a gama completa das tarefas decorativas que se impõem à arquitetura, não será difícil de reconhecer que o preconceito da consciência estética, nelas, chega ao fracasso, do modo mais evidente, já que, segundo ela, a verdadeira obra de arte seria aquilo que, abstraído de todo espaço e de todo tempo, representa o objeto de uma vivência estética na presença do vivenciar. Na arquitetura torna-se inquestionável, que é necessário revisar a diferenciação habitual entre a obra de arte autêntica e a simples decoração. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

É evidente que o conceito do decorativo está sendo pensado aqui, a partir da oposição à "obra de arte autêntica" e a partir de sua origem na inspiração genial. Argumenta-se, por exemplo, assim: o que somente é decorativo não é arte do gênio mas ofício da arte. Como meio, está submetido àquilo que deve adornar, e, tal qual qualquer outro meio submetido a um fim, poderia ser substituído por qualquer outro meio que correspondesse ao fim. O decorativo não participa do caráter único da obra de arte. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Na realidade, o conceito da decoração tem de ser liberado dessa oposição ao conceito da arte vivencial e encontrar seu fundamento na estrutura ontológica da representação, que já elaboramos como modo de ser da obra de arte. Bastará recordar que o adorno, o decorativo são, por seu sentido originário, o belo como tal. Vale a pena reconstruir esse antigo conhecimento. Tudo o que é adorno, e adorna, está determinado pela sua relação com o que ele adorna, com aquilo em que ele é, com aquilo que é seu portador. Não possui um conteúdo estético próprio, o qual somente a posteriori receberia um condicionamento restritivo através da relação para com seu portador. Inclusive Kant, que pode ter alentado essa opinião, leva em conta, na sua conhecida assertiva contra as tatuagens, que um adorno só é tal, quando é conveniente ao portador e lhe cai bem. Forma parte do gosto, não somente que se saiba apreciar que algo é bonito em si, mas também que se saiba o âmbito onde ele pertence e onde não. O adorno não é primeiramente uma coisa para si, que mais tarde se acrescenta a uma outra, mas pertence ao representar-se de seu portador. Do adorno tem-se de dizer também, que pertence à representação; a representação, porém, é um acontecimento ôntico, é re-presentação. Um adorno, um ornamento, uma plástica colocada num local preferencial são re-presentativos no mesmo sentido em que o é, por exemplo, a própria igreja em que foram feitos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O conceito do decorativo torna-se, pois, apropriado para arredondar o nosso questionamento do modo de ser do estético. Mais tarde veremos que a recuperação do velho sentido transcendental do belo é aconselhável também a partir de outro ponto de vista distinto. Seja qual for o caso, o que queremos dizer, sob o termo "representação", é um momento universal e ontológico da estrutura do estético, um acontecimento ôntico, e não, por exemplo, um acontecimento vivencial que aconteceria no momento da criação artística e que apenas seria repetida pelo ânimo que a recebe em cada caso. Ao final do sentido [165] universal do jogo tínhamos reconhecido o sentido ontológico da representação no fato de que a "re-produção" é o modo de ser originário da própria arte original. Agora está confirmado que também a imagem pictórica e as artes estatuárias no seu todo possuem, ontologicamente falando, o mesmo modo de ser. A presença específica da obra de arte é um vir-à-representação do ser. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Portanto, a forma de arte que é a literatura deixa-se conceber, somente a partir da ontologia da obra de arte — não a partir das vivências estéticas que vão aparecendo ao longo da leitura. A leitura pertence essencialmente à obra de arte literária, tanto como a declamação ou a execução. Todos estes são graus, do que em geral se costuma chamar de re-produção, mas que, na realidade, representa o modo de ser original de todas as artes transitórias e que se tornou exemplar para a determinação do modo de ser da arte em geral. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A caracterização normativa, que se dá com a pertença à literatura universal, situa o fenômeno da literatura sob um novo ponto de vista. Porque, se esta pertença à literatura universal só é reconhecida no caso de uma obra literária que possui um certo status próprio, como poesia ou como obra de arte lingüística, o conceito da literatura, por seu turno, é muito mais amplo do que o da obra de arte literária. Do modo de ser da literatura participa toda tradição lingüística, não somente os textos religiosos, jurídicos, econômicos, públicos e privados de toda classe, mas também os escritos em que se elaboram e interpretam cientificamente esses textos transmitidos, e, por conseqüência, todo o conjunto das ciências do espírito. E mais, a forma da literatura convém em geral a toda investigação científica, na medida em que esta encontra-se essencialmente vinculada ao caráter de ser da linguagem. É a capacidade de escrever, de tudo que é lingüístico, que delimita o mais amplo do sentido de literatura. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Ou talvez não exista aqui um limite tão restrito? Existem obras científicas, que através de sua qualidade literária conquistaram a exigência de ser honradas como obras da arte literária, e de ser contadas entre a literatura universal. Do ponto de vista da consciência estética isto é evidente na medida em que a referida consciência considera decisivo na obra de arte não o significado do conteúdo, mas unicamente a qualidade de sua formulação. Porém, na medida em que nossa crítica à consciência estética restringiu fundamentalmente o alcance deste ponto de vista, este princípio de delimitação entre arte literária e literatura tornar-se-á duvidoso. Já havíamos visto que nem sequer a obra de arte poética poderá ser concebida na sua verdade essencial, aplicando-lhe o padrão da consciência estética. O que a obra poética tem em comum com todos os demais textos literários é que ela nos fala a partir do significado de seu conteúdo. Nossa compreensão não se volta especificamente para o desempenho de formulação, que lhe convém como obra de arte, mas para o que nos diz. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Levando isso em consideração, a diferença entre uma obra de arte literária e qualquer outro texto literário já não é tão fundamental. Certamente que existem diferenças entre a linguagem da poesia e a da prosa, e igualmente, entre a linguagem da prosa poética e a da prosa "científica". Essas diferenças podem certamente ser consideradas também do ponto de vista da formulação literária. Mas a diferença essencial dessas "linguagens" diferentes reside, evidentemente, noutro aspecto, ou seja, na diversidade da reivindicação da verdade que cada uma delas levanta. Dá-se uma profunda comunhão entre todas as obras literárias, no fato de que a formulação lingüística permite que o significado que deve ser expresso chegue a ser operante. Visto dessa maneira, a compreensão de textos, como, por exemplo, aquela qüe o historiador agencia não difere tanto da experiência da arte. E não é um simples acaso, que, no conceito da literatura, sejam reunidas não somente as obras da arte literária, mas toda tradição literária como tal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Por isso, a despeito de todas as delimitações de fronteiras estéticas, no nosso contexto, o conceito mais amplo da literatura torna-se válido. Assim como nos foi dado mostrar que o ser da obra de arte é um jogo, que só se cumpre na sua recepção pelo espectador, pode-se dizer, dos textos em geral, que somente na sua compreensão se produz a retransformação do rastro de sentido morto, em sentido vivo. É necessário, portanto, que se pergunte se o que já demonstramos com relação à experiência da arte pode ser afirmado também para a compreensão dos textos em conjunto, portanto, também os que não são obras de arte. Já tínhamos visto que a obra de arte só alcança seu preenchimento na representação que ela encontra, e isto nos tinha obrigado a concluir que toda obra de arte literária só pode se realizar inteiramente pela leitura. Sendo assim, será que isso vale também para a compreensão de todo texto? Será que o sentido de todo texto se realiza somente em sua recepção por quem o compreende? Dito de outra forma, será que o compreender faz parte do acontecer de sentido de um texto — tal qual faz parte da música o fazer-com-que-se-torne-audível? Pode-se chamar ainda de compreensão, quando nos comportamos com relação ao sentido de um texto com tanta liberdade como o artista re-produtivo, com respeito ao seu modelo? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A disciplina clássica, que se ocupa da arte de compreender textos, é a hermenêutica. Se nossas ponderações são corretas, o verdadeiro problema da hermenêutica terá que se colocar, no entanto, de uma maneira totalmente diferente da habitual. Terá de apontar na mesma direção em que nossa crítica à consciência estática havia deslocado o problema da estética. A hermenêutica teria, até, de ser entendida então de uma maneira tão abrangente que teria de incluir em si toda esfera da arte e seu questionamento. Qualquer obra de arte, não apenas as literárias, tem que ser compreendida no mesmo sentido em que [170] se tem de compreender qualquer outro texto, e esse compreender requer gabarito para tal. Com isso a consciência hermenêutica adquire uma extensão tão abrangente, que ultrapassa a da consciência estética. A estética deve subordinar-se à hermenêutica. E este enunciado não se refere meramente à periferia do problema, mas vale antes de tudo para o conteúdo. E, inversamente, a hermenêutica tem de determinar-se, em seu conjunto, de maneira que faça justiça à experiência da arte. A compreensão deve ser entendida como parte da ocorrência de sentido, em que se formula e se realiza o sentido de todo enunciado, tanto dos da arte como dos de qualquer outro gênero de tradição. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Com o fim de dar uma idéia antecipada da questão e de relacionar as conseqüências sistemáticas do que desenvolvemos até aqui com a ampliação que experimenta agora o nosso questionamento, faremos bem se nos ativermos de imediato à tarefa hermenêutica que nos coloca o fenômeno da arte. Por mais que tenhamos conseguido evidenciar, que a "diferenciação estática" é uma abstração, que não está em condições de suspender a pertença da obra de arte ao seu mundo, também continua sendo inquestionável, que a arte jamais é apenas passado, mas consegue superar a distância dos tempos através da presença de seu próprio sentido. Dessa maneira, o exemplo da arte nos mostra, em ambas as direções, um caso muito qualificado da compreensão. A arte não é mero objeto da consciência histórica, no entanto a sua compreensão co-implica sempre uma mediação histórica. Como se irá determinar, face a isso, a tarefa da hermenêutica? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Schleiermacher  , de cuja teoria hermenêutica ainda nos ocuparemos mais tarde, está inteiramente empenhado em reconstruir na compreensão a determinação original de uma obra. Pois arte e literatura, que nos são transmitidas do passado, nos chegam desenraizadas de seu mundo original. Nossas análises já demonstraram que isso vale para todas as artes, e portanto também para a literatura, mas que é particularmente evidente para as artes plásticas. Schleiermacher escreve que o natural e originário já não são mais, "a partir do momento em que as obras de arte entram em circulação. Ou seja, cada uma tem uma parte de sua compreensibilidade a partir de sua determinação original". "Por isso a obra de arte perde algo de sua significância quando é arrancada de seu contexto originário e este não se conserva historicamente." Ele chega, inclusive, a dizer: "Assim, uma obra de arte está enraizada, na realidade, também no seu solo e chão, no seu contexto. Ela já perde o seu significado ao ser retirada desse contexto e ao entrar em circulação é como algo que foi salvo do fogo e agora traz as marcas de queimado". VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Será que isso não implica, que a obra de arte somente tem seu verdadeiro significado não é uma espécie de reconstrução do originário? Se se identifica e reconhece que a obra de arte não é um objeto a-temporal da vivência estética, mas que pertence a um mundo e que somente este é que poderá determinar plenamente o seu significado, parece que se há de concluir que o verdadeiro significado da obra de arte só se pode compreender a partir deste mundo, portanto, principalmente a partir da sua origem e de seu surgimento. A reconstrução do "mundo" a que pertence, a reconstrução do estado originário que havia [172] existido na "intenção" do artista criador, a execução no estilo original, todos esses meios de reconstrução histórica teriam então o direito de reivindicar que eles tornam compreensível o verdadeiro significado da obra de arte e que o protegem contra mal-entendidos e falsas atualizações. E essa é, efetivamente, a idéia de Schleiermacher, o pressuposto tácito de toda a sua hermenêutica. Segundo ele, o saber histórico abre o caminho que permite suprir o que foi perdido e reconstruir a tradição, na medida em que nos devolve o ocasional e o originário. Assim, o empenho hermenêutico se orienta para a recuperação do "ponto de conexão" com o espírito do artista, que é o que deve fazer inteiramente compreensível o significado de uma obra de arte; procede como, fora isso, o faz ante textos, procurando re-produzir o que foi a produção original do autor. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

É evidente que a reconstrução das condições sob as quais uma obra transmitida cumpria sua determinação original constituiu, obviamente, uma operação auxiliar verdadeiramente essencial para a compreensão. A única coisa que temos a indagar é se o que se alcança por esse caminho é realmente o mesmo que buscamos, quando tentamos encontrar o significado da obra de arte e se a compreensão é determinada corretamente, se nós a considerarmos como uma segunda criação, como a re-produção da produção original. Uma tal determinação da hermenêutica acaba não sendo menos absurda do que toda restituição e restauração da vida passada. A reconstrução das condições originais, tal qual toda restauração, é, face à historicidade do nosso ser, uma empresa impotente. O reconstruído, a vida recuperada do alheamento, não é a original. Ela obtém, só na sobrevivência do alheamento, uma existência secundária na cultura. A tendência, que está se impondo recentemente, de devolver as obras de arte dos museus ao lugar originário de sua determinação, ou de devolver o aspecto original aos monumentos arquitetônicos, só pode confirmar este ponto de vista. Mesmo o quadro devolvido do museu para a igreja, ou o edifício reconstruído segundo o seu estado antigo, são o que foram — se convertem em objeto para turistas. E um labor hermenêutico, para quem a compreensão significasse reconstrução do original, permaneceria do mesmo modo, apenas num sentido morto. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Porém, uma tal descrição da compreensão que separa, significa que a configuração das idéias que procuramos compreender como discurso ou como texto não é compreendida com referência ao seu conteúdo objetivo, mas como uma configuração estética, como obra de arte ou "pensamento artístico". Se afirmarmos isso entenderemos por que aqui não se trata da relação com a coisa (em Schleiermacher "o ser"). Schleiermacher segue as determinações fundamentais de Kant, quando diz que o "pensamento artístico" "somente se distingue pelo maior ou menor prazer", e é propriamente "só o ato momentâneo do sujeito". A esta altura, é naturalmente a pressuposição, pela qual se colocou pela primeira vez a tarefa da compreensão que faz com que este "pensamento artístico" não seja um simples ato momentâneo, mas que se exterioriza. Schleiermacher vê no "pensamento artístico" momentos especiais da vida, nos quais dá-se um prazer tão grande que eles irrompem em exteriorização, mas mesmo assim — e, por mais que suscitem prazer nas "imagens originais das obras de arte" — continuam sendo um pensamento individual, livre combinação, não vinculada pelo ser. É exatamente isso que distingue os textos poéticos dos científicos. Schleiermacher quer dizer com isso, certamente, que o discurso poético não se submete ao padrão de entendimento sobre a coisa em causa, descrito acima, porque o que nele se diz não é dissociável do "como", da maneira de ser dito. Por exemplo, a guerra de Tróia está no poema homérico — quem se volta para a realidade histórica da coisa em causa lê mais Homero como discurso poético. Ninguém [192] quereria afirmar que o poema tenha ganho algo de realidade artística através das escavações dos arqueólogos. O que se deve compreender aqui não é precisamente um pensamento comum da coisa em causa, mas um pensamento individual, que, por sua essência, é combinação livre, expressão, livre exteriorização de uma essência individual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Caberia indagar se tais formulações (que aparecem com o mesmo sentido também em Boeckh) podem ser tomadas estritamente ou se propriamente devem descrever só uma perfeição relativa da compreensão. Certamente que Schleiermacher — como, de uma maneira mais decidida, Wilhelm von Humboldt   — considera a individualidade como um mistério que jamais pode ser revelado de todo. Todavia, justamente essa tese só almeja ser entendida como relativa: A barreira que se levanta aqui frente à razão e o conceber não é insuperável em todos os sentidos. Ela deve ser ultrapassada através do sentimento, portanto, com uma compreensão imediata, simpatética e congenial: a hermenêutica é, justamente, arte e não procedimento mecânico. Assim, leva a cabo sua obra, a compreensão, tal como se realiza uma obra de arte. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa experiência levou a investigação histórica à conclusão de que um conhecimento objetivo só pode ser alcançado a partir de uma certa distância histórica. É verdade que o que está numa coisa, o conteúdo que lhe é próprio, somente se divisa a partir da distância com relação à atualidade, surgida de circunstâncias efêmeras. A possibilidade de adquirir uma certa visão panorâmica, o caráter relativamente fechado sobre si, de um processo histórico, o seu distanciamento com relação às opiniões objetivas que dominam o presente, tudo isso são, até certo ponto, condições positivas da compreensão histórica. A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna reconhecível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para que já tenha somente interesse histórico. Somente então parece possível desconectar a participação subjetiva do observador. Na verdade, isto é um paradoxo — é o correlato, na teoria da ciência, do velho problema moral de se saber se alguém pode ser chamado feliz antes de sua morte. Assim como Aristóteles mostrou até que ponto um problema desse tipo consegue aguçar as possibilidades humanas de juízo, a reflexão hermenêutica tem que estabelecer aqui um aguçamento da autoconsciência metódica da ciência. É bem verdade que determinados requisitos hermenêuticos se satisfazem, por si sós, sem dificuldade aí onde um nexo histórico só tem ainda interesse histórico. Pois, em tal caso, há certas fontes de erro que se desconectam por si mesmas. Mas pergunta-se se com isso se esgota realmente o problema hermenêutico. A distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa. Entretanto, o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito. Não acontece apenas que se vão eliminando sempre novas fontes de erro, de tal modo que se vão filtrando todas as distorções do verdadeiro sentido, mas que, constantemente, surgem novas fontes de compreensão que tornam patentes relações de sentido insuspeitadas. A distância de tempo, que possibilita essa filtragem, não tem uma dimensão concluída, já que ela mesma está em constante movimento e expansão. A par do lado negativo da filtragem operada [304] pela distância de tempo, aparece, simultaneamente, o aspecto positivo que ela tem para a compreensão. Não somente prestam sua ajuda para que os preconceitos de natureza particular feneçam, mas permite também que aqueles que levam a uma compreensão correta, venham à tona como tais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

I Mas a aplicação pertence, essencial e necessariamente, ao compreender? Do ponto de vista da ciência moderna dever-se-ia dizer que não, que essa aplicação, que se coloca ao intérprete mais ou menos no lugar do destinatário original de um texto, não pertence à ciência. Nas ciências históricas do espírito ela está excluída por princípio. A cientificidade da ciência moderna consiste em que ela objetiva a tradição e elimina metodicamente qualquer influência do presente do intérprete sobre sua compreensão. As vezes poderá ser difícil alcançar esta meta, e aqueles textos que carecem de um destinatário determinado e pretendem valer para todos os que têm acesso à tradição, não permitirão manter com nitidez essa cisão entre o interesse histórico e o interesse dogmático. Um bom exemplo disso é a problemática da teologia científica e sua relação com a tradição bíblica. Poderia parecer que nesse caso o importante seria encontrar o equilíbrio entre a instância histórico-científica e a [339] instância dogmática dentro da esfera privada da pessoa. Algo parecido pode ocorrer com o filósofo, e também com a nossa consciência artística, quando nos sentimos interpelados por uma obra de arte. Não obstante, a pretensão construtiva da ciência seria manter-se independente de toda aplicação subjetiva em virtude de sua metodologia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Entretanto, é evidente que hermenêutica e historiografia não são inteiramente a mesma coisa. Na medida em que aprofundamos um pouco as diferenças metodológicas que as separam, poderemos discernir a sua aparente comunidade e reconhecer sua verdadeira comunidade. O historiador se relaciona diferentemente com os textos transmitidos, na medida em que procura conhecer através deles um trecho do passado. Por isso busca completar e controlar o texto com outras tradições [341] paralelas. Ele considera como que uma debilidade do filólogo o fato deste olhar para seu texto como uma obra de arte. Uma obra de arte é um mundo completo que basta a si próprio. O interesse histórico, porém, não conhece esta auto-suficiência. Dilthey   já havia sentido, face a Schleiermacher, que "a filologia gostaria de encontrar em toda parte uma existência acabada em si mesma". Quando uma obra literária transmitida chega a impressionar o historiador, este fato não pode ter para ele significado hermenêutico algum. Basicamente ele não pode entender-se a si mesmo como destinatário do texto, nem sujeitar-se à sua pretensão. As perguntas que dirige ao texto se referem, antes, a algo que o texto não oferece por si mesmo. E isto vale inclusive para aquelas formas de tradição que pretendem ser por si mesmas representação histórica. Também o historiador tem de ser submetido à crítica histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Apesar de Platão  , estamos muito pouco preparados para ela. Quase o único que poderíamos vincular a isso seria R.G. [376] Collingwood. Numa engenhosa e acertada crítica à escola "realista" de Oxford, Collingwood desenvolve a idéia de uma "logic of question and answer", mas lamentavelmente não chega a um desenvolvimento sistemático. Reconhece com agudeza o que falta à hermenêutica ingênua que subjaz à crítica filosófica habitual. Em particular o procedimento que Collingwood encontrou no sistema universitário inglês, a discussão de statements, talvez um bom exercício de engenho, que ignora evidentemente a historicidade contida em toda compreensão. Collingwood argumenta: na realidade somente se pode compreender um texto quando se compreendeu a pergunta para a qual ele é a resposta. Mas como esta pergunta somente se ganha a partir do próprio texto, e a adequação da resposta representa o pressuposto metódico para a reconstrução da pergunta, a crítica a esta resposta, que parte de uma posição qualquer, é puro passatempo. É como na compreensão das obras de arte. Também uma obra de arte só pode ser compreendida na medida em que se pressupõe sua adequação. Também aqui tem-se que ganhar primeiro a pergunta à qual responde, se é que a queremos compreender — como resposta. De fato, este é um axioma de toda hermenêutica, que já tratamos anteriormente como "antecipação da totalidade". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E evidente que a implicação de toda interpretação na compreensão está em relação com o fato de que o conceito da interpretação não se aplica somente à interpretação científica, mas também à reprodução artística, por exemplo, a interpretação musical ou cênica. Já demonstramos mais acima que essa reprodução não é uma segunda criação superposta à primeira, mas que é primordialmente o que permite à obra de arte manifestar-se autenticamente. Somente nela, cumpre o seu objetivo a linguagem cifrada, sob a qual está um texto musical ou de um drama. Também a leitura pública é um processo desse gênero, pois significa despertar e converter um texto em uma nova imediaticidade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Disso se segue, no entanto, que temos de poder afirmar o mesmo para toda compreensão que se realiza na leitura silenciosa. Visto fundamentalmente, também a leitura contém sempre uma interpretação. Não é que a compreensão na leitura seja uma espécie de encenação interior, na qual a obra de arte alcançaria uma existência autônoma — ainda que encerrada na intimidade da interioridade da alma — como se dá na encenação à vista de todos. Pelo contrário, isso quer dizer que uma encenação colocada na exterioridade do espaço e do tempo, na verdade, não tem, ante a própria obra, uma existência autônoma, e que somente numa diferenciação estética secundária poderia chegar a alcançá-la. A interpretação da música ou da poesia, quando executadas, não diferem essencialmente da compreensão de um texto, quando é lido: Compreender implica sempre interpretar. O que faz o filólogo consiste também em tornar legíveis e compreensíveis os textos ou, o que dá no mesmo, em assegurar a correta compreensão de um texto face a seus possíveis mal-entendidos. E então já não há nenhuma diferença de princípio entre a interpretação que uma obra experimenta por sua reprodução e a que é produto do filólogo. Por mais secundária que seja considerada a justificação de sua interpretação em palavras por um artista que reproduz obras, e por mais que a rechace como não-artística, o que não poderá negar é que a interpretação reprodutiva é fundamentalmente capaz de uma justificação desse tipo. Também ele tem de querer que a sua acepção seja correta e convincente, e seguramente não pretenderá contestar a vinculação ao texto que tem como base. E, todavia, esse texto é o mesmo que coloca sua tarefa ao intérprete científico. Por.conseguinte, não poderá argüir nada de fundamental contra o fato de que sua própria compreensão de uma obra, tal como se manifesta em sua interpretação reprodutiva, possa ser, por sua vez, novamente compreendida, e isto significa que possa ser justificada interpretativamente, e tal interpretação terá de realizar-se em forma lingüística. [404] Tampouco ela será, por sua vez, uma nova criação de sentido. Também a ela acontecerá que irá desaparecer como interpretação e conservar sua verdade na imediatez da compreensão. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Pois, de um outro lado, da parte do "objeto", esse acontecer significa que o conteúdo da tradição entra em jogo e se desenvolve em possibilidades de sentido e ressonância cada vez novas e ampliadas de modo novo, pelo outro receptor. Quando a tradição volta a falar, emerge algo e entra em cena o que antes não era. Qualquer exemplo histórico poderia nos servir para ilustrar isso. Quer a própria tradição seja uma obra de arte, quer proporcione notícias de um grande acontecimento, em qualquer caso, o que se transmite aqui entra de novo na existência, tal como se representa. Quando a Ilíada de Homero ou a campanha de Alexandre até a índia voltam a nos falar numa nova apropriação da tradição, não há um ser em si que se vá revelando cada vez um pouco mais, mas acontece algo como uma verdadeira conversação, daí surgindo alguma coisa que nenhum dos interlocutores abarca por si só. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Reconhecemos agora que foi precisamente esse movimento especulativo, o que tivemos em mente tanto na crítica da consciência estética, como na da consciência histórica, com que iniciamos a nossa análise da experiência hermenêutica. O ser da obra de arte não era um ser em si, do qual se distinguisse sua reprodução ou a contingência de sua manifestação; somente em uma tematização secundária, tanto de um como de outro, pode chegar a essa "distinção estética". Tampouco o que vem ao encontro de nosso conhecimento histórico, a partir da tradição ou como tradição — histórica ou filológicamente — , o significado de um evento ou o sentido de um texto era um objeto em si, fixo, que se tivesse meramente que constatar. Também a consciência histórica encerrava em si, na realidade, a mediação de passado e presente. Ao reconhecer a lingüisticidade como o médium universal dessa mediação, nossa colocação de seus pontos de partida concretos, a critica à consciência estética e histórica, e a hermenêutica que se teria que pôr em seu lugar, adquiriu a dimensão de um questionamento universal. Pois a relação humana com o mundo é lingüística e portanto compreensível em geral e por princípio. Nesse sentido, a hermenêutica é, como vimos, um aspecto universal de filosofia e não somente a base metodológica das chamadas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

É evidente que não é uma determinação especial da obra de arte a de ter seu ser na sua representação, nem é uma peculiaridade do ser da história, que se compreenda em seu significado. Representar-se, ser compreendido, são coisas que não somente correm juntas, no sentido de que uma passa à outra, que a obra de arte é uma com sua história efeitual, tal como o transmitido historicamente é uno com o presente de seu ser compreendido — ser especulativo, distinguir-se de si mesmo, representar-se, ser linguagem que enuncia um sentido, tudo isso não o são somente a arte e a história, mas todo ente, na medida em que pode ser compreendido. A constituição especulativa do ser que subjaz à hermenêutica tem a mesma amplitude universal que a razão e a linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Trata-se pois da metafísica platônico-neoplatônica da luz, com a qual se vincula a doutrina cristã da palavra, do verbum creans, a que antes nos dedicamos detidamente. E se designamos a estrutura ontológica do belo como o aparecer, em virtude do qual as coisas se mostram em sua medida e em seu contorno, isso vale na mesma medida para o âmbito inteligível. A luz que faz com que tudo apareça de maneira que seja luminoso e compreensível em si mesmo, é a luz da palavra. Em conseqüência, a metafísica da luz é o fundamento da estreita relação entre o aparecer do belo e a evidência do compreensível . Foi justamente essa relação que orientou nosso questionamento hermenêutico. Gostaria de recordar, nesse ponto, como a análise do ser da obra de arte nos tinha conduzido ao questionamento da hermenêutica, e como esta tinha se ampliado até converter-se num questionamento universal. Isso tudo deu-se sem qualquer consideração paralela da metafísica da luz. Se considerarmos agora o parentesco desta, com nosso questionamento, ajudar-nos-á o fato de que a estrutura da luz pode ser separada, evidentemente, da representação metafísica de uma fonte luminosa sensório-espiritual, ao estilo do pensamento neoplatônico cristão. Isso já pode ser apreciado na interpretação dogmática do relato da criação, em Santo Agostinho  . Este observa que a luz foi criada antes da distinção das coisas e da criação dos corpos celestes que a emitem. Ele põe uma ênfase especial no fato de que a criação inicial do céu e da terra tem lugar ainda sem a palavra divina. Deus só fala pela primeira vez ao criar a luz. E esse falar, pelo qual se nomeia e se cria a luz, é interpretado por ele como um vir à luz espiritual, que tornará possível a diferença entre as coisas formadas. Só pela luz a massa informe e primeira do céu e da terra adquire a capacidade de configurar-se em muitas formas diferentes. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Essa recordação referente a Platão torna-se de novo significativa para o problema da verdade. Na análise da obra de arte, tínhamos procurado demonstrar que o representar-se deve ser considerado como o verdadeiro ser daquela. Com esse fim, havíamos acrescentado o conceito do jogo, o qual já nos projetou a nexos mais gerais: pois tínhamos visto que a verdade do que se representa no jogo não é "de se crer" ou "não se crer", para além da participação no acontecer lúdico. No âmbito estético, isso se entende por si mesmo. Inclusive quando o poeta é honrado como um vidente, isso não quer dizer que reconheçamos no seu poema uma verdadeira profecia como, por exemplo, nos cantos de Hölderlin   sobre o retorno dos deuses. O poeta é 492] um vidente porque representa por si mesmo o que é, o que foi e o que será, e testemunha por si mesmo o que anuncia. É certo que a expressão poética leva em si uma certa ambigüidade, como aquela dos oráculos. Mas precisamente nisso se estriba sua verdade hermenêutica. Quem considera que isso é uma falta de vinculatividade estética, que passaria ao largo da seriedade do existencial, não se dá conta de até que ponto a finitude do homem é fundamental para a experiência hermenêutica do mundo. A ambigüidade do oráculo não é o seu ponto fraco, mas justamente sua força. E igualmente atira no escuro aquele que examinar se Hölderlin ou Rilke   acreditavam realmente em seus deuses ou em seus anjos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O que ocorre, porém, com a obra de arte e especialmente com a obra de arte no âmbito da linguagem? Será possível falar ali de uma estrutura de diálogo da compreensão e do entendimento? [7] Pois não há autor que possa fazer as vezes de um interlocutor que responde, e não há nenhuma coisa em discussão, que seja deste ou daquele modo. A obra textual sustenta-se por si mesma. Aqui, a dialética de pergunta e resposta, se é que ela ocorre, parece dar-se numa única direção, isto é, a partir daquele que procura compreender a obra de arte, que a interroga, se questiona e procura escutar a resposta da obra. Sendo um, esse sujeito poderá, como ser pensante, exercer ao mesmo tempo o papel de quem pergunta e de quem responde, como acontece no diálogo real entre duas pessoas. Esse diálogo consigo mesmo do leitor que busca compreender não parece contudo um diálogo com o texto, que é fixo e, como tal, acabado. Ou não? Existirá, na verdade, um texto acabado e pronto? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Aqui a dialética de pergunta e resposta não se sustenta. A obra de arte caracteriza-se sobretudo pelo fato de jamais podermos compreendê-la completamente. Isso quer dizer que se nos aproximarmos dela e a interrogarmos jamais receberemos uma resposta definitiva a partir da qual possamos afirmar "agora eu sei". Dela não se extrai uma informação precisa — e pronto! Não se podem haurir de uma obra de arte as informações que ela esconde em si, de modo a esvaziá-la como ocorre com comunicados que recebemos. A recepção de uma obra poética, seja pelo ouvido real ou somente por aquele ouvido interior que escuta na leitura, apresenta-se como um movimento circular, no qual as respostas repercutem em novas perguntas e provocam novas respostas. Isso motiva a demora junto à obra de arte — seja ela de que espécie for. A atitude de demorar-se é certamente a caracterização específica na experiência da arte. Uma obra de arte jamais se esgota. Ela nunca está vazia. Definimos, pelo contrário, a não-arte, a imitação ou a arte interesseira e similares, precisamente pelo fato de julgá-las "vazias". Nenhuma obra de arte nos fala sempre do mesmo modo. E a conseqüência é que nós também precisamos responder cada vez de modo diferente. Diferentes sensibilidades, diferentes percepções, diferentes aberturas fazem com que a configuração única, própria, una e mesma — a unidade da expressão artística — se manifeste numa multiplicidade inesgotável de respostas. Considero um erro querer contrapor essa multivariedade infindável à identidade irredutível da obra. Frente à estética da recepção de Jauss e ao desconstrutivismo de Derrida   (que nesse ponto se aproximam), parece-me ser o caso de afirmar que insistir na identidade de sentido de um texto não significa recair no superado platonismo de uma estética classista e nem aprisionar-se na metafísica. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Há que se perguntar também se a minha própria tentativa de conjugar a diferença da compreensão com a unidade do texto ou da obra, e em especial, se minha insistência no conceito de obra, no âmbito da arte, não pressupõe um conceito de identidade em sentido metafísico: quando a reflexão da consciência hermenêutica também reconhece que compreender é compreender-sempre-diferentemente, será que com isso se leva em conta a resistência e a opacidade que caracterizam a obra de arte? E será que o exemplo da arte pode realmente formar o quadro em que se desenvolve uma hermenêutica geral? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Minha resposta é a seguinte: O ponto de partida de minha teoria hermenêutica foi justamente que a obra de arte é uma provocação para nossa compreensão porque se subtrai sempre de novo às nossas interpretações e se opõe com uma resistência insuperável a ser transposta para a identidade do conceito. Isso já pode ser visto, segundo me parece, na "Crítica do juízo", de Kant. E justamente por isso que o exemplo da arte exerce a função orientadora, que a primeira parte de Verdade e método I possui para o conjunto de meu projeto de uma hermenêutica filosófica. Isso torna-se de todo claro, se considerarmos "a verdade da arte" na multiplicidade e multivariedade infinita de seus "enunciados". VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Meu período de aprendizagem junto a Heidegger encerrou-se com o seu retorno de Marburgo para Friburgo e com o começo de minha própria atividade acadêmica em Marburgo. Foi quando surgiram as três conferências de Frankfurt, hoje conhecidas como "Origem da obra de arte". Escutei-as em 1936. Ali encontrava-se o conceito de "terra", com o qual Heidegger supera de modo dramático o vocabulário da filosofia moderna, vocabulário que ele renovara a partir do espírito da língua alemã e revitalizado em suas preleções. Como isso veio de encontro às minhas próprias perguntas e à minha própria experiência da proximidade entre arte e filosofia, despertou em mim uma ressonância imediata. Minha hermenêutica filosófica procura manter-se na direção de questionamento do Heidegger tardio e torná-la acessível de uma nova maneira. Considerei que para esse fim deveria manter o conceito de consciência, [11] contra cuja função fundamentadora havia se voltado a crítica ontológica de Heidegger. Procurei, no entanto, delimitar esse conceito nele próprio. Heidegger viu aqui, sem dúvida, uma recaída na dimensão de pensamento que ele havia superado — mesmo que tenha percebido que minha intenção voltava-se na direção de seu próprio pensamento. Creio que não compete a mim decidir se o caminho que segui pode pretender alcançar de certo modo os desafios de pensamento de Heidegger. Uma coisa, porém, precisa ser dita hoje. Trata-se de um trecho de caminho, a partir do qual podem-se demonstrar alguns dos intentos do Heidegger tardio, e dizer alguma coisa àquele que não consegue acompanhar a orientação de pensamento do próprio Heidegger. De qualquer modo, deve-se ler corretamente o meu capítulo sobre a consciência histórico-efeitual em Verdade e método. Ali, não se deve ver uma modificação da autoconsciência, algo como uma consciência da história efeitual ou um método hermenêutico nele fundamentado. Antes, precisamos reconhecer aqui a delimitação da consciência pela história efeitual, na qual todos nos encontramos. Trata-se de algo que não conseguimos penetrar completamente. A consciência histórico-efeitual, como foi dito naquele ponto, "é mais ser do que consciência". VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Neste ponto parece necessário deter-nos um pouco na diferenciação entre ler e reproduzir. Talvez não possa ir tão longe como Emilio Betti, que em sua teoria da interpretação separa completamente um do outro, o compreender e o reproduzir. Devo insistir que é a leitura e não a reprodução que representa o verdadeiro modo de experiência da própria obra de arte, e que a define como tal. Ali, trata-se de uma "leitura" no sentido "eminente" da palavra, assim como o texto de poesia é um texto em sentido "eminente" da palavra. Na verdade, a leitura é a forma efetiva de todo encontro com a arte. Não está presente apenas nos textos, mas também nas artes plásticas e na arquitetura. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Na verdade, o que importa é reconhecer a distância temporal como uma possibilidade positiva e produtiva da compreensão. Esta distância é preenchida pela continuidade da origem e da tradição, em cuja luz se nos mostra tudo que nos é transmitido. Nesse ponto, cabe falar de uma autêntica produtividade do acontecer. Todos sabemos da impotência de nosso juízo, quando a distância temporal não nos confiou critérios seguros. Emitir um juízo sobre a arte atual, portanto, comporta um caráter de extrema insegurança para a consciência científica. Para aproximar-nos dessas criações servimo-nos de preconceitos não controláveis, que podem fornecer-lhes uma ressonância exacerbada, sem conformidade com seu verdadeiro conteúdo e com sua verdadeira significação. Apenas a morte de todas essas relações atuais permite mostrar sua configuração própria, possibilitando a compreensão do que nelas se diz e reivindicar um caráter comum vinculante. No mais, a decantação do sentido verdadeiro de um texto ou de uma obra de arte é um processo infinito. A distância temporal, que produz [64] esta decantação, está em constante movimento e ampliação, e este é o lado produtivo que ela oferece à compreensão. Deixa morrer os preconceitos de natureza particular e permite o surgimento daqueles que possibilitam uma verdadeira compreensão. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Disso sabem os poetas que procuram colocar-se à altura do modo de proceder do espírito poético que neles vige, como fez, por exemplo, Hölderlin. Afastando da experiência poética originária tanto o dado prévio da linguagem quanto o dado prévio do mundo, isto é, a ordem das coisas, e descrevendo a concepção poética como a confluência de mundo e alma no devir poético da linguagem, os poetas descrevem na verdade uma experiência rítmica. A configuração do poema, onde desemboca o devir de linguagem, garante, em sua finitude, a mútua referência de alma e mundo dada na linguagem. É aqui que o ser da linguagem mostra sua posição central. Partir da subjetividade, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívoco. A linguagem não deve ser pensada como um projeto prévio de mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de uma consciência individual ou do espírito de um povo. Esses todos são apenas mitologias, exatamente como o conceito do gênio, que desempenha um papel tão predominante na teoria estética, porque ensina a compreender a construção da imagem como uma produção inconsciente e com isso interpretá-la a partir da analogia com o produzir consciente. A obra de arte não pode contudo ser compreendida a partir da execução planificada de um projeto — mesmo que esse seja sonâmbulo e inconsciente — tampouco como o curso da história universal pode ser pensado pela nossa consciência finita como a execução de um plano. Tanto num caso quanto no outro, sorte e êxito desvirtuam-se em oracula ex eventu, que encobre, na verdade, o evento do qual são a expressão, a palavra ou a ação. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: "Conceber aquilo que nos toca" (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio. Isso não deixa de ter conseqüências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma "aplicação" posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida "de maneira puramente teórica", a um objetivo prático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Mas, nas condições hermenêuticas de nosso comportamento na linguagem, impõe-se outra forma de reflexão hermenêutica ainda mais profunda, que não se refere apenas ao não-dito, mas ao que o dizer encobre. O fato de o dizer poder encobrir, em seu próprio desempenho, é notório no caso específico da mentira. O intrincado tecido das relações inter-humanas onde se dá a mentira, desde a fórmula de cortesia oriental até a nítida quebra da confiança entre duas pessoas, não possui um caráter primariamente semântico. Quem mente sob pressão, faz isso sem hesitar e sem deixar transparecer sua mentira. Nesse caso, aquele que mente encobre o próprio encobrimento de sua fala. Mas esse caráter próprio da mentira só adquire realidade de linguagem quando o objetivo é apenas pela linguagem evocar a realidade, isto é, na obra de arte da linguagem. No seio da totalidade de um conjunto de enunciados poéticos, no âmbito da linguagem, o modo de encobrimento que chamamos de mentira possui suas estruturas semânticas próprias. A lingüística moderna fala de sinais da mentira, pelos quais o enunciado de um texto é conhecido como um enunciado destinado ao encobrimento. A mentira não é simplesmente a afirmação de algo falso. Trata-se de um falar encobridor consciente do que faz. E por isso, no contexto poético, a tarefa de exposição da linguagem é revelar a mentira, ou melhor, compreender o caráter mentiroso da mentira como ele se dá na real intenção daquele de quem fala. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

O que é hermenêutica? Gostaria de partir de duas experiências de estranhamento que encontramos no âmbito de significações que atingem nossa existência. Refiro-me à experiência de [220] estranhamento da consciência estética e da consciência histórica. O que quero dizer com isso pode ser expresso com poucas palavras: A consciência estética realiza a possibilidade, cujo valor não podemos negar nem minimizar, de relacionar-nos com a qualidade de uma obra de arte de forma crítica ou afirmativa. Mas isso significa que o que decide sobre a força enunciativa e a validade do que assim julgamos é, em última instância, nosso próprio juízo. Aquilo que recusamos não tem nada a nos dizer ou então recusamo-lo justo porque não tem nada a nos dizer. É isso que caracteriza nossa relação com a arte, no sentido amplo da palavra. Como mostrou Hegel, a arte também abarca todo o mundo religioso greco-pagão, enquanto arte-religião, como modo de experimentar o divino na resposta artística do homem. Quando esse mundo da experiência no seu todo se aliena como objeto de um julgamento estético, acaba perdendo sua autoridade originária e inquestionável. Nesse sentido, é preciso reconhecer que o mundo da tradição artística, a extraordinária simultaneidade com tantos mundos humanos proporcionada pela arte, é para nós bem mais que um mero objeto de aceitação ou rejeição livre. Ao contrário, o que se apodera de nós como obra de arte já não nos dá liberdade de distanciá-lo, de aceitá-lo ou recusá-lo a partir de nós mesmos. Será também que essas criações do engenho artístico humano, atravessando os milênios, foram feitas para prestar-se a essa aceitação ou recusa estética? Todo artista das culturas religiosas do passado expunha sua obra de arte com o único objetivo de ser aceita no que ela diz e representa e como pertencente ao mundo da convivência humana. A consciência da arte, a consciência estética é sempre uma consciência secundária. É secundária frente à imediata pretensão de verdade que provém da obra de arte. Nesse sentido, quando julgamos algo a partir do ponto de vista de sua qualidade estética, estamos deixando de lado alguma outra coisa que nos atinge muito mais intimamente. Essa alienação ao juízo estético instala-se sempre que alguém se subtrai negligentemente, quando não atende o apelo imediato do que o atinge. É por isso que um dos pontos de partida de minhas reflexões afirma que a soberania estética instalada no âmbito de experiência da arte representa uma alienação frente à verdadeira realidade da experiência que encontramos nas configurações onde se enuncia a arte. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Como se sabe, mais tarde Heidegger abandonou o conceito de hermenêutica porque viu que por essa via não poderia romper o feitiço da reflexão transcendental. Seu filosofar, que procurou separar-se do conceito do transcendental sob o signo da "virada", levou-o a uma crescente penúria no âmbito da linguagem até o ponto de muitos leitores crerem encontrar na nova linguagem de Heidegger mais poesia do que pensamento filosófico. Essa interpretação parece-me um erro. Em função disso, um dos temas que abordo tem sido a busca de maneiras para explicitar a linguagem de Heidegger sobre o ser, um ser que não é o ser do ente. Isso me aproximou mais da história da hermenêutica clássica e me obrigou a afirmar o novo na crítica da mesma. Minha idéia é que nenhuma linguagem conceitual, nem sequer o que Heidegger chama "linguagem da metafísica", significa um feitiço irremediável para o pensamento, supondo que o pensador se confie à linguagem, isto é, entre em diálogo com outros pensadores e com pessoas que pensam de maneira diferente. Por isso, aceitando totalmente a crítica ao conceito de subjetividade feita por Heidegger, conceito no qual demonstrou a sobrevivência da idéia de substância, busquei detectar no diálogo o fenômeno originário da linguagem. Isto significou, por sua vez, uma reorientação hermenêutica da dialética, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico. Essa arte não pretendia ser uma dialética meramente negativa. Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a dialética grega pretendesse ser uma mera dialética negativa. Mas mesmo assim ela apresenta uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência mas na experiência da arte e da historia, que são os objetos das denominadas ciencias do espírito. A obra de arte, embora se apresente como um produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que enuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiencia da historia: o ideal de objetividade na [333] investigação da historia é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos acontece, e somente na reflexão nos darmos conta do que aconteceu. Nesse sentido a historia deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que "o ser que pode ser compreendido é linguagem", essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser "se mostra". A "hermenêutica da facticidade" [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O "ser para o texto", que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o "ser para a morte", e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl   e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta "imanência" metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por "compreender" algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do "conhecimento de si mesmo na alteridade" como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche  , com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de "vontade de poder" presente até na submissão e no sacrifício: "também no escravo há vontade de poder". Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o "logocentrismo" da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Isso vale para todo tipo de audição e de leitura. No caso dos textos literários, a situação é muito mais complexa. Neles não se trata simplesmente de recolher a informação transmitida pelo texto. Não corremos, impacientes, diretamente à busca do sentido final para com ele captar a totalidade da comunicação. Também nesse caso se dá, sem dúvida, uma espécie de compreensão instantânea [358], que permite ver a unidade do conjunto. No texto poético ocorre o mesmo que na imagem artística. Conhecemos relações de sentido, embora de modo vago e fragmentário. Mas em ambos os casos a referência que retrata a realidade fica em suspenso. O texto é o único que permanece presente com sua relação de sentido. Quando lemos textos literários, em voz alta ou baixa, vemo-nos constantemente remetidos a relações de sentido e de som que articulam a estrutura da totalidade, e isso não apenas uma vez, mas sempre de novo. Voltamos páginas atrás, recomeçamos, relemos o texto, descobrimos novas relações de sentido e ao final não estamos seguros de ter finalmente compreendido a coisa, resultado que em geral nos faria abandonar o texto. Ocorre o inverso: aprofundamo-nos cada vez mais, conforme aumentem as referências de sentido e som que entram na consciência. Não abandonamos o texto, mas nos deixamos conduzir para dentro dele. Permanecemos em seu interior, como o orador se mantém no âmbito das palavras que diz e não fica à distância como ocorre com aquele que maneja ferramentas, que as toma e as deixa de lado. Nesse sentido, torna-se um grande erro falar de manejo das palavras. A expressão "manejo de palavras" não atinge a fala real. Trata-a como se lançasse mão de um léxico de uma língua estrangeira. E quando se trata de fala real, é preciso limitar radicalmente as regras e normas. Essa limitação é válida sobretudo para o texto literário. O texto literário não é correto em função de dizer o que todos e cada um diria, mas porque possui um novo e singular critério de correção, que o caracteriza como uma obra de arte. Cada palavra se "encaixa", parecendo quase insubstituível, e de certo modo o é. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

O verso foi objeto de um debate entre Emil Staiger e Martin Heidegger. Interessa-nos aqui unicamente como um caso exemplar. Nesse verso aparece um conjunto verbal de aparente trivialidade: scheintes. Pode-se entender como "parecer", dokei, videtur, ilsemble, it seems, pare etc. Essa interpretação prosaica da expressão faz sentido e por isso encontrou seu defensor. Mas pode-se ver muito bem que tal interpretação não cumpre a lei do verso. Pode-se também demonstrar que scheint es significa aqui "reluz", splendet Basta aplicar um princípio hermenêutico. Em caso de conflito, decide o contexto mais amplo. A dupla possibilidade de compreensão é sempre um conflito. Mas é evidente que o belo se aplica aqui a uma lâmpada. Tal é o enunciado global do poema que é preciso compreender. Uma lâmpada que não ilumina porque repousa dependurada, velha e fora de moda, num salão de luxo ("quem tem olhos para ela?"), adquire aqui seu próprio brilho porque é uma obra de arte. É indubitável que o brilho se refere [360] aqui à lâmpada que ilumina, ainda que ninguém a utilize. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Num trabalho altamente acadêmico sobre essa discussão, Leo Spitzer analisou detalhadamente o gênero literário desses poemas temáticos, indicando de forma convincente o lugar que ocupam na história da literatura. Heidegger, por seu lado, chamou a atenção com razão para o nexo conceitual da palavra schõn (belo) e scheinen (brilhar, parecer) que ressoa na famosa expressão de Hegel sobre o brilho sensível da idéia. Mas existem também razões imanentes. A ação que combina som e significado das palavras faz surgir outra clara instância de decisão. Uma vez que, nesses versos, os sons sibilantes formam uma trama consistente (tuas aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst), ou uma vez que a modulação métrica do verso constitui a unidade melódica da frase (existe um acento métrico sobre schõn, selig, scheint, in, selbst), não há lugar para uma erupção reflexiva como seria o caso de um prosaico scheint es. Significaria antes a erupção da prosa coloquial na linguagem de um poema, um desvio do compreender poético que sempre nos ameaça a todos. Isso porque, em geral, falamos em prosa, como constata o Monsieur Jourdain, de Molière, para a sua própria surpresa. Foi justamente isso que levou a poesia atual a formas estilísticas extremamente herméticas para impedir a erupção da prosa. Aqui, no poema de Mõrike, esse desvio não está muito distante. A linguagem desse poema aproxima-se freqüentemente da prosa (Quem tem olhos para ela?). Ora, a posição que esse verso ocupa no poema, a posição de conclusão, confere-lhe um peso gnômico especial. Com seu próprio enunciado, o poema ilustra, na realidade, o motivo por que o ouro desse verso não é uma ordem de pagamento como uma nota bancária ou uma informação, mas possui seu valor próprio. O brilho não é apenas compreendido, mas se irradia sobre todo o esplendor dessa lâmpada que jaz dependurada, despercebida, num salão esquecido, e só reluz ainda nesses versos. O ouvido interior percebe aqui as correspondências de schõn (belo), selig (feliz), scheinen (brilhar, parecer) e selbst (mesmo)… e o selbst, que encerra e emudece o ritmo, faz ressoar o movimento calado em nosso ouvido interior. Faz brilhar em nosso olho interior o suave fluir da luz que chamamos de scheinen (brilhar). Desse modo, nossa compreensão não entende apenas o que se diz ali sobre o belo e o que expressa a autonomia da obra de arte, que não depende de nenhuma relação de uso… nosso ouvido ouve e nosso entendimento percebe o brilho do belo como seu verdadeiro ser. O intérprete que atribui suas razões desaparece, e o texto fala. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Há, também aqui, exigências estilísticas que não podem ser negligenciadas. Mas isso não significa que uma obra de arte não possua nenhum outro significado que o histórico-estilístico. Sobre essa questão, Sedlmayr tem toda razão com sua crítica da história do estilo. O interesse classificatório que se satisfaz com a história do estilo não atinge realmente o elemento artístico, o que não impede que o conceito de estilo conserve seu significado para a verdadeira ciência da arte. Isso porque também uma análise estrutural da ciência da arte, como a exigida por Sedlmayr, tem que satisfazer as exigências da história dos estilos naquilo que esta ciência chama de atitude correta. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO I

Esse aspecto torna-se muito evidente nas modalidades de arte que requerem re-produção (música, teatro, dança, etc). A reprodução deve ser estilisticamente correta. Deve-se saber o que exigem o estilo da época e o estilo pessoal de um mestre. De certo, esse saber não é tudo. Uma reprodução "historicamente fiel" não seria uma produção verdadeiramente artística, i. é, não representaria a obra enquanto obra de arte, mas seria antes — suposto que isto seja possível — um produto didático ou um simples material para a investigação histórica, como serão provavelmente no futuro as gravações de discos dirigidas pelo próprio compositor. Mas mesmo a mais viva inovação de uma obra experimentará certas restrições da coisa em questão, restrições impostas por parte da história dos estilos, e não é aconselhável que se volte contra elas. O estilo pertence, na realidade, à "base sólida" da arte, às condições que estão na coisa ela mesma, e o que surge então na re-produção vale para o nosso comportamento receptivo com relação a toda espécie de arte 78] (a re-produção não é mais que uma forma determinada de mediação a serviço da recepção). É verdade que o conceito de estilo (semelhante ao conceito de gosto, com o qual é aparentado; cf. o termo senso estilístico) não constituiu um ponto de vista satisfatório para a experiência da arte e para seu conhecimento científico — ele só o é no âmbito do decorativo. Mesmo assim, constituiu-se num pressuposto necessário para se compreender a arte. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO I

Se na atitude de deixar em aberto vemos intenções políticas, como faz Carl Schmitt quando fala do tabu da rainha, então, passamos ao largo do real significado do jogo, ou seja, o colocar-se em jogo testando e experimentando possibilidades. O desenrolar-se do jogo não está empatriado num mundo fechado da aparência estética. Realiza-se como uma constante investida e posicionamento no tempo. A pluralidade produtiva que constitui a essência da obra de arte é uma outra expressão para a determinação da essência do jogo, a saber, o de tornar-se cada vez um evento novo. Nesse sentido fundamental, a compreensão das ciências do espírito concorda plenamente com a experiência imediata da obra de arte. A própria compreensão produzida pela ciência permite o desenvolvimento da dimensão de sentido da tradição e consiste, ela própria, na experimentação e comprovação dessa dimensão de sentido. É justamente [81] por isso que também ela se constitui em acontecimento, como foi mostrado no decorrer desta investigação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO II

Mas ainda mais importante que isso seria uma análise de Platão como objeto de reflexão hermenêutica. A obra de arte dialógica contida nos escritos de Platão ocupa um lugar peculiar, no centro, entre a multiplicidade das máscaras da poesia dramática e a autenticidade do escrito doutrinário. Nesse sentido, os últimos decênios contribuíram para a formação de uma consciência hermenêutica mais elevada. O próprio Strauss surpreende, em seus trabalhos, com muitas mostras de brilhante decifração das relações de significado ocultas no decurso dos diálogos platônicos. Por mais que tenham nos ajudado a análise formal e outros métodos filológicos, a verdadeira base hermenêutica é a nossa própria relação com os problemas temáticos de que trata Platão. Mesmo a ironia artística de Platão (como qualquer ironia) só pode ser compreendida por quem está por dentro dos temas que ele trata. A conseqüência é que essas interpretações decifradoras permanecem "inseguras". Sua "verdade" não pode ser demonstrada "objetivamente", a não ser a partir daquele acordo temático que nos liga com o texto interpretado. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Nessa altura talvez possamos acrescentar que também a Logische Propädeutik (Propedêutica lógica), proposta por Kamlah e Lorenzen, que exige do filósofo a "introdução" metodológica de todos os conceitos legítimos para um enunciado cientificamente comprovável, está imersa no círculo hermenêutico de um saber prévio, pressuposto no âmbito da linguagem, e num uso de linguagem que deve ser purificado pela crítica. Nada temos contra um ideal da construção de uma linguagem científica, que em muitos âmbitos traz certamente importantes esclarecimentos, sobretudo para a lógica e para teoria da ciência. Para esse ideal, enquanto educação para um falar responsável, não se deveria colocar nenhuma restrição, mesmo no campo da filosofia. Aquilo que Hegel se propôs a fazer em sua Lógica, sob o pensamento central de uma filosofia que abarcasse toda a ciência, é o mesmo que procura fazer Lorenzen, de maneira nova, na reflexão sobre "investigação" e sua justificação lógica. De certo, trata-se de uma tarefa legítima. No entanto, gostaria de defender que a fonte do saber e do saber prévio, que emana da interpretação de um mundo sedimentado na linguagem, continuaria mantendo sua legitimidade mesmo que pudéssemos pensar a linguagem ideal da ciência como completa e perfeita, e isso vale também para a "filosofia". O Iluminismo da história dos conceitos, linguagem que eu mesmo adotei em meu livro e que uso da melhor maneira possível, é recusado por Kamlah e Lorenzen com a objeção de que o fórum da tradição não pode pronunciar nenhum julgamento unívoco e seguro. Creio ser uma exigência legítima poder responsabilizar-se diante desse fórum. Isso porém não significa inventar uma linguagem adaptada às novas idéias, mas extraí-la da linguagem viva. Essa exigência só pode ser realizada pela linguagem da filosofia, se conseguir manter aberto o caminho que vai da palavra para o conceito e vice-versa. Isso parece-me ser uma instância que mesmo Kamlah e Lorenzen levam em consideração em seu próprio procedimento como o uso de linguagem. De certo, isso não cria nenhum edifício metodológico da linguagem pelo do incremento paulatino de conceitos. Mas tornar conscientes as implicações contidas nos termos conceituais também representa um "método" e, na minha opinião, um método adequado ao objeto da filosofia. Isso porque o objeto da filosofia não se resume a esclarecer reflexivamente os procedimentos das ciências. Tampouco consiste em tirar a "soma" da multiplicidade de nosso saber moderno, arredondando-a até alcançar a totalidade de uma "concepção de mundo". É verdade que a filosofia tem a ver com a totalidade de nossa experiência de mundo e de vida, e o faz de modo diferente do que todas as outras ciências. Seu envolvimento com essa tarefa se dá nos moldes de nossa própria experiência de vida e de mundo articulada na linguagem. Estou longe de afirmar que o saber dessa [461] totalidade represente um conhecimento realmente assegurado e que não deva ser sempre de novo submetido à crítica pelo pensamento. O que não se pode é ignorar esse "saber", seja que se expresse como sabedoria religiosa ou proverbial, como obra de arte ou como pensamento filosófico. A própria dialética de Hegel — não me refiro à sua esquematização de um método de demonstração filosófica, mas à experiência que forma a base de sua "inversão" de conceitos, que buscam compreender o todo — pertence a essas formas do auto-esclarecimento interior e de representação intersubjetiva de nossa experiência humana. Em meu livro, fiz um uso bastante vago desse modelo vago de Hegel e por isso gostaria de remeter a uma pequena e recente publicação intitulada Hegels Dialektik, Fünf hermeneutischen Studien (A dialética de Hegel — cinco estudos hermenêuticos), Tübingen, 1971, a qual contém uma explanação mais precisa, mas também uma certa justificação para essa vacuidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Nesse ponto, o conceito de sentido defendido pela filosofia idealista da identidade foi funesto. Ele reduziu a competência da reflexão hermenêutica à chamada "tradição cultural", seguindo a linha de Vico que só considerava compreensível para os homens o que era feito por estes. A reflexão hermenêutica, que representa o ponto central de toda minha investigação, tenta mostrar justamente que esse conceito da compreensão de sentido é errôneo, e nessa perspectiva tive de restringir também a famosa determinação de Vico. Parece-me que tanto Apel quanto Habermas fincam pé nesse sentido idealístico do compreender o sentido, que nada tem a [471] ver com o ductus de minha análise. Não foi por acaso que orientei a minha investigação pela experiência da arte, cujo "sentido" não pode ser esgotado pela compreensão conceitual. O fato de eu ter desenvolvido o questionamento de uma hermenêutica filosófica universal, tomando como ponto de partida a crítica à consciência estética e refletindo sobre a arte — e não partindo imediatamente do âmbito das chamadas ciências do espírito — não significa, de modo algum, um arrefecimento diante da exigência de método na ciência. Significa antes uma primeira medição do alcance que possui a questão hermenêutica e que não busca primeiramente designar certas ciências como hermenêuticas, mas trazer à luz uma dimensão que precede a todo uso do método na ciência. E por isso que a experiência da arte tornou-se importante em muitos aspectos. O que significa essa superioridade temporal que a arte reivindica como conteúdo de nossa consciência estética formativa? Surge então uma dúvida: Será que essa consciência estética que a "arte" tem em mente — como ocorre com o próprio conceito de "arte", elevado ao caráter pseudo-religioso — não representa uma diminuição de nossa experiência da obra de arte, tal como a consciência histórica e o historicismo são uma diminuição da experiência histórica? E igualmente intempestiva? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

[475] Não é sem razão, portanto, que a obra de arte da linguagem vem em primeiro plano. Independentemente da questão histórica da oral poetry, ela é arte de linguagem em forma de literatura, em um sentido básico. Costumo chamar a textos dessa natureza de textos "eminentes". VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O que tem me ocupado nos últimos anos e o que tenho buscado em diversas conferências ainda não publicadas (Bild und Wort; Das Sein des Gedichteten; Von der Wahrheit des Wortes; Philo-sophical, poetical, religious speaking = Imagem e palavra; O ser do poético; Sobre a verdade da palavra; Diálogo filosófico, poético e religioso) são os problemas hermenêuticos especiais dos textos eminentes. Esse tipo de texto fixa a pura ação de linguagem, e tem com isso um eminente relacionamento com o escrito. Nele, a linguagem está presente de tal modo que sua relação cognitiva com o dado está tão suspensa como a referência comunicativa no sentido da interpelação. Então, a situação hermenêutica geral básica da constituição e fusão de horizontes, a que dei um desenvolvimento conceitual expresso, deverá ser aplicada também a esses textos eminentes. Estou longe de afirmar que o modo como uma obra de arte fala à sua época e ao seu mundo (o que H.R. Jauss chama de sua "negatividade") não ajuda a determinar seu significado, ou seja, o modo como ela nos fala. Este era realmente o núcleo da consciência da história dos efeitos, a saber, pensar a obra (Werk) e seu efeito (Wirkung) como a unidade de um sentido. O que descrevi como fusão de horizontes representa a forma como essa unidade se realiza. Esta não permite ao intérprete falar de um sentido originário de uma obra sem que na compreensão da mesma já não esteja sempre implicado o sentido próprio do intérprete. Toda vez que se pensar, por exemplo, que é possível "romper" o círculo da compreensão, através do método histórico-crítico (como pensou recentemente Kimmerle), se está ignorando essa estrutura hermenêutica fundamental. O que Kimmerle descreve, assim, é simplesmente o que Heidegger caracterizava como "entrar no círculo de maneira correta", ou seja, não é uma atualização anacrônica e nem um acrítico puxar brasas para a sardinha das próprias opiniões prévias. A elaboração do horizonte histórico de um texto já é sempre uma fusão de horizontes. O horizonte histórico não pode ser erigido primeiramente por si. Isso é conhecido na hermenêutica mais recente como a problemática da compreensão prévia. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Não foi um determinado cânon temático do classicismo o que me motivou a caracterizar o clássico como a categoria da história dos efeitos, por excelência. Com essa categoria, queria destacar muito mais a singularidade da obra de arte e sobretudo todo e qualquer texto eminente frente a outras formas de tradição compreensíveis e necessitadas de interpretação. Aqui, a dialética de pergunta e resposta por mim desenvolvida não perde sua validez, mas modifica-se: a pergunta originária, em relação à qual um texto deve ser compreendido como uma resposta, como dissemos acima, caracteriza-se, aqui, a partir de seu próprio princípio, por sua superioridade e liberdade com relação ao texto. Mas isso não significa que a "obra clássica" só seria acessível ainda em uma convencionalidade sem esperanças. Tampouco significa que exija um conceito harmonioso e inconteste do "humano comum". A obra só "fala" quando fala "originariamente", ou seja, "como se o dissesse para mim próprio". Isso não significa, em absoluto, que aquilo que assim fala deve ser medido em um conceito normativo extra-histórico. Trata-se, antes, do caso oposto. O que fala desse modo impõe, com isso, uma medida. E aqui está o problema. A pergunta originária, cuja resposta constitui a compreensão do texto, apela, nesse caso, para uma identidade de sentido que já intermediou desde o princípio a distância entre origem e presente. Em uma conferência realizada em Zurique, em 1969, intitulada "Das Sein des Gedichteten", indiquei as diferenciações hermenêuticas que se fazem necessárias para tais textos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O aspecto hermenêutico porém parece-me indispensável também para a discussão estética de nossos dias. Precisamente depois que a "antiarte" tornou-se lema social, depois que o pop art, o Happening e algumas condutas tradicionais buscaram formas de arte contrárias às representações tradicionais da obra e sua unidade, esforçando-se por zombar de toda univocidade e compreensibilidade, a reflexão hermenêutica tem a tarefa de questionar o que está havendo com tais pretensões. A resposta a isso deverá indicar que o conceito hermenêutico de obra conservará sua plenitude, na medida em que nessa produção estejam incluídos identificabilidade, repetição e que essa repetição valha a pena. Na medida em que uma tal produção, enquanto é o que pretende ser, obedece à [477] relação hermenêutica fundamental de compreender algo como algo, a forma de concepção jamais será algo radicalmente novo para ela. Essa "arte" não se distingue em nada, na verdade, de certas formas de arte de caráter transitório, conhecidas desde antigamente, como, por exemplo, a arte da dança. Seu status e pretensão de qualidade são tais que, mesmo a improvisação, que jamais se repete, quer ser "boa", o que significa, idealiter repetível e confirmando-se como arte na repetição. Aqui há uma fronteira bem precisa que distingue essa arte do mero truque ou do número do prestidigitador. Também nesse caso há algo a ser compreendido. Pode ser concebido, pode ser imitado, requer inclusive domínio de sua arte e requer ser bom. Mas, usando as palavras de Hegel, a sua repetição será "vã como um número de prestidigitação do qual já se saiba o truque". As fronteiras existentes entre a obra de arte e o "número" podem até parecer difusas e fluentes e os contemporâneos podem até não saber se a atração de uma produção é efeito da surpresa ou um enriquecimento artístico. Não poucas vezes, os meios artísticos dão-se também como instrumentos em contextos de simples ações, como, por exemplo, em cartazes ou em outras formas de propaganda social ou política. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Aquilo que nós chamamos de obra de arte permanece distinto daquelas funções do meio artístico. Mesmo quando a estátua de deuses, o canto do coro, a tragédia e a comédia ática se realizam em meio a ordenações do culto, e, de modo geral, quando toda "obra" pertence originariamente a um contexto vital que já tenha passado, a doutrina da não-diferenciação significa que esta relação passada está, por assim dizer, presente na própria obra. Também em sua origem a obra reunira em si o seu "mundo" e, por isso, era "pensada" como ela própria, como a estátua de Fídias, a tragédia de Ésquilo  , o Motete de Bach. A constituição hermenêutica da unidade da obra de arte é invariável frente a todas as mudanças sociais do empreendimento artístico. Isso se aplica também quando se busca elevar a arte a religião da cultura, a qual é determinante para a sociedade da era burguesa. Também uma consideração marxista da literatura deverá concordar com esta invariância, como destaca com razão Lucien Goldmann. A arte não é um simples instrumento do querer sociopolítico. Se for realmente arte, e não tiver sido pensada como instrumento, documentará uma realidade social. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Há que se dizer que o fato de apelar à verdade da arte contra as dúvidas do relativismo histórico, que questionavam radicalmente a pretensão da filosofia de buscar a verdade pela via conceitual não representava nenhuma saída satisfatória. Por um lado, esse testemunho é muito forte. Porque ninguém pretende estender a fé no progresso, própria da ciência, aos cumes da arte e ver, por exemplo, em Shakespeare um progresso sobre Sófocles  , ou em Miquelângelo um progresso sobre Fídias. Mas, por outro lado, o testemunho da arte é também muito frágil, uma vez que a obra de arte subtrai ao conceito a verdade que ela materializa. Em todo caso, a formação que proporcionava a consciência estética era tão insegura como a da consciência histórica e seu pensamento sobre as "concepções de mundo". Mas isso não significa que a arte, assim como o confronto com as tradições do pensamento histórico, perdera seu fascínio. Ao contrário, a enunciação da arte como a enunciação dos grandes filósofos denotava ainda mais uma aspiração à verdade, confusa e inevitável, que não se podia neutralizar com nenhuma "história do problema" nem se deixava submeter às leis da rígida cientificidade e do progresso metodológico. Esse sentimento foi caracterizado então na Alemanha como "existencial", sob a influência de uma reapropriação de Kierkegaard  . Interessava uma verdade que não fosse devida tanto a alguns enunciados ou conhecimentos gerais, mas à imediatez das próprias vivências e à intransferibilidade da própria existência. Pensávamos que Dostoievski podia nos ensinar muito sobre isso. Os volumes de suas novelas, encadernados em vermelho, na edição de Piper, brilhavam em todas as escrivaninhas. As cartas de Van Gogh e Ou isto ou aquilo de Kierkegaard, que ele contrapunha a Hegel, nos fascinavam e por trás de todas as audácias e os riscos de nosso compromisso existencial aparecia — como uma ameaça ainda apenas visível ao tradicionalismo romântico de nossa cultura educativa — a figura gigante de Friedrich Nietzsche com sua crítica extática a tudo, também a todas as ilusões da autoconsciência. Onde estava o pensador cuja força filosófica poderia fazer frente a esses desafios? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin, enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. Pude constatar isso com meus primeiros ensaios no campo do pensamento. Isso sempre deu o que pensar a minha própria orientação hermenêutica. A tentativa hermenêutica de analisar a linguagem partindo do diálogo — uma tentativa ineludível para um discípulo permanente de Platão — significa em última instância a superabilidade de qualquer fixação mediante o avanço do diálogo. Assim, a fixação terminológica, adequada no campo construtivo da ciência moderna e de seu objetivo de permitir a todos o acesso ao saber, torna-se suspeita na esfera dinâmica do pensamento filosófico. Os grandes pensadores gregos preservaram a mobilidade de sua própria linguagem inclusive nas ocasiões em que lançaram mão dessa fixação conceitual, a saber, na análise temática. Existe, no entanto, uma escolástica antiga, medieval, moderna e novíssima. Ela acompanha a filosofia como sua sombra. Isso significa que se pode avaliar a qualidade de um pensamento pela sua capacidade de quebrar as fossilizações existentes na linguagem filosófica tradicional. O ensaio programático de Hegel, manejado por seu método dialético, teve no fundo muitos antecedentes. Mesmo um pensador tão cerimonioso como Kant, que jamais deixou de lado o latim escolástico, encontrou sua "própria" linguagem, evitando neologismos, é verdade, mas extraindo numerosos significados novos dos conceitos tradicionais. Também o alto status de Husserl se determina frente ao neokantismo de sua época e da anterior pela força intuitiva de seu intelecto, que soube fundir as expressões tradicionais com a flexibilidade descritiva de seu vocabulário. Heidegger amparou-se precisamente no exemplo de Platão e de Aristóteles para justificar a novidade de sua criação de linguagem, e seus seguidores têm sido muito mais numerosos do que se poderia esperar diante das primeiras reações de assombro e escândalo. A filosofia, diferentemente da ciência e [507] da práxis da vida, defronta-se com uma dificuldade toda própria. A linguagem que falamos não foi feita para as finalidades do filosofar. A filosofia vê-se acometida de uma carência constitutiva de linguagem, e essa carência se faz sentir ainda mais quando o filósofo decide pensar com ousadia. Costuma ser característico do diletante o afã em "formar" conceitos arbitrários e "defini-los" com muita avidez. O filósofo reanima a força intuitiva da linguagem, e as ousadias e violências de linguagem podem ser pertinentes, quando ele consegue fazer com que penetrem na linguagem dos que pensam e seguem com ele. Isso significa, quando essa linguagem dinamiza, estende, ilumina unicamente o horizonte do entendimento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.