O tempo já não é mais, primariamente, um abismo a ser transposto porque divide e distancia, mas é, na verdade, o fundamento que sustenta o acontecer, onde a atualidade finca suas raízes. A distância de tempo não é, por conseguinte, algo que tenha de ser superado. Esta era, antes, a pressuposição ingênua do historicismo, ou seja, que era preciso deslocar-se ao espírito da época, pensar segundo seus conceitos e representações em vez de pensar segundo os próprios, e somente assim se poderia alcançar a objetividade histórica. Na verdade trata-se de reconhecer a distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender. Não é um abismo devorador, mas está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição, a cuja luz nos é mostrado todo o transmitido. Não será exagerado, se falarmos aqui de uma genuína produtividade do acontecer. Todo o mundo conhece essa peculiar impotência do juízo, aí onde não há a distância de tempo a nos proporcionar padrões seguros. Assim, o juízo sobre a arte contemporânea reveste, para a consciência científica, uma desesperadora insegurança. Quando nos aproximamos destas criações o fazemos, evidentemente, a partir de preconceitos incontroláveis, pressuposições que possuem sobre nós demasiado [303] poder para que possamos conhecê-las, e que conseguem conferir à criação contemporânea uma hiper-ressonância que não corresponde ao seu verdadeiro conteúdo e significado. Somente a extinção de todos os nexos atuais torna visível sua verdadeira forma e possibilita, com isso, uma compreensão do que é dito neles, que possa pretender alcançar uma generalidade vinculante. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Não me pareceria suficiente limitar a tarefa do historiador do direito à “reconstrução do sentido original do conteúdo da fórmula legal”, e ao contrário, dizer do jurista, que “ele deve, além disso, pôr em concordância aquele conteúdo, com a atualidade presente da vida”. Uma delimitação desse tipo implicaria que o labor do jurista é o mais amplo, e incluiria em si também o do historiador. Quem quiser adaptar adequadamente o sentido de uma lei tem de conhecer também o seu conteúdo de sentido originário. Ele tem de pensar também em termos histórico-jurídicos. Só que a compreensão histórica não seria, aqui, mais do que um meio para um fim. Na direção oposta, a tarefa jurídico-dogmática não interessa ao historiador como tal. Como historiador ele se movimenta numa contínua confrontação com a objetividade histórica para compreendê-la em seu valor posicionai na história, enquanto que o jurista, além disso, procura reconduzir essa compreensão para a sua adaptação ao presente jurídico. A descrição de Betti trilha mais ou menos esse caminho. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Desse posto intermediário em que se posiciona a hermenêutica, segue-se que o seu núcleo é exatamente o que até o presente havia sido deixado completamente à margem pela hermenêutica: a distância temporal e seu significado para a compreensão. O tempo não é primeiramente um abismo que se deve ultrapassar porque separa e distancia. É na verdade o fundamento sustentador do acontecer, onde se enraíza a compreensão atual. Desse modo, a distância temporal não é algo que deva ser superado. A pressuposição ingênua do historicismo era a exigência de se transferir para o espírito da época, de se pensar com os conceitos e representações da época e não com os próprios e, desse modo, forçar uma passagem para a objetividade histórica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Nietzsche é certamente um testemunho extático, mas a experiência histórica que fizemos nos últimos cem anos com essa consciência histórica nos ensinou de modo impressionante que essa consciência, com sua pretensão a uma objetividade histórica, é acometida de dificuldades bem características. Um dos pontos mais [222] óbvios de nossa experiência científica é o fato de, com certeza inabalável, podermos subordinar as magistrais obras da investigação histórica — nas quais Ranke parece ter elevado a pretensão de auto-anulação da individualidade a uma espécie de perfeição — às tendências políticas de sua própria época. Quando lemos a história romana de Mommsen, sabemos quem pode tê-la escrito, isto é, qual a situação política de sua época que levou o historiador a compilar as vozes do passado numa formulação racional. Podemos comprovar isso também em Treitschke ou em Sybel, para citar apenas alguns exemplos marcantes da historiografia prussiana. Isso significa de imediato que a autoconcepção do método histórico não revela toda a realidade da experiência histórica. Poder controlar os preconceitos da própria atualidade para que não prejudiquem a compreensão dos testemunhos do passado é incontestavelmente um objetivo justificado. Mas o que assim se realiza não esgota toda a tarefa da compreensão do passado e sua tradição. Poderia ser, também — e o rastreamento dessa questão é na realidade uma das primeiras tarefas a serem feitas pela ciência histórica no exame crítico de sua autoconcepção — , que o que permite à investigação histórica aproximar-se desse ideal de uma total anulação da individualidade não passe de matéria irrelevante, enquanto que os resultados da investigação realmente grandes e produtivos conservariam sempre algo da magia de um espelhamento imediato do presente no passado e do passado no presente. Também essa segunda experiência, que representa o ponto de partida de minha investigação, a ciência histórica, só revela uma parte do que é a verdadeira experiência, isto é, do que significa para nós o encontro com a tradição histórica, limitando-se a conhecer, assim, apenas numa configuração alienada. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.