Gadamer (VM): nexo

Todavia, uma pergunta como esta só pode ser colocada hoje, depois que o Aufklärung histórico já mediu plenamente suas possibilidades. Os estudos de Dilthey sobre a gênese da hermenêutica desenvolvem um nexo congruente consigo mesmo e convincente, se se o examina do ponto de vista das pressuposições do conceito de ciência da Idade Moderna. A hermenêutica teve que começar por desvencilhar-se de todos os enquadramentos dogmáticos e liberar-se a si mesma para elevar-se ao significado universal de um organon histórico. Isto ocorreu no século XVIII, quando homens como Semler e Ernesti reconheceram que, para compreender adequadamente a Escritura, pressupõe-se reconhecer a diversidade de seus autores, e abandonar, por consequência, a unidade dogmática do cânon. Com essa “liberação da interpretação do dogma” (Dilthey), a reunião das Escrituras Sagradas da cristandade assume o papel de reunir fontes históricas que, na qualidade de obras escritas, têm de se submeter a uma interpretação não somente gramatical mas também histórica. A compreensão a partir do contexto do todo requer agora, necessariamente, também a restauração histórica do contexto de vida, a que pertencem os documentos. O velho princípio interpretativo de compreender o individual a partir do todo já não podia reportar-se nem limitar-se à unanimidade dogmática do cânon, mas dirigia-se à abrangência conjuntural da realidade histórica, a cuja totalidade pertence cada documento individual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Teremos de nos indagar, como pôde tornar-se compreensível aos historiadores o seu próprio trabalho, partindo de sua teoria hermenêutica. Seu tema não é um texto avulso, individual, mas a história universal. O que perfaz o historiador é o fato de que ele quer compreender a totalidade dos nexos da história da humanidade. Todo texto individual não possui, para ele, um valor próprio, mas serve-lhe meramente como fonte. Isto significa, porém, unicamente como um material mediador para o conhecimento do nexo histórico, não diverso de todas as ruínas mudas do passado. Esta é a razão por que a escola histórica não pode, na realidade, continuar edificando sobre a hermenêutica de Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

No entanto, deu-se que a concepção histórica do mundo, cuja grande meta era compreender a história universal, apoiou-se na teoria romântica da individualidade e na sua correspondente hermenêutica. Isso também pode ser expresso negativamente: o caráter de ser passado das relações históricas da vida, que a tradição representa para o presente, mesmo agora ainda não foram assumidas na reflexão metodológica. Antes, via-se essa tarefa somente no transporte do passado ao presente, através da investigação da tradição. O esquema fundamental, em conformidade com o qual a escola histórica pensa a 1202] metodologia da história universal, não é pois nada mais que o que é válido face a qualquer texto. É o esquema do todo e das partes. Há uma certa diferença entre a tentativa de compreender um texto como construção literária sob o ponto de vista de sua intenção e composição, e a tentativa de empregá-lo como documento para o conhecimento de um nexo histórico mais amplo, sobre o qual ele proporcione um esclarecimento que requer um exame crítico. Mesmo assim, esse interesse filológico e todo interesse histórico submetem-se reciprocamente um ao outro. A interpretação histórica pode servir como meio para compreender a conjuntura de um texto, embora, sob um interesse diverso, possamos ver nela não mais que uma fonte que se integra no todo da tradição histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Uma reflexão clara e metódica sobre isso não se encontra expressa obviamente em Ranke, nem no arguto metodólogo que foi Droysen, mas somente em Dilthey, que toma conscientemente a hermenêutica romântica e a amplia até fazer dela uma historiografia e até uma teoria do conhecimento das ciências do espírito. A análise lógica de Dilthey do conceito do nexo na história representa, segundo a questão em causa, a aplicação do princípio hermenêutico, segundo o qual as partes individuais de um texto só podem ser entendidas a partir do todo, e este somente a partir daquelas, sobre o mundo da história. Não somente as fontes chegam a nós como textos, mas também a realidade histórica é em si um texto que deve ser compreendido. Com essa transferência da hermenêutica para a historiografia, Dilthey torna-se o intérprete da escola histórica. Ele formula o que Ranke e Droysen, no fundo, pensavam. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dessa maneira, a hermenêutica romântica e seu pano de fundo, a metafísica panteísta da individualidade foram determinantes para a reflexão teórica da investigação da história no século XIX. Isso foi decisivo para o destino das ciências do espírito e para a concepção do mundo da escola histórica. Ainda veremos que a filosofia hegeliana da história universal, contra a qual protesta a escola histórica, compreendeu o significado da história para o ser do espírito e para o conhecimento da verdade com uma profundidade incomparavelmente maior que aqueles grandes historiadores que não quiseram reconhecer sua dependência com respeito a ele. O conceito da individualidade de Schleiermacher, que caminhava lado a lado com os interesses da teologia, da estética e da filologia, não somente era uma instância crítica contra a construção apriorística da filosofia da história, como oferecia às ciências históricas, ao mesmo tempo, uma orientação metodológica que as remetia, num grau não inferior às ciências da natureza, à investigação, isto é, à única base que sustenta uma experiência progressiva. Dessa maneira, a resistência contra a filosofia da história universal acabou empurrando-a para o elemento da filologia. Seu orgulho estava em que tal metodologia não pensava o nexo da história universal teleologicamente, a partir de um estado final, como era o [203] estilo do Aufklärung pré-romântico ou pós-romântico, estado que seria igualmente o fim da história, o dia final da história universal. Pelo contrário, para ela não há nenhum final, e nenhum fora, além da história. A compreensão do decurso total da história universal só pode ser obtido a partir da própria tradição histórica. E esta é justamente a pretensão da hermenêutica filológica, ou seja, que o sentido de um texto pode ser compreendido por si próprio. Por consequência, o fundamento da historiografia é a hermenêutica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Sendo assim, o ideal da história universal tem de conquistar à concepção histórica do mundo uma problemática muito particular, na medida em que se interrompe na obscuridade. Falta ao nexo universal da história o caráter de ser concluído, que possui um texto para o filólogo, e que faz com que, por exemplo, uma biografia, mas também a história de uma nação do passado, que já desapareceu do cenário da história universal, e até mesmo a história de uma época já encerrada e que ficou para trás pareça converter-se em um conjunto de sentido acabado, um texto compreensível por si. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

[204] Investiguemos de imediato a maneira como a “escola histórica” procura resolver o problema da história universal. Para isso teremos de ampliar nossas buscas, onde, dentro do nexo teórico que representa a escola histórica, perseguiremos somente o problema da história universal e, por consequência, restringir-nos-emos a Ranke e Droysen. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nem a posição de primazia da antiguidade clássica, nem a do presente ou a de um futuro a que ela nos conduz, nem decadência nem progresso, esses esquemas básicos tradicionais da história universal são compatíveis com um pensamento autenticamente histórico. Ao inverso disso, a famosa imediatez de todas as épocas com relação a Deus coordena-se [207] muito bem com a ideia de um nexo histórico universal. Pois, nexo — Herder dizia “ordem consecutiva” — é manifestação da própria realidade histórica. O que é historicamente real surge “segundo orações consecutivas escritas: o que segue esclarece o efeito e o modo daquilo que precedeu, luz comunitária”. Que o que permanece, na mudança dos sentidos humanos, é um nexo ininterrupto da vida, tal é o primeiro enunciado sobre a estrutura da história, o de ser devir no passar. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seja como for, somente a partir daqui torna-se compreensível o que vem a ser para Ranke “uma ação verdadeiramente histórico-universal, assim como o que sustenta, na realidade, o nexo da história universal”. Ela não possui nenhum telos que se possa descobrir e fixar fora dela. Enquanto tal, na história não domina nenhuma necessidade que possa ser percebida a priori. E, no entanto, a estrutura do nexo histórico é, apesar de tudo, teleológica. Seu padrão é o êxito. Já vimos que o que segue é o que primeiramente decide sobre o significado daquilo que o precedeu. Ranke pode ter tido isso em mente como uma simples condição do conhecimento histórico. Mas, na realidade, repousa sobre isso também o peso característico que convém ao próprio ser da história. O fato de que se alcance sucesso ou se fracasse não decide somente sobre o conteúdo desse fazer, permitindo-lhe engendrar um efeito duradouro ou passar sem efeito algum, mas este sucesso ou fracasso faz que nexos completos de fatos e de acontecimentos sejam plenos de sentido ou se tornem sem sentido. A estrutura ontológica da história, portanto, embora não tenha telos, é em si mesma teleológica. O conceito da ação verdadeiramente histórico-universal, que Ranke utiliza, define-se precisamente por isso. Ela é tal, quando faz história, isto é, quando tem um efeito que lhe confere um significado histórico duradouro. Os elementos do nexo histórico determinam-se pois, de fato, no sentido de uma teleología inconsciente que os congrega e que exclui deles o que não tem significado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Uma teleologia como esta não se pode naturalmente elucidar, partindo do conceito filosófico. Ela não converte a história universal num sistema apriorista, em que os atores são inseridos como num mecanismo que os controla inconscientemente. É, antes, perfeitamente compatível com a liberdade da ação. Ranke pode inclusive dizer que os membros construtivos do nexo histórico são “cenas da liberdade”. Esta expressão quer [208] dizer que há decisão cada vez que se atua livremente, mas o que caracteriza os momentos verdadeiramente históricos é que, com essa decisão, decide-se verdadeiramente algo, isto é, que uma decisão faz história, e que só em seu efeito se manifesta seu significado pleno e duradouro. Tais momentos conferem sua articulação ao nexo histórico. Nós chamamos a esses momentos, nos quais uma ação livre se torna historicamente decisiva, de momentos que fazem época, ou também crise, e aos indivíduos, cuja ação tornou-se tão decisiva, pode-se dar o nome, acompanhando Hegel, de “indivíduos da história universal”. Ranke os chama de “espíritos originais que se embrenham autonomamente na luta das ideias e das potências do mundo e congregam as mais potentes dentre elas, aquelas sobre as quais repousa o futuro”. Isto é espírito do espírito de Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Em Ranke aparece uma reflexão muito instrutiva sobre o problema de como surge o nexo histórico a partir dessas decisões da liberdade: “Reconheçamos que a história não pode ter nunca a unidade de um sistema filosófico; mas tampouco carece de nexo interno. Temos diante de nós uma série de acontecimentos que se seguem e se condicionam uns aos outros. Quando digo que se condicionam, isso não se refere, obviamente, que seja através de uma necessidade absoluta. A grandeza é, antes, o fato de que por toda parte faz-se mister a liberdade humana: a historiografia faz o rastreamento das cenas da liberdade; isso é o que a torna tão apaixonante. Mas com a liberdade se associa a força, uma força original; sem ela a liberdade se acaba tanto nos acontecimentos mundiais, como no terreno das ideias. A cada momento pode começar algo novo, que somente deve ser conduzido à fonte primeira e comum de todo fazer e deixar de fazer humano; nada está aí inteiramente por causa do outro; nada se esgota totalmente na realidade do outro. E, no entanto, em tudo isso governa uma profunda conjunção interna da qual ninguém é completamente independente e que o penetra por todo lado. Junto à liberdade está sempre a necessidade. Ela se encontra aí no que já se formou, que não pode ser desfeito, que será a base de toda nova atividade emergente. O que veio a ser constitui o nexo com o que devêm. Mas esse mesmo nexo não — é algo que deva ser tomado arbitrariamente, porque ele foi de uma maneira determinada, assim e não de outro modo. É também um objeto de conhecimento. Uma ampla série de acontecimentos — um após o outro e um ao lado do outro — unidos entre si dessa maneira, forma um [209] século, uma época…”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não representa uma contradição à liberdade o fato de que ela esteja limitada e restrita. Justo isso torna-se patente na essência da força que consegue se impor. É por isso que Ranke pode dizer que “junto à liberdade se encontra sempre a necessidade”. Pois que necessidade não significa aqui uma ação de causar que exclua a liberdade, mas a resistência que a força livre encontra. Eis aqui a verdade da dialética da força posta a descoberto por Hegel. A resistência que a força livre encontra procede ela mesma da liberdade. A necessidade de que se trata aqui é o poder daquilo que nos sobrevêm e o poder dos outros que atuam contra nós é o dado prévio para todo começo de atividade livre. Enquanto exclui muitas coisas como impossíveis, ela restringe a ação ao possível, ao que está aberto. A necessidade procede da liberdade e encontra-se até mesmo determinada pela liberdade, que conta com ela. Do ponto de vista lógico, trata-se de uma necessidade hipotética (a ex hypotheseos anankaion); do ponto de vista do conteúdo, trata-se de um modo de ser não da natureza, mas do ser histórico: o que se tornou realidade não pode ser desfeito. Nesse sentido trata-se do “fundamento de toda nova atividade emergente”, como diz Ranke, e, no entanto, ele próprio veio a ser através da atividade. Enquanto o que veio a ser se mantém como fundamento, passa a conformar a nova atividade na unidade de um nexo. Ranke diz: “O que veio a ser constitui o nexo com o que devem”. Esta frase, bastante obscura, pretende expressar evidentemente o que constitui a realidade histórica: que o que devem é, na verdade, livre, mas a liberdade pela qual chegará a ser encontra, em cada caso, sua limitação no que veio a ser, isto é, nas circunstâncias em que irá atuar. Os conceitos de força, poder, tendência determinante etc, que os historiadores empregam, procuram todos tornar visível a essência do ser histórico, o que implica, ao mesmo tempo, no fato de que, na história, a ideia encontra somente uma re-presentação imperfeita. Não [211] são os planos nem as concepções dos que atuam que representam o sentido do acontecer, mas os efeitos históricos que as forças históricas tornam reconhecíveis. As forças históricas que constituem os verdadeiros portadores do desenvolvimento histórico não são a subjetividade monádica do indivíduo. Antes, toda individuação já vem, ela mesma, impregnada também pela realidade que lhe é oposta, e, bem por isso, a individualidade não é subjetividade, mas força viva. Também os estados são, para Ranke, forças vivas desse gênero. Deles, ele diz expressamente, que não são “compartimentos do geral”, mas individualidades, “seres espirituais reais”. Ranke os denomina de “pensamentos de Deus”, para indicar, com isso, que o que permite a essas construções existir realmente, é a sua própria força vital, e não alguma imposição ou vontade humana, ou um plano evidente para os homens. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Esses conceitos, diferentemente das categorias do conhecimento da natureza, são conceitos vitais. Pois a última pressuposição para o conhecimento do mundo histórico, no qual a identidade de consciência e objeto — esse postulado especulativo do idealismo — ainda representa uma realidade demonstravel [227] é, em Dilthey, a vivência. Aqui existe certeza imediata. Pois o que é vivência não é divisado num ato, por exemplo, o dar-se conta de algo, e num conteúdo, aquilo de que alguém se dá conta. Pelo contrário, trata-se de um ter presente já não dissociável. Mesmo a versão de que na vivência algo que é possuído, ainda distingue demais. Dilthey persegue agora como se configura um nexo, a partir desse elemento do mundo espiritual, que é imediatamente certo, e como é possível um conhecimento de tal nexo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Já nas suas ideias “para uma psicologia descritiva e analítica” Dilthey havia distinguido a tarefa de deduzir “o adquirido nexo da vida da alma”, das formas de explicação próprias do conhecimento da natureza. Havia empregado o conceito de estrutura para, com ele, destacar o caráter vivencial dos nexos da alma com relação aos nexos causais dos acontecimentos da natureza. O que caracterizava logicamente essa “estrutura” era que aqui intentava-se a um todo de relações, que não repousava sobre a sucessão temporal do ser efetivado, mas sobre relações internas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Sobre essa base, Dilthey entendia haver ganho um ponto de partida próprio e operante, e haver superado, com isso, os desequilíbrios que perturbavam as reflexões metodológicas de Ranke e Droysen. Dava razão à escola histórica em que não existe um sujeito geral, mas somente indivíduos históricos. A idealidade do significado não pode ser atribuída a um sujeito transcendental, mas surge da realidade histórica da vida. É a vida mesma que se desenvolve e configura rumo a unidades compreensíveis, e é o indivíduo em particular o que compreende essas unidades como tais. Este é o ponto de partida auto-evidente para a análise de Dilthey. O nexo da vida tal como se oferece ao indivíduo (e como é revivido e compreendido no conhecimento biográfico de outros indivíduos) se fundamenta na significância de determinadas vivências. A partir delas, como a partir de um centro organizador, constitui-se a unidade de um decurso de uma vida, da mesma forma como se dá a formulação de sentido de uma melodia — não a partir da mera sucessão de tons passageiros, mas a partir dos motivos musicais que determinam a unidade de sua forma. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Aqui também se percebe, como em Droysen, que o modo de proceder da hermenêutica romântica está subentendida, e que ele experimenta agora uma expansão universal. O nexo estrutural da vida, tal qual o nexo de um texto, está determinado [228] por uma certa relação entre o todo e as partes. Cada parte expressa algo do todo da vida, e tem, portanto, uma significação para o todo, do mesmo modo que seu próprio significado está determinado a partir deste todo. É o velho princípio hermenêutico da interpretação dos textos que vale também para o nexo da vida, porque nele se pressupõe de um modo análogo a unidade de um significado que se expressa em todas as suas partes. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O passo decisivo que Dilthey terá de dar na sua fundamentação epistemológica das ciências do espírito será o de empreender, a partir da construção do nexo na experiência vital do indivíduo, a transição ao nexo histórico que já não é vivido riem experimentado por indivíduo algum. Mesmo com toda a crítica à especulação, é necessário, nesse ponto, pôr sujeitos reais no lugar de “sujeitos lógicos”. Dilthey vê claramente essa aporia. Mas responde a si mesmo que isso não pode ser improcedente em si, na medida em que a pertença mútua do indivíduo a um todo — por exemplo, na unidade de uma geração ou de uma nação — representa uma realidade psíquica, que teria de ser reconhecida como tal, precisamente porque não se pode transcendê-la em suas explicações. É verdade que aqui não se trataria de sujeitos reais. A fluidez de suas fronteiras seria demonstração disso; nem tampouco os indivíduos concretos participariam nisso, cada um com uma parte de seu ser. Não obstante, para Dilthey não é problema o fato de se poder fazer afirmações sobre tais sujeitos. O historiador o faz continuamente quando fala dos fatos e destinos dos povos. O único problema é como se justificam epistemologicamente essas afirmações. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não se pode afirmar que, sobre esse ponto, no qual Dilthey vê o problema decisivo, as suas ideias não tivessem alcançado completa clareza. O que apresenta o ponto decisivo, aqui, é o problema do passo a ser dado da fundamentação psicológica para a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. Nisso Dilthey não passou nunca de simples esboços. Na mencionada passagem do Aufbau, a autobiografia e a biografia — dois casos especiais de experiência e conhecimento históricos — conservam uma preponderância não inteiramente fundamentada. Pois já vimos que o problema da história não é saber como pode ser vivido e conhecido o nexo geral, mas como devem ser conhecíveis também aqueles nexos que nenhum indivíduo pôde viver como tal. Seja como for, não há muitas dúvidas sobre o modo como Dilthey imaginava o esclarecimento desse problema, partindo do fenômeno da compreensão. Compreender é compreender uma expressão. Na expressão o que é expressado está presente de uma maneira distinta do que [229] a causa no efeito. Ele está presente na expressão e é compreendido quando se compreende esta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dilthey procura desde o início diferenciar as relações do mundo espiritual das relações causais no nexo da natureza, e essa é a razão pela qual o conceito da expressão e da compreensão da expressão ocupam nele, desde o início, uma posição central. Caracteriza a nova clareza metódica, que ganhou apoiando-se em Husserl, o fato de que ele acaba integrando com as Investigações lógicas de Husserl, o conceito do significado que se eleva do nexo de atuação. Nesse sentido, o conceito de Dilthey do caráter estrutural da vida da alma corresponde à teoria da intencionalidade da consciência, mesmo que essa descreva fenomenologicamente não só um fato psicológico, mas uma determinação essencial da consciência. Toda consciência é consciência de algo; todo comportamento é comportamento para com algo. O para que (Wozu) dessa intencionalidade, o objeto intencional, não é para Husserl um componente psíquico real, mas uma unidade ideal, um intencionado (Gemeintes) como tal. Nesse sentido, Husserl tinha defendido na primeira investigação lógica o conceito de um significado ideal-unitário face aos preconceitos do psicologismo lógico. Essa indicação teve, para Dilthey, uma importância decisiva, pois só a partir da análise de Husserl é que ele definiu verdadeiramente o que distingue a “estrutura”, do nexo causal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Um exemplo tornará a coisa mais clara: uma estrutura psíquica, como por exemplo, um indivíduo forma sua individualidade na medida em que desenvolve sua disposição natural, mas ao mesmo tempo sofre o efeito condicionador das circunstâncias. O que daí resultará, a verdadeira “individualidade”, isto é, o caráter do indivíduo, não é uma mera consequência dos fatores causais, nem pode ser entendida meramente a partir dessa causalidade, mas representa uma unidade compreensível em si mesma, uma unidade vital que se expressa em cada uma de suas exteriorizações e pode, por isso, ser compreendida a partir de cada uma. Independentemente da ordem dos efeitos se integra aqui em uma configuração própria. Isso é o que queria dizer Dilthey com o nexo estrutural e que agora, apoiando-se em Husserl, chamará significado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Agora Dilthey pode dizer também até que ponto esse nexo estrutural está dado — seu principal ponto de atrito com Ebbinghaus — : não está dado na imediatez de uma vivência, mas tampouco se constrói simplesmente como resultante de fatores operativos sobre a base do “mecanismo” da vida da alma. A teoria da intencionalidade da consciência permite agora uma nova fundamentação do conceito do dado. A partir daqui já não se pode colocar como tarefa o derivar nexos a partir de átomos de vivências e explicá-los desse modo. Ao contrário, a consciência já se encontra sempre em tais nexos e tem seu próprio ser ao intensioná-los. Dilthey entendia que as investigações [230] lógicas de Husserl fizeram época, porque legitimaram conceitos como estrutura e significado, embora não fossem deduzíveis a partir de elementos. Esses conceitos foram caracterizados como sendo mais originários do que esses supostos elementos, a partir dos quais e sobre os quais deve construir-se. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A ela corresponde também a transformação do conceito do espírito objetivo, que coloca a consciência histórica no lugar da metafísica. Mas aqui se apresenta a questão de se saber se a consciência histórica está realmente em condições de ocupar este posto, que em Hegel estava ocupado pelo saber absoluto do espírito que se concebe a si mesmo no conceito especulativo. O próprio Dilthey aponta o fato de que somente conhecemos historicamente porque nós mesmos somos históricos. Isso deveria representar uma facilitação epistemológica. Mas [235] poderá sê-lo? É realmente correta a fórmula de Vico, tantas vezes citada? Não é isso uma transposição da experiência do espírito artístico do homem e para o mundo histórico, onde já não se pode falar de “fazer”, isto é, de planos e execuções face ao decurso das coisas? Aonde entra aqui a facilitação epistemológica? Não se torna, com isso, mais difícil? O condicionamento histórico da consciência não deveria representar, antes, uma barreira intransponível para sua própria consumação como saber histórico? Hegel podia crer que havia superado essa barreira com sua subsunção da história no saber absoluto. Mas se a vida é realmente criadora e inesgotável, tal como pensa Dilthey, a constante transformação do nexo de significado da história não terá, em última instância, um ideal utópico, que contém em si mesmo uma contradição? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dilthey refletiu incansavelmente sobre esse problema. Sua reflexão tinha sempre como meta legitimar o conhecimento do que é condicionado historicamente como desempenho da ciência objetiva, apesar do próprio condicionamento. A isso devia ser a teoria da estrutura, que constrói sua unidade a partir de seu próprio centro. O fato de que se compreenda um nexo estrutural a partir do próprio centro é algo que corresponde ao velho princípio da hermenêutica e da exigência do pensamento histórico, segundo o qual tem-se de compreender cada época a partir de si própria e de não medi-la com o padrão de um presente estranho a ela. Segundo esse esquema — de acordo com Dilthey — poderia pensar-se o conhecimento de nexos históricos cada vez mais amplos e estendê-lo até um conhecimento histórico universal, do mesmo modo que uma palavra só pode ser compreendida plenamente a partir da frase inteira e esta somente a partir do contexto do texto inteiro e até, da totalidade da literatura transmitida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A marca distintiva da consciência histórica não pode consistir em ser realmente “saber absoluto”, no sentido hegeliano, isto é, em que reúna numa autoconsciência presente a totalidade daquilo que o espírito veio a ser. Pois a concepção histórica do mundo discute precisamente a pretensão da consciência filosófica de conter em si a verdade inteira da história do espírito. Essa é, antes, a razão pela qual fazia falta a experiência histórica: que a consciência humana não é um intelecto-infinito para o qual tudo seja simultâneo e presente por igual. A identidade absoluta de consciência e objeto é, por princípio, inacessível à consciência histórica e finita. Ela permanece enredada no nexo de efeitos da história. E então em que se apoia sua [239] distinção de elevar-se, apesar disso sobre si mesma e tornar-se assim capaz de um conhecimento histórico objetivo? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dilthey parte da vida: a própria vida está apontada à reflexão. É a Georg Misch a quem devemos uma enérgica elaboração da tendência da filosofia da vida no filosofar de Dilthey. Seu fundamento repousa no fato de que a vida mesma contém saber. Já a interiorização (Innesein), que caracteriza a vivência, contém uma espécie de retorno da vida sobre si mesma. “O saber está aí, unido à vivência sem dar-se conta” (VII, 18). Essa mesma reflexividade imanente da vida determina também o modo como, segundo Dilthey, o significado surge no nexo vital. Somente se experimenta o significado, quando se sai à “caça das metas”. O que torna possível essa reflexão é um distanciamento, uma lonjura do nexo do nosso próprio fazer. Dilthey destaca, e, sem dúvida, com razão, que antes de toda objetivação científica o que se forma é uma visão natural da vida sobre si mesma. Esta se objetiva na sabedoria dos provérbios e sagas, mas sobretudo nas grandes obras da arte, nas quais “algo espiritual se desprende de seu criador”. Por isso a arte é um órgão especial da compreensão da vida, porque em seus “confins entre o saber e a ação” a vida se abre com uma profundidade que não é acessível nem à observação, nem à reflexão, [240] nem à teoria. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O nexo de vida e saber é, pois, para Dilthey, um dado originário. É isso o que torna invulnerável a posição de Dilthey ante toda objetivação que se possa fazer ao “relativismo” histórico, a partir da filosofia e, especialmente, com os argumentos da filosofia idealista da reflexão. Sua fundamentação da filosofia no fato originário da vida não busca um nexo de proposições, livre de contradições, que quisessem substituir os sistemas de ideias da filosofia precedente. Para a auto-reflexão [241] filosófica vale, antes, o mesmo que Dilthey indicou para o papel da reflexão na vida. A auto-reflexão pensa a própria vida até o fim, compreendendo a própria filosofia, mas não no sentido nem com a pretensão do idealismo: não procura fundamentar a única filosofia possível a partir da unidade de um princípio especulativo, mas continua simplesmente o caminho da auto-reflexão histórica. E dessa maneira subtrai-se à objeção de estar comprometida com o relativismo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O papel que aqui desempenha o conceito da vida tem uma clara correspondência com as investigações de Dilthey sobre o nexo vivencial. Da mesma forma que Dilthey não partia ali da vivência, a não ser para ganhar o conceito do nexo psíquico, Husserl mostra a unidade da corrente vivencial como prévia e essencialmente necessária face à individualidade das vivências. A investigação temática da vida da consciência está obrigada a superar, assim como em Dilthey, o ponto de partida da vivência individual. Nessa perspectiva, existe entre os dois pensadores uma genuína comunidade. Ambos retrocedem à concreção da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nesse ponto ganham uma importância surpreendentemente atual os escritos póstumos publicados recentemente, mas lamentavelmente muito fragmentários, do Conde Yorck. Ainda que Heidegger se tenha referido explicitamente às geniais indicações desse interessante personagem e tenha reconhecido nas suas ideias uma certa primazia em relação aos trabalhos de Dilthey, apesar de tudo está sempre contra ele o fato de que Dilthey realizou uma gigantesca obra, enquanto que as declarações epistolares do conde não chegam jamais a desenvolver um nexo realmente sistemático. Entretanto, esse escrito póstumo, procedente de seus últimos anos de vida, e agora editado, muda inteiramente essa situação. Embora não passe de um fragmento, sua intenção sistemática encontra-se desenvolvida com suficiente consequência, de tal modo que não podemos mais nos enganar sobre o topos teórico dessa tentativa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Se continuarmos a perseguir essa ideia de Yorck, tornar-se-á ainda mais nítida a persistência dos motivos idealistas. O que o conde Yorck expõe aqui é a correspondência estrutural de vida e autoconsciência, que Hegel já desenvolvera na sua Fenomenologia. Já nos últimos anos de Hegel em Frankfurt, nos restos de manuscritos conservados, pode ser mostrada a importância central que possui o conceito da vida para a sua filosofia. Na sua Fenomenologia é o fenômeno da vida o que encaminha a decisiva transição de consciência à autoconsciência — e esse não é certamente um nexo artificial. Pois vida e autoconsciência têm realmente uma certa analogia. A vida se [257] determina pelo fato de que o ser vivo se diferencia a si mesmo do mundo em que vive e ao qual permanece unido, e se mantém nessa sua auto-diferenciação. A auto-conservação do ser vivo se nutre do que lhe é estranho. O fato fundamental de estar vivo é a assimilação. Por consequência, a diferenciação é ao mesmo tempo uma não-diferenciação. O estranho é apropriado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Schleiermacher distingue nesse círculo hermenêutico do todo e da parte um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. Tal como cada palavra forma parte do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da obra de um autor, e esta forma parte, por sua vez, do conjunto do correspondente gênero literário e mesmo de toda a literatura. Mas, por outro lado, o mesmo texto pertence, como manifestação de um momento criador, ao todo da vida da alma de seu autor. A compreensão acaba acontecendo, a cada caso, a partir desse todo, de natureza tanto objetiva como subjetiva. No que se relaciona com essa teoria, Dilthey falará de “estruturas” e da “concentração em um ponto central”, a partir do qual se produz a compreensão do todo. Com isso ele transporta ao mundo histórico, como já dizíamos, o que desde sempre tem sido um fundamento de toda interpretação textual: que cada texto deve ser compreendido a partir [297] de si mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Essa experiência levou a investigação histórica à conclusão de que um conhecimento objetivo só pode ser alcançado a partir de uma certa distância histórica. É verdade que o que está numa coisa, o conteúdo que lhe é próprio, somente se divisa a partir da distância com relação à atualidade, surgida de circunstâncias efêmeras. A possibilidade de adquirir uma certa visão panorâmica, o caráter relativamente fechado sobre si, de um processo histórico, o seu distanciamento com relação às opiniões objetivas que dominam o presente, tudo isso são, até certo ponto, condições positivas da compreensão histórica. A pressuposição tácita do método histórico é, pois, que o significado objetivo e permanente de algo somente se torna reconhecível quando pertence a um nexo mais ou menos concluído. Noutras palavras: quando está suficientemente morto para que já tenha somente interesse histórico. Somente então parece possível desconectar a participação subjetiva do observador. Na verdade, isto é um paradoxo — é o correlato, na teoria da ciência, do velho problema moral de se saber se alguém pode ser chamado feliz antes de sua morte. Assim como Aristóteles mostrou até que ponto um problema desse tipo consegue aguçar as possibilidades humanas de juízo, a reflexão hermenêutica tem que estabelecer aqui um aguçamento da autoconsciência metódica da ciência. É bem verdade que determinados requisitos hermenêuticos se satisfazem, por si sós, sem dificuldade aí onde um nexo histórico só tem ainda interesse histórico. Pois, em tal caso, há certas fontes de erro que se desconectam por si mesmas. Mas pergunta-se se com isso se esgota realmente o problema hermenêutico. A distância é a única que permite uma expressão completa do verdadeiro sentido que há numa coisa. Entretanto, o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito. Não acontece apenas que se vão eliminando sempre novas fontes de erro, de tal modo que se vão filtrando todas as distorções do verdadeiro sentido, mas que, constantemente, surgem novas fontes de compreensão que tornam patentes relações de sentido insuspeitadas. A distância de tempo, que possibilita essa filtragem, não tem uma dimensão concluída, já que ela mesma está em constante movimento e expansão. A par do lado negativo da filtragem operada [304] pela distância de tempo, aparece, simultaneamente, o aspecto positivo que ela tem para a compreensão. Não somente prestam sua ajuda para que os preconceitos de natureza particular feneçam, mas permite também que aqueles que levam a uma compreensão correta, venham à tona como tais. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E se isso é assim, então a distância entre a hermenêutica espiritual-científica e a hermenêutica jurídica não é tão grande como se costuma supor. Em geral se tende a supor que foi somente a consciência histórica que elevou a compreensão a ser um método da ciência objetiva, e que a hermenêutica alcançou sua verdadeira determinação somente quando se desenvolveu como teoria geral da compreensão e da interpretação dos textos. A hermenêutica jurídica não teria a ver com esse nexo, pois não procura compreender textos dados, já que é uma medida auxiliar da práxis jurídica e inclina-se a sanar certas deficiências e casos excepcionais no sistema da dogmática jurídica. Por consequência não teria a menor relação com a tarefa de compreender a tradição, que é o que caracteriza a hermenêutica espiritual-científica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Naturalmente, teríamos de nos perguntar se o caso que acabamos de analisar como modelo caracteriza realmente a problemática geral da compreensão histórica. O modelo de que partíamos era a compreensão de uma lei ainda em vigor. O historiador e o dogmático estavam voltados, pois, a um mesmo objetivo. Mas não será que este é um caso especial? O historiador do direito, que tem de enfrentar culturas jurídicas passadas, da mesma maneira que qualquer outro historiador que procura conhecer o passado e cuja continuidade com o presente não é imediata, seguramente não ficará meio perdido no caso apresentado da sobrevivência da valia de uma lei. Dirá que a hermenêutica jurídica possui uma tarefa dogmática especial que é completamente alheia ao nexo da hermenêutica histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Nesse sentido, existe uma certa tensão natural entre o historiador e o filólogo que quer compreender um texto por sua beleza e verdade. O historiador interpreta direcionado a algo que não vem expresso no próprio texto e que absolutamente não precisa se encontrar na presumida orientação de sentido do texto. A consciência histórica e a consciência filológica entram aqui, no fundo, em conflito. Claro que essa tensão está quase anulada, desde que a consciência histórica modificou também a postura do filólogo. A partir daí, também este acabou por renunciar à ideia de que seus textos tenham para ele alguma validez normativa. Já não os considera como modelos do dizer e na exemplaridade do que dizem, mas ele também os contempla na perspectiva de algo a que eles mesmos não têm em mente, ou seja, ele os considera como historiador. E a filologia se converteu assim em uma disciplina auxiliar da historiografia. Isso se mostra na filologia clássica, no momento em que ela mesma começa a se chamar de ciência da antiguidade, em Wilamowitz, por exemplo. É uma seção da investigação histórica que tem por objeto sobretudo a língua e a literatura. O filólogo é historiador, na medida em que ganha para suas fontes literárias, uma dimensão histórica própria. Para ele, compreender quer dizer integrar um determinado texto no contexto da história da língua, da forma literária, do estilo etc, e em tal intermediação, finalmente, em todo o nexo vital histórico [343] . Somente de vez em quando se interpõe também algo de sua antiga natureza. Por exemplo, quando julga os historiadores antigos inclinar-se-á a conceder a esses autores mais crédito do que um historiador considera correto. Nessa espécie de credulidade ideológica, com a qual o filólogo superestima, em tais casos, o valor testemunhal de seus textos, aparece um resto derradeiro da velha pretensão do filólogo de ser amigo dos “belos discursos” e mediador da literatura clássica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Salta à vista a escassa clareza que tem, aqui, a relação entre experimentar, reter e a unidade da experiência que produziriam ambas as coisas. Evidentemente Aristóteles se apoia aqui num raciocínio que em seu tempo já possuía uma certa [357] cunhagem clássica. O testemunho mais antigo que nos chegou dele é de Anaxágoras, de quem Plutarco nos transmitiu, que o que caracteriza o homem face aos animais se determinaria por empeiria, mneme, sophia e techne. Um nexo parecido surge quando Esquilo destaca, no Prometeu, o papel da mneme, e ainda que sintamos falta de uma ênfase correspondente no mito platônico de Protágoras, Platão mostra, tal como Aristóteles, que isso já é, naquele momento, uma teoria firmada. A permanência de percepções importantes (mone) é claramente o motivo vinculante, através do qual o saber do geral pode elevar-se acima da experiência do individual. Nisso, encontram-se próximos do homem todos os animais que possuem mneme nesse sentido, ou seja, que têm sentido para o passado e o tempo. Precisaria de uma investigação própria para descobrir até que ponto já poderia ser operante o nexo entre retenção (mneme) e linguagem, nessa teoria primitiva da experiência, cujas pegadas estamos rastreando. Pois é claro que a aprendizagem de nomes e da fala acompanha essa aquisição de conceitos gerais, e Temístio ilustra a análise aristotélica da indução diretamente com o exemplo do aprender a falar e da formação das palavras. Seja como for, o que importa é reter que a generalidade da experiência, de que fala Aristóteles, não é a generalidade do conceito nem da ciência. (O círculo de problemas a que nos remete essa teoria poderia ser a da ideia sofistica da formação, pois em todos os nossos testemunhos se detecta uma conexão entre a caracterização do homem, de que se trata, e a organização geral da natureza. E é precisamente esse motivo da confrontação do homem e do animal o que constitui o ponto de partida natural do ideal da formação sofística.) A experiência somente se dá de maneira atual nas observações individuais. Não se pode conhecê-la numa generalidade precedente. Nisso justamente se estriba a abertura básica da experiência para qualquer nova experiência — isso não somente no sentido geral da correção dos erros, mas ao fato de que a experiência está essencialmente dependente de constante confirmação, e, quando esta falta, ela se converte necessariamente em outra diferente (ubi reperitur instantia contradictoria). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Conhecemos isto sobretudo da dialética medieval, que não somente levantava os prós e os contras, e a seguir, dava a própria decisão mas que acabava colocando o conjunto dos argumentos no seu lugar. Esta forma da dialética medieval não é uma simples consequência do sistema docente da disputatio, mas, ao inverso, repousa sobre a conexão interna de ciência e dialética, isto é, de resposta e pergunta. Há uma famosa passagem da Metafísica aristotélica, que suscitou muitas discussões e que se explica a partir desse nexo. Aristóteles diz, lá, que a dialética é a capacidade de investigar o contrário, inclusive independentemente do quê, e (de investigar) se para coisas contrárias pode existir uma e a mesma ciência. Nesse ponto parece que uma característica geral da dialética (que corresponde perfeitamente ao que encontramos no Parmênides de Platão), [371] está ligada com um problema “lógico” muito especial, que conhecemos através da Tópica. Parece ser realmente uma pergunta muito especial, saber se é possível uma mesma ciência para coisas opostas. Procurou-se, por isso, descartar esta questão como glosa. Na verdade, o nexo entre as duas perguntas torna-se claro, logo que constatarmos a primazia da pergunta sobre a resposta, que subjaz ao conceito do saber. Saber quer dizer sempre: entrar ao mesmo tempo no contrário. Nisso consiste sua superioridade frente ao deixar-se levar pela opinião, que sabe pensar possibilidades como possibilidades. O saber é fundamentalmente dialético. Somente pode possuir algum saber aquele que tem perguntas, mas as perguntas compreendem sempre a oposição do sim e do não, do assim e do diverso. Somente porque o saber é dialético nesse sentido abrangente, pode haver uma “dialética” que tome explicitamente como objeto a oposição do sim e do não. A pergunta aparentemente demasiado especial, pela possibilidade de uma mesma ciência para os opostos contém, portanto, objetivamente a base da possibilidade da dialética em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Na realidade não podemos ocultar que num caso como [377] este a lógica de pergunta e resposta tem de reconstruir duas perguntas distintas que encontrarão também duas respostas distintas: a pergunta pelo sentido no curso de um grande acontecimento, e a pergunta pelo caráter planificado deste curso. Ambas perguntas somente serão uma no caso em que uma planificação humana estivesse realmente à altura do curso dos acontecimentos. Entretanto, este é um pressuposto que não podemos afirmar como princípio metodológico em nossa qualidade de homens que estão na história, e nem face a uma tradição histórica na qual estão em questão homens como nós. A famosa descrição de Tólstoi do conselho de guerra antes da batalha, no qual todas as possibilidades estratégicas são ocultadas com agudeza e profundidade, e todos os planos sopesados, enquanto o próprio comandante, que está sentado ao lado, cochila, mas na noite às vésperas do começo da batalha o comandante faz a ronda pelos postos externos. Neste, o assunto que chamamos de história ganha um melhor acerto. Kutusow está mais perto da autêntica realidade e das forças que a determinam que os estrategistas do conselho. Deste exemplo deve-se extrair a conclusão principiai de que o intérprete da história corre sempre o perigo de hipostasiar o nexo no qual ele reconhece um sentido, como intencionado por homens que realmente atuaram e planejaram. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Poderemos ver agora a razão disso. O conceito do problema formula evidentemente uma abstração, ou seja, a eliminação do conteúdo de uma pergunta, da pergunta que o abre pela [382] primeira vez. Refere-se ao esquema abstrato a que se deixam reduzir, e sob o qual se deixam subordinar as perguntas reais e realmente motivadas. Um “problema” nesse sentido já caiu fora do nexo motivado das perguntas, donde ele recebe a univocidade de seu sentido. Mas isso é tão insolúvel como toda pergunta que não tem um sentido unívoco, porque não está nem realmente motivada nem realmente colocada. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A dificuldade particular para tornar fecundo o pensamento escolástico para o nosso questionamento, consiste em que a compreensão cristã da palavra, tal como a encontramos na patrística, em parte como apoio, em parte como transformação de ideias da Antiguidade tardia, volta a se aproximar do conceito do logos da filosofia grega clássica, a partir da recepção da filosofia aristotélica pela alta escolástica. São Tomás, por exemplo, elabora sistematicamente a doutrina cristã, desenvolvida a partir do prólogo do Evangelho de João, mediada com o pensamento de Aristóteles. É significativo que nele mal se fale da multiplicidade das línguas, de que, todavia, Agostinho acaba sempre tratando, ainda que termine por descartá-la em favor da “palavra interior”. Para ele, a doutrina da “palavra interior” é o pressuposto evidente, sob o qual investiga o nexo de forma e verbum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Entretanto, a nós interessa menos essa coincidência, do que as diferenças entre a palavra divina e humana. Teologicamente, isso é também completamente correto. O mistério da trindade, embora iluminado pela analogia com a palavra interior, permanece, em última análise, incompreensível para o pensamento humano. Se na palavra divina se expressa o todo do espírito divino, o momento processual dessa palavra significa, então, algo a respeito do que, no fundo, toda analogia nos deixa na estaca zero. Na medida em que, conhecendo a si mesmo, o espírito divino conhece ao mesmo tempo todo ente, a palavra de Deus é a palavra do espírito que em uma só contemplação (intuitus) contempla e cria tudo. O surgimento desaparece na atualidade da onisciência divina. Tampouco a criação seria um processo real, mas interpretaria tão-somente a ordenação da estrutura do universo no esquema temporal. Se quisermos compreender de uma maneira mais exata o momento processual da palavra, que para nosso questionamento do nexo de linguisticidade e compreensão é o mais importante, não poderemos permanecer na coincidência com o problema teológico, mas teremos que nos deter na imperfeição do espírito humano e na sua diferença para com o divino. Também aqui podemos acompanhar Tomás quando destaca três diferenças. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Ao inverso disso, na palavra humana mostra-se a relação dialética da multiplicidade das palavras com a unidade da palavra, sob um nova luz. Já Platão havia reconhecido que a palavra humana possui um caráter de discurso, isto é, expressa a unidade de um pensamento (Meinung) através da integração de uma multiplicidade de palavras, e tinha desenvolvido, em forma dialética, essa estrutura do logos. Mais tarde, Aristóteles demonstrou as estruturas lógicas que constituem a frase, e correpondentemente o juízo, ou o nexo de frases, ou correspondentemente a conclusão. Mas tampouco isso esgota a questão. A unidade da palavra, que se auto-expõe na multiplicidade das palavras, permite compreender também aquilo que não se esgota na estrutura essencial da lógica e que instaura o caráter de acontecer da linguagem: o processo da formação dos conceitos. Quando o pensamento escolástico desenvolve a doutrina do verbo, não se limita a pensar a formação do conceito como cópia de ordenação da essência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Se se pensa como Platão que o cosmos das ideias é a verdadeira estrutura do ser, será difícil subtrair-nos a essa consequência. E, efetivamente, Speusipo, o sucessor de Platão na direção da academia, relata que Platão a extraiu de fato. Sabemos dele que cultivou muito particularmente a busca do comum (ouoia), e que isso ultrapassa em muito o que se entende por generalização no sentido da lógica da espécie, pois seu método de investigação era a analogia, isto é, a correspondência proporcional. A capacidade dialética de descobrir características comuns e perceber o múltiplo sob o aspecto do uno está aqui, todavia, muito próxima à livre universalidade da linguagem e aos princípios de sua formação de palavras. O comum da analogia, tal como o buscava por todas as partes Speusipo — correspondências do tipo: “O que para os pássaros são as asas, são para os peixes as nadadeiras” — serve para definir conceitos, porque essas correspondências representam ao mesmo tempo um dos mais importantes princípios formadores na formação linguística das palavras. A transposição de um âmbito ao outro não somente possui uma função lógica, mas corresponde ao metaforismo fundamental da própria linguagem. A conhecida figura estilística da metáfora não é mais do que a aplicação retórica desse princípio geral de formação, que é ao mesmo tempo linguístico e lógico. Assim, Aristóteles poderá dizer: “transpor bem é reconhecer o comum” . Sobremodo a Tópica aristotélica mostra uma ampla gama de confirmações para o caráter indissociável do nexo de conceito e linguagem. A definição, na qual se estabelece o gênero comum, deriva-se aqui, expressamente, da consideração do comum. Desse modo, no começo da lógica do gênero está o desempenho precedente da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Naturalmente, essas ideias somente se tornam possíveis quando se altera, de algum modo, a relação natural, isto é, a íntima unidade de falar e pensar. Podemos, nesse ponto, mencionar a correspondência entre o pensamento estóico e a elaboração gramático-sintática da língua latina, como o mostrou Lohmann. E indiscutível que o incipiente bilinguismo da oikumene helenística desempenhou um papel estimulante para o pensamento sobre a linguagem. Mas é possível que as origens desse desenvolvimento se remontem muito mais atrás, e que o que desencadeia esse processo seja na realidade a gênese da ciência. Em tal caso, os começos do mesmo devem alcançar os tempos mais remotos da ciência grega. Fala a favor dessa hipótese a formação dos conceitos científicos nos âmbitos da música, da matemática e da física, pois neles se mede um campo de objetividades racionais, cuja geração construtiva evoca designações correspondentes na vida, a que já não se pode chamar de palavras no sentido autêntico. Fundamentalmente pode-se dizer que cada vez que a palavra assume a mera função de signo, o nexo originário de falar e pensar, a que se orienta nosso interesse, se transforma numa relação instrumental. Essa relação transformada de palavra e signo subjaz à formação dos conceitos da ciência em seu conjunto, e para nós se tornou tão lógica e natural que temos que realizar uma intensa rememoração artificial para termos a ideia de que junto ao ideal científico das designações unívocas a vida da própria linguagem segue seu curso sem se alterar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Não obstante, se se quer fazer realmente justiça a W. Humboldt, o criador da moderna filosofia da linguagem, convirá proteger-nos da excessiva ressonância produzida pela investigação linguística comparada e pela psicologia dos povos, às quais ele próprio abriu o caminho. Em Humboldt, no entanto, o problema da “verdade da palavra” ainda não está completamente deslocado. Quando Humboldt investiga a multiplicidade da estrutura da linguagem humana não o faz somente para penetrar na peculiaridade individual dos povos, por vias desse campo acessível da expressão humana. O seu interesse pela individualidade, assim como o de seus contemporâneos, não deve ser compreendido, em absoluto, como um desvio da generalidade do conceito. Pelo contrário, para ele existe um nexo indissolúvel entre individualidade e natureza comum. Com o sentimento da individualidade está sempre dada uma intuição de uma totalidade, e por isso o aprofundamento na individualidade dos fenômenos linguísticos se entende, por sua vez, como um caminho para compreender o todo da constituição linguística humana. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

O caminho que Humboldt segue, na sua investigação, está determinado pela abstração rumo à forma. Por mais que Humboldt ponha a descoberto, com isso, o significado das línguas humanas como reflexo da peculiaridade espiritual das nações, a universalidade do nexo de linguagem e pensamento fica, com isso, restrita ao formalismo de um poder. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Esse outro mundo que assim experimentamos não é simplesmente objeto de investigação, onde se busque “estar por dentro” e ter informações sobre ele. Aquele que deixa vir a si a tradição literária de uma língua estrangeira, de maneira que ela consiga lhe falar, já não possui uma relação objetiva para [446] com a língua como tal, como também não ocorre ao viajante que dela se serve. Este se comporta de uma maneira muito diferente de como o faz o filólogo, para quem a tradição linguística é um material para a história da língua ou para a comparação linguística. Nós conhecemos isso suficientemente, pelo nosso próprio aprendizado de línguas estrangeiras e por essa particular dissecação das obras literárias, graças à qual a escola nos introduz nas ditas línguas. É claro que não se entende uma tradição, quando se está orientado tematicamente para a língua como tal. Mas — e este é o outro lado da questão, que é importante considerar — pode-se também não entender o que a tradição diz e quer dizer, se esta não fala a algo conhecido e familiar, que deve se pôr em mediação com as proposições do texto. Nesse sentido, aprender uma língua é ampliar o que podemos aprender. Somente no nível de reflexão do linguista esse nexo pode adotar a forma, sob a qual se entende que o êxito na aprendizagem de uma língua estrangeira “não se experimenta em forma pura e perfeita”. A experiência hermenêutica, de sua parte, é exatamente inversa: Ter aprendido e compreender uma língua estrangeira — este formalismo do poder — não quer dizer outra coisa do que estar em condições de fazer com que e deixar que seja dito, o que se diz nela. O exercício dessa compreensão é sempre ao mesmo tempo convocação pelo que foi dito, e isso não pode ter lugar se alguém não integra nisso “sua própria acepção do mundo e inclusive da linguagem”. Valeria a pena investigar a fundo, até que ponto o próprio Humboldt também deixou falar a sua própria familiaridade com a tradição literária dos povos, ainda dentro de sua orientação abstrativa voltada à linguagem como tal. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

De outra parte, existe um nexo positivo e objetivo entre a objetividade da linguagem e a capacidade do homem para fazer ciência. Isso se mostra de um modo particularmente claro na ciência antiga, cuja procedência, a partir da experiência linguística do mundo, constitui ao mesmo tempo a sua caracterização e a sua debilidade específicas. Para poder superar sua debilidade, o seu ingênuo antropocentrismo, a ciência moderna teve de renunciar também à sua caracterização, isto é, à sua [458] integração no comportamento natural do homem no mundo. Isso pode ser ilustrado muito bem com o conceito de “teoria”. O que se chama teoria, dentro da ciência moderna, pelo que parece, quase mais nada tem a ver com aquela atitude de observar e saber, na qual os gregos acolhiam a ordem do mundo. A teoria moderna é um meio construtivo, pelo qual reúnem-se unitariamente experiências e torna-se possível seu domínio. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Convém não desatender esse aspecto, quando se pretende afirmar que a origem da ciência é grega. Já devia ter passado definitivamente o tempo em que se tomava como padrão o método científico moderno e se interpretava Platão por referência a Kant, e a ideia por referência à lei da natureza (neokantismo), ou se alardeava que em Demócrito já aparecia o começo esperançoso do verdadeiro conhecimento “mecânico” da natureza. Já uma simples reflexão sobre a superação fundamental hegeliana do ponto de vista da compreensão, sob o fio condutor da ideia da vida, pode mostrar os limites de semelhante consideração. Creio que Heidegger alcança mais tarde, no Ser e tempo, o ponto de vista, sob o qual se pode pensar tanto a diferença, quanto a vinculação entre a ciência grega e a moderna. Quando mostra o conceito do ser simplesmente dado (Vorhandenheit) como um modo deficiente do ser, e quando, o reconhece como pano de fundo da metafísica clássica e de sua sobrevivência no conceito moderno da subjetividade, persegue de fato um nexo ontológico correto entre a teoria grega e a ciência moderna. No horizonte de sua interpretação temporal do ser, a metafísica clássica lhe parece, em seu conjunto, como uma ontologia do simplesmente dado, e a ciência moderna lhe parece, sem dar-se conta disso, sua herdeira. Na própria teoria grega havia, no entanto, algo mais que isso. Theoria abarca não tanto o simplesmente dado, mas também a própria coisa (Sache), que ainda tem a dignidade da “coisa” (“Ding”). O próprio Heidegger destacará mais tarde, que a experiência da coisa tem pouco a ver com a pura constatabilidade do mero ser simplesmente dado, como com a experiência das chamadas ciências empíricas. Por consequência, [460] temos de manter tanto a dignidade da coisa como a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, livres do preconceito contra a ontologia do simplesmente dado e portanto do conceito da objetividade (Objetivität). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Nessa direção já aponta o papel que desempenha o conceito da dialética na filosofia do século XIX. É um testemunho da continuidade do nexo de problemas desde sua origem grega. Para nós que estamos emaranhados nas aporias do subjetivismo, os gregos nos levam uma certa vantagem no que se refere a conceber os poderes supra-subjetivos que dominam a história. Eles não procurarão fundamentar a objetividade do conhecimento a partir da subjetividade e para ela. Ao contrário, seu pensamento considerou-se sempre, desde o princípio, como um momento do próprio ser. Nele viu Parmênides o guia mais importante para o caminho rumo à verdade do ser. A dialética, esse antagonista do logos, não era para os gregos, como já dissemos, um movimento que o pensamento leva a cabo, mas o movimento da própria coisa que aquele percebe. Que isso soe a Hegel não implica uma falsa modernização, mas atesta um nexo histórico. Na situação do novo pensamento, tal como o caracterizamos, Hegel assume conscientemente o modelo da dialética grega . Por isso, aquele que queira ir à escola dos gregos, já terá sempre passado pela escola de Hegel. Tanto sua dialética das determinações do pensamento, como a das formas do saber, refazem, numa realização expressa, a mediação total de pensamento e ser, que sempre foi o elemento natural do pensamento grego. Se nossa teoria hermenêutica busca o reconhecimento do entrelaçamento do acontecer e compreender, terá de retroceder não somente até Hegel, mas também até Parmênides. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Na medida em que a experiência hermenêutica contém um acontecer linguístico, que corresponde à representação dialética de Hegel, também ela participa numa dialética, que desenvolvemos acima, como dialética de pergunta e resposta. Como já vimos, a compreensão de um texto transmitido tem uma relação interna essencial com a sua interpretação, e ainda que esta seja, por sua vez, sempre um movimento relativo e inconcluso, a compreensão alcança nela sua perfeição relativa. Pela mesma razão, o conteúdo especulativo dos enunciados filosóficos necessita, como ensina Hegel, uma representação dialética das contradições contidas nele, se é que quer ser verdadeira ciência. Aqui há uma real correspondência. A interpretação toma parte na discursividade do espírito humano, que somente é capaz de pensar a unidade da coisa na mútua alternância do um ou do outro. A interpretação tem a estrutura dialética de todo ser finito e histórico, na medida em que toda interpretação tem que começar em algum ponto e procurar superar a parcialidade que ela introduz com seu começo. Há algo que parece necessário ao intérprete, ou seja, que se diga e se torne expresso. Nesse sentido toda interpretação é motivada e obtém seu sentido a partir de seu nexo de motivações. Sua parcialidade outorga a um dos aspectos da coisa uma clara preponderância, e para compensá-la tem de continuar dizendo mais coisas. Assim como a dialética filosófica consegue expor o todo da verdade através da auto-suspensão de todas as imposições unilaterais e pelo caminho do aguçamento e da superação das contradições, o esforço hermenêutico tem como tarefa pôr a descoberto um todo de sentido na multilateralidade de suas relações. À totalidade das determinações do pensamento, corresponde a individualidade de sentido a que se tem em mente. Pense-se, por exemplo, em Schleiermacher, que fundamenta sua dialética na metafísica da individualidade e constrói, na sua teoria hermenêutica, o procedimento da interpretação a partir de orientações antitéticas do pensamento. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Pois bem, o conceito da evidência pertence à tradição retórica. O eikos, o verosimile, o verossímil, o evidente, formam uma série que pode defender sua própria justificação, face à verdade e à certeza do que está demonstrado e sabido. Gostaria [489] de recordar nesse ponto o significado especial que já reconhecemos ao sensus communis. Junto a isso, poderia perceber-se aqui o efeito de uma certa ressonância místico-pietista da illuminatio, iluminação, sobre a evidência (uma ressonância que se ouvia também no sensus communis, por exemplo, em Oetinger). Seja qual for o caso, em nenhum desses dois âmbitos é casual o metaforismo da luz. O fato de que se fale de um acontecer ou de um fazer da coisa é algo comandado pelas próprias coisas. O que é evidente é sempre algo dito: uma proposta, um plano, uma suposição, um argumento etc. Com isso está sempre dada a ideia de que o evidente não está demonstrado nem é absolutamente certo, mas se faz valer a si mesmo como algo preferencial, dentro do âmbito possível e do provável. Inclusive podemos admitir sem dificuldades que um argumento tem algo de evidente, quando o que pretendemos com ele é apreciar um contra-argumento. Deixa-se em aberto como isso poderia ser compatível com o conjunto do que nós mesmos temos por correto, e diz-se tão-somente que é evidente “em si mesmo”, isto é, que há coisas que falam em seu favor. Nessa formulação, torna-se evidente o nexo com o belo. Também o belo convence por si mesmo, sem precisar subordinar-se imediatamente ao conjunto de nossas orientações e valoramentos. Tal como o belo é uma espécie de experiência, que se destaca e se retira do conjunto de nossa experiência, ao modo de um encantamento ou aventura, e que coloca sua própria tarefa de integração hermenêutica, também o evidente tem sempre algo de surpreendente, como o surgimento de uma nova luz que torna mais amplo o campo do que entra em consideração. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Como se cumpre esse trabalho da vida, formador de pensamentos? Dilthey fundamenta sua filosofia na experiência interna da compreensão, a qual nos abre a realidade que resiste ao conceito. Todo conhecimento histórico é uma tal compreensão. A compreensão não é, porém, somente o procedimento da ciência histórica, mas uma determinação fundamental do ser humano. Isso repousa sobre o fato de termos vivências, que nos são conscientes. Essas vivências configuram-se na “recordação” para a compreensão significativa. Dilthey apoiou-se aqui no pensamento romântico, ao reconhecer que esta compreensão significativa está estruturada [31] de modo bem diferente do que o procedimento cognitivo das ciências da natureza. Aqui não se transita de um elemento para outro e deste para o próximo, para com isso abstrair-lhe o comum. Antes, a vivência singular já é sempre uma totalidade significativa, um nexo reunitivo. E por isso a vivência singular constitui uma parte da totalidade do decurso da vida. Apesar disso, seu significado está referido a essa totalidade de um modo todo próprio. Não é a última coisa vivenciada por alguém que consuma e determina o significado do nexo de vida. O sentido de um destino de vida é, antes, uma totalidade própria que se forma não a partir do final, mas de um centro formador de sentido. O significado do nexo não se forma em torno da última vivência, mas em torno da vivência decisiva. Um instante pode ser decisivo para toda uma vida. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Mas esse nexo significativo, assim formado, é ao mesmo tempo um nexo operativo, isto é, não se forma primeiramente na compreensão, mas já está operando igualmente como um nexo de forças. A história é sempre conjuntamente significação e força. Dilthey mostra de certo modo que cada época representa um nexo de significação unitário e consistente. Chama esse nexo de “estrutura” do tempo. Faz sentido portanto dizermos que se deve compreender todos os fenômenos desse tempo a partir de sua estrutura. Para a compreensão, não é suficiente reconhecer aqui meras influências ou repercussões de outros tempos ou circunstâncias. Só experimenta uma influência aquele que já está preparado e receptivo para ela. A estrutura é justamente esta receptividade. Seria uma falsa unilateralidade querermos prescindir totalmente da pergunta por essas linhas da influência histórica. Em última instância, experimentar influências depende também de que aquilo que exerce essa influência esteja próximo e tenha atuação. A história não é [32] apenas um nexo de significações, mas um nexo real de forças. Vamos esclarecer isso novamente no exemplo do destino da vida humana. É certo que um destino humano realiza-se segundo a lei que obedece. É certo também que as circunstâncias co-determinam esse destino; Daimon e Kairos, a predeterminação e a ocasião atuam conjuntamente. A história sempre é concomitantemente tanto sentido quanto realidade, tanto significação quanto força. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

[33] Será que existe realmente essa liberdade da compreensão? Será que nele se revela o nexo infinito do acontecimento como a essência da história? Será que não perguntamos exatamente pela essência da história quando perguntamos pelos limites da autoconsciência histórica? Nietzsche nos precedeu nesse questionamento. Na segunda Consideração intempestiva, ele se pergunta pela utilidade e desvantagem da história para a vida. Esboça aqui uma imagem aterradora da doença histórica que se abateu sobre sua época. Mostra como todos os instintos promotores da vida estão profundamente deteriorados por camsa dessa doença; como todos os padrões e valores vinculantes se perderam, pelo fato de aprendermos a medir com padrões estranhos e arbitrários, pautando-nos sempre em novas tábuas de valores. Mas a crítica de Nietzsche tem também seu lado positivo. Proclama um padrão de medida da vida, que mede o quanto de história uma cultura pode suportar sem sofrer danos. A autoconsciência histórica pode apresentar-se de diversos modos: conservadora, modelar ou pressentindo a decadência. A força plástica, a única capaz de dar vida a uma cultura, deve ser obtida no justo equilíbrio entre estes diversos modos de se fazer história. Ela necessita de um horizonte cercado de mitos, necessita pois de uma delimitação frente ao Iluminismo histórico. Haverá porém um voltar atrás? Ou talvez isso não seja necessário? Será que a fé na infinitude da compreensão da razão histórica é uma ilusão, uma auto-interpretação falsa de nosso ser e de nossa consciência históricos? Esta é a pergunta decisiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Surge aqui um segundo aspecto: A significação não se revela no distanciamento do elemento compreensivo como pensava Dilthey, mas pelo fato de nós mesmos estarmos inseridos no nexo de efeitos da história. A compreensão histórica é ela própria, sempre, a experiência de um efeito e o prolongamento de sua efetividade. [35] Seu envolvimento prévio significa sua força histórica de produzir efeitos. Por isso, o que é historicamente significativo torna-se acessível de modo mais originário na plenitude da ação do que no compreender. A existência (Dasein) histórica guarda sempre uma situação, uma perspectiva e um horizonte. É um caso semelhante ao da pintura: A perspectiva, isto é, a ordenação de “proximidade” ou “distância” das coisas inclui um ponto de vista, que precisa ser levado em conta. Assim, entramos numa relação de ser com as coisas e fazemos parte de sua ordenação, à medida que com elas nos alinhamos. Só assim torna-se representável a singularidade de um acontecimento, a plenitude do instante. A pintura pré-perspectivística, pelo contrário, mostra todas as coisas numa eternidade dilatada e pela ótica de um significado transcendente. A verdade histórica, correspondentemente, não é o transparecer de uma ideia, mas o vínculo de uma decisão irrepetível. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Ao recuperar o sentido da palavra grega que designa a verdade, Heidegger possibilitou em nossa geração um conhecimento promissor. Não foi Heidegger o primeiro a descobrir que Aletheia, significa propriamente desocultação (Unverborgenheit). Heidegger nos ensinou o que significa para o pensamento do ser o fato de a verdade precisar ser arrebatada da ocultação (Verborgenheit) e do velamento (Verhohlenheit) das coisas como um roubo. A ocultação e o velamento pertencem ao mesmo fenômeno. As coisas mantêm-se por si próprias em estado de ocultação; “a natureza ama esconder-se”, teria dito Heráclito. Mas também o velamento pertence à ação e ao falar próprios dos seres humanos, pois o discurso humano não transmite apenas a verdade, mas conhece também a aparência, o engano e a simulação. Há um nexo originário, portanto, entre ser verdadeiro e discurso verdadeiro. A desocultação do ente vem à fala no desvelamento da proposição. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

O discurso que realiza de modo mais puro esse nexo é o ensino. Precisamos reconhecer que para nós a experiência singular e primária do discurso não é o ensino, mas sim aquela pensada [47] primeiramente pelos filósofos gregos, e que a ciência trouxe à tona com todas as suas possibilidades. Traduz-se muitas vezes o discurso, logos, como “razão”, e isso justifica-se à medida que, para os gregos, era evidente que são as próprias coisas em sua compreensibilidade que estão resguardadas e veladas primariamente no discurso. E a razão das próprias coisas que permite apresentar-se e comunicar-se num modo específico de discurso. Chama-se esse modo de discurso de enunciado ou juízo. A expressão grega que lhe corresponde é apophansis. A lógica posterior formou para isso o conceito de juízo. Diferenciando-se de todas as outras formas de discurso, o juízo caracteriza-se por pretender ser somente verdadeiro e medir-se exclusivamente no fato de revelar um ente tal qual ele é. Existe a ordem, a súplica, a maldição, há o fenômeno muito estranho da pergunta, sobre o que ainda retornaremos, há, enfim, infinitas formas de discurso, e todas contêm algo como um ser verdadeiro. Elas todas, porém, não se determinam exclusivamente por mostrar o ente como ele é. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

A expressão “o instante da existência” serve ao menos para indicar a crítica ao pensamento histórico-filosófico do século XIX e particularmente às duas posições já mencionadas, que caracterizam o nosso século. O fato radical que debatemos propriamente aqui não é saber como nossa consciência, capaz de recordar e pre-sentificar, pode conhecer e expressar de modo legítimo um nexo da história. O autêntico problema que aqui se coloca e que se reconhece como o problema da história encontra sua expressão no conceito de historicidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Essa palavra, de há muito usada em sentido comum, foi cunhada [135] como conceito pelo Conde Yorck de Wartenburg, o amigo filósofo de Wilhelm Dilthey. Dilthey, por sua vez, colocou-a em circulação, até alcançar seu sentido mais acurado na filosofia de nosso século, com Heidegger e Jaspers. A novidade desse conceito de historicidade foi a inclusão de um enunciado ontológico. Já Yorck falava da “distinção genérica entre o ôntico e o histórico”. O conceito de historicidade não enuncia algo sobre um nexo do acontecer que se deu realmente, mas sobre o modo de ser do homem que está na história e que somente pode ser compreendido a fundo em seu ser pelo conceito de historicidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

A problemática ontológica do tempo consiste, portanto, no [136] fato de não ser possível expressar e nem conceber seu próprio ser com os recursos da filosofia do ser desenvolvida pela Antiguidade. Creio que o conceito de continuidade da história vem a refletir o mesmo problema. Isso não significa que o discurso da continuidade da história derive diretamente dessa experiência constante dos agoras que se sucedem ininterruptamente. Quiçá a experiência de continuidade tem uma base muito diferente da simples experiência do fluir incessante do tempo. A continuidade da história investigada na pergunta pelo ser da história culmina em última instância no fato de que, apesar de toda transitoriedade, todo passar implica necessariamente um devir. A verdade da consciência histórica parece alcançar sua perfeição quando percebe o devir no passar e o passar no devir e quando extrai do fluir incessante das transformações a continuidade de um nexo histórico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Para isso lancei mão, sobretudo, da linguagem inerente a toda compreensão. Refiro-me a coisas muito simples e nada misteriosas. Trata-se simplesmente de que nossa consciência histórica, impregnada de conhecimento da alteridade, do estranhamento e mundos históricos alheios, ao aspirar manter separados seus próprios conceitos e os conceitos dessas épocas e mundos alheios, ao final do enorme esforço de conhecimento histórico acaba sempre conjugando ambas as conceptualidades. Um exemplo: a forma jurídica mais estranha que nos chegou das culturas mais antigas é considerada como um tipo de direito que encontra compreensão no espaço global do que é possível juridicamente. Não é uma mera manifestação de nossa consciência histórica a possibilidade de explicitar, por exemplo, como compreendemos os estranhos documentos babilónicos (ou quaisquer outros) como documentos jurídicos e a possibilidade de estar de acordo sobre eles. Não é somente que a distância histórica seja intermediada pelo caráter de linguagem (Sprachlichkeit), mas que essa mediação é prévia a qualquer consciência especificamente histórica. O lugar central do fenômeno da linguagem está não somente em presidir o método da interpretação histórica, mas em ser a forma como se transmitiu sempre o passado e as coisas passadas. Estamos habituados a considerar com um certo orgulho histórico como os escritores da Antiguidade ou da Idade Média, de modo ingenuamente tipológico ou moralista, viam nos testemunhos do passado confirmações diretas do que eles tomavam por verdadeiro. Costumamos dizer que careciam de sentido histórico. Mas o modo dessa compreensão ou assimilação diretamente moralizante ou articulado de qualquer outro modo da tradição passada é na realidade um acontecer de linguagem do mesmo que qualquer processo histórico de interpretação na ciência moderna. A diferença é que ali o vemos com máxima clareza, porque as palavras que se assumiu sem modificação alguma adquirem imediatamente um sentido muito diferente. O trato ingênuo com a tradição efetua sempre uma aplicação ao momento presente que não obstante possa nos parecer extremamente a-científica e portanto falsa e muitas vezes faz parte desses mal-entendidos fecundos a partir de onde vive o nexo tradicional das culturas. Algo dessa convergência conosco mesmos mantém-se vivo em todo conhecimento histórico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo diálogo pode ser descrita a partir do conceito de jogo. Para isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do jogo a partir da consciência do jogador. Essa definição do jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do jogo apenas em sua aparência subjetiva. Jogo é, na verdade, um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de jogo do navio ou de jogo cênico ou do livre jogo das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do jogo para a consciência que joga repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se jogo quando o jogador individual leva a sério o jogo, isto é, quando entra seriamente no jogo, sem considerar-se apenas um jogador. As pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do jogo de estar impregnado de seu espírito — espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro — e nisso impregnar o jogador é aparentada com a estrutura do diálogo, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante para o modo de entrarmos em diálogo mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no diálogo, que provoca a fala e a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o diálogo sentimo-nos plenos. O jogo da fala e da réplica prolonga-se para um diálogo interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o pensamento. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.

Mesmo prescindindo da questão sobre o posicionamento do planejador de uma organização racional do mundo e de um administrador racional dentro deste mundo, parece insolúvel a confusão gerada pelo domínio da “ciência” sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. Também nesse caso, o pensamento grego mostra grande atualidade. A distinção aristotélica entre tékhne e phronesis vai clarificar essa confusão. Reconhecendo na situação concreta da vida o que é passível de ser feito, o saber prático não encontra sua perfeição do mesmo modo que o saber objetivo tem sua perfeição na tékhne. A tékhne que pode ser ensinada e aprendida e seu desempenho não depende evidentemente do tipo de homem que se é, já, do ponto de vista moral ou político, ocorre exatamente o contrário com o saber e a razão que iluminam e guiam a situação prática da vida humana. É claro que também aqui se dá, dentro de certos limites, algo como a aplicação de um saber universal sobre um caso particular. O que assumimos como conhecimento humano, experiência política, astúcia nos negócios, contém — mesmo que segundo uma analogia um tanto inexata — um elemento do saber universal e de sua aplicação. Se não fosse assim, não poderia haver nem o seu ensino e aprendizagem e nem o saber filosófico que Aristóteles desenvolveu no projeto de sua ética e de sua política. Mas o problema aqui não é o da relação lógica entre lei e caso particular e nem tampouco de um cálculo e previsão das consequências, consoante à ideia moderna de ciência. Mesmo na suposição utópica de uma física da sociedade, não nos livraríamos da confusão indicada por Platão quando estilizou o homem de Estado, isto é, o agente político, como um especialista mais gabaritado. Esse saber do físico da sociedade, se posso chamá-lo assim, bem pode possibilitar a existência de um técnico da sociedade capaz de produzir tudo o que se imagina, mas permaneceria alguém que não sabe o que se deve realmente fazer com o que ele mesmo sabe. Aristóteles refletiu profundamente sobre essa confusão. Chamou, por isso, o saber prático, que trata de situações concretas, de “outro tipo de saber. O que defende não é um irracionalismo opaco, mas a clareza da razão que sabe encontrar o factível, a cada vez, num sentido prático-político. Assim, em toda decisão prática da vida, está em questão um ponderar sobre as possibilidades que levam aos fins estabelecidos. É compreensível que, desde Max Weber, as ciências sociais tenham buscado sua legitimação científica na racionalidade da escolha dos meios e que hoje tendam a objetivar cada vez mais áreas que antes estavam sujeitas à decisão “política”. Mas se até Max Weber relacionou o pathos de sua sociologia avalorativa à confissão não menos patética de um “deus” que cada um deve escolher, poderíamos realmente admitir a abstração de que sempre podemos partir de fins estabelecidos? Em caso afirmativo, bastaria um saber técnico para estarmos a caminho de um futuro esplêndido, uma vez que a perspectiva de entendimento é muito maior entre técnicos do que entre homens de Estado. Somos tentados a responsabilizar as diretivas políticas dos governos pelo fracasso nos acordos das negociações internacionais nos assim chamados congressos de especialistas. É bem provável que isso não seja verdade. É verdade que existem âmbitos particulares onde o modo de proceder constitui uma questão de pura racionalidade das metas. Aqui o consenso entre especialistas parece fácil. Mas que grau de autocontrole já não estará atuando para que, mesmo no caso do consultor jurídico, a opinião do consultor possa restringir-se àquilo por que ele pode responsabilizar-se cientificamente? E bem provável que o consultor ideal, no sentido indicado, esteja nesse contexto forense em vias de tornar-se inútil, porque a necessidade de decidir, própria da justiça, obriga sempre de novo a trabalhar com constatações sem garantia irrevogável. Quanto mais decisivamente intervir o teor dos preconceitos sociais ou políticos dominantes, tanto mais ficcional parecerá o puro especialista e com ele o conceito de uma racionalidade cientificamente segura. Em todo âmbito das ciências sociais modernas deve-se admitir que elas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins. Se explorássemos a fundo os condicionamentos internos dessas implicações, acabaria se mostrando a contradição entre a verdade atemporal, postulada pela ciência, e a estruturação temporal daqueles que usam a ciência. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

A estrutura do que chamamos de saúde não é uma realidade precisa e delimitada, mas um estado que se caracteriza, desde antigamente, pelo conceito de equilíbrio. O conceito de equilíbrio implica, no entanto, a existência de uma margem de oscilações que se compensam mutuamente. A perda de equilíbrio só acontece quando ultrapassamos a amplitude tolerável das oscilações. A recuperação do equilíbrio, por sua vez, quando possível, apenas se dá penosamente por meio de um novo esforço. Não significando outra coisa que a recuperação do equilíbrio oscilante, o restabelecimento impõe uma moderação especial à “intervenção”. A intervenção incide de fora sobre um sistema que equilibra e regula a si próprio. Toda intervenção que busca eliminar uma perturbação desse equilíbrio está sujeita a modificar involuntariamente outros condicionamentos do equilíbrio. E quanto mais crescem as possibilidades da ciência tanto maior será esse perigo. Para expressá-lo de modo mais geral: há aqui uma tensão essencial entre os nexos isoláveis de saber e poder que se elaboram por meio da análise causal da ciência da natureza e da organização individual, que, como mostrou Kant, só pode ser compreendida a partir de pontos de vista teleológicos. Nesse sentido, a medicina moderna estende-se à problemática comum sustentada pela biologia científica atual. Os progressos alcançados nesse terreno, sobretudo pela chamada teoria da informação e pela cibernética, puseram a perder muito da univocidade de uma ideia utópica do ideal de um “Newton do vegetal”, ideal que parecia totalmente inalcançável para Kant. Mesmo assim, nada disso ajudou a decidir sobre a questão dos métodos morfológicos. Nem sequer sabemos por que os métodos morfológicos são incompatíveis com os métodos analíticos causais. Mesmo com suas próprias pressuposições metodológicas, a chamada investigação comportamental não consegue esclarecer os comportamentos que não se deixam observar como um nexo mecânico entre causa e efeito, sem que essa explicação implique necessariamente uma contradição. Mesmo que algum dia se consiga reproduzir organismos vivos na proveta, não será nenhum contra-senso o estudo do comportamento desses organismos. O pensamento da ciência admite os dois métodos, submetendo-os ao mesmo objetivo, a saber, conhecer cientificamente um âmbito de experiência e torná-lo disponível. De certo, tornar disponível não se restringe à mera capacidade de reproduzir. Implica também a capacidade de prever processos que não estão à mão, como por exemplo o comportamento de seres vivos em determinadas situações. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Foi justamente esse nexo entre a nova ciência e o ideal de método que ela comporta que tornou irreconhecível, por assim dizer, o fenômeno da compreensão. Assim como a natureza significa, de imediato, algo estranho e impenetrável para o pesquisador da natureza, que pelo cálculo e coerção, ele obriga a falar na tortura através do experimento, também as ciências que fazem uso da compreensão passaram a moldar-se cada vez mais a esse gênero de conceito de método. Dessa maneira, a compreensão foi preferencial e primordialmente concebida como eliminação de mal-entendidos, como superação da estranheza entre um eu e um tu. Mas será o tu por definição tão estranho como o objeto de investigação empírica da natureza? Deve-se reconhecer que o entendimento é mais [188] originário que o mal-entendido, de tal modo que a compreensão retorna sempre de novo para o entendimento restabelecido. É isso que a meu ver legitima plenamente a universalidade da compreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.

Habermas contrapõe a essa ideia o argumento de que a intervenção da reflexão acabou transformando profundamente o médium da ciência. Foi exatamente essa a herança imperecível que o idealismo alemão nos legou do espírito do século XVIII. Segundo Habermas, mesmo que a experiência hegeliana de reflexão já não possa realizar-se numa consciência absoluta, o “idealismo da estrutura da linguagem” (179) — que no fundo não passaria de mera “transmissão cultural”, na sua apropriação e desenvolvimento hermenêuticos — seria uma triste impotência frente ao todo real do nexo vital da sociedade, conjugando não apenas a linguagem mas também o trabalho e o domínio. A reflexão hermenêutica deveria transformar-se em crítica da ideologia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Num trabalho altamente acadêmico sobre essa discussão, Leo Spitzer analisou detalhadamente o gênero literário desses poemas temáticos, indicando de forma convincente o lugar que ocupam na história da literatura. Heidegger, por seu lado, chamou a atenção com razão para o nexo conceitual da palavra schõn (belo) e scheinen (brilhar, parecer) que ressoa na famosa expressão de Hegel sobre o brilho sensível da ideia. Mas existem também razões imanentes. A ação que combina som e significado das palavras faz surgir outra clara instância de decisão. Uma vez que, nesses versos, os sons sibilantes formam uma trama consistente (tuas aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst), ou uma vez que a modulação métrica do verso constitui a unidade melódica da frase (existe um acento métrico sobre schõn, selig, scheint, in, selbst), não há lugar para uma erupção reflexiva como seria o caso de um prosaico scheint es. Significaria antes a erupção da prosa coloquial na linguagem de um poema, um desvio do compreender poético que sempre nos ameaça a todos. Isso porque, em geral, falamos em prosa, como constata o Monsieur Jourdain, de Molière, para a sua própria surpresa. Foi justamente isso que levou a poesia atual a formas estilísticas extremamente herméticas para impedir a erupção da prosa. Aqui, no poema de Mõrike, esse desvio não está muito distante. A linguagem desse poema aproxima-se frequentemente da prosa (Quem tem olhos para ela?). Ora, a posição que esse verso ocupa no poema, a posição de conclusão, confere-lhe um peso gnômico especial. Com seu próprio enunciado, o poema ilustra, na realidade, o motivo por que o ouro desse verso não é uma ordem de pagamento como uma nota bancária ou uma informação, mas possui seu valor próprio. O brilho não é apenas compreendido, mas se irradia sobre todo o esplendor dessa lâmpada que jaz dependurada, despercebida, num salão esquecido, e só reluz ainda nesses versos. O ouvido interior percebe aqui as correspondências de schõn (belo), selig (feliz), scheinen (brilhar, parecer) e selbst (mesmo)… e o selbst, que encerra e emudece o ritmo, faz ressoar o movimento calado em nosso ouvido interior. Faz brilhar em nosso olho interior o suave fluir da luz que chamamos de scheinen (brilhar). Desse modo, nossa compreensão não entende apenas o que se diz ali sobre o belo e o que expressa a autonomia da obra de arte, que não depende de nenhuma relação de uso… nosso ouvido ouve e nosso entendimento percebe o brilho do belo como seu verdadeiro ser. O intérprete que atribui suas razões desaparece, e o texto fala. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

E certo que o nexo que se cria em forma de linguagem para entender-se está substancialmente recheado de palavrórios, aparência de discurso, que na verdade pode também fazer da conversação um intercâmbio de palavras vazias. Lacan disse com razão que a [365] palavra que não se dirige ao outro é uma palavra vazia. É o que constitui o primado da conversação, que se desenvolve entre pergunta e resposta e constrói assim a linguagem comum. Conhecemos a experiência que se faz na conversa entre pessoas que falam idiomas distintos, mas podem entender-se medianamente: sobre essa base não se pode sustentar uma conversação. No entanto, após diversas tentativas, ambos terminam por falar uma das duas línguas, embora um deles fale bastante mal. Trata-se de uma experiência que qualquer um pode fazer. Esse fenômeno contém um importante ensinamento. Não se dá apenas entre interlocutores de idiomas diferentes, mas também na adaptação recíproca das partes em toda e qualquer conversação na mesma língua. É só a resposta, real ou possível, que faz com que uma palavra seja uma palavra. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Talvez a crítica que Derrida dirige à interpretação heideggeriana de Nietzsche — interpretação que a mim me convenceu — possa servir de ilustração para a problemática que levantamos e que nos tem ocupado. Temos de um lado a desconcertante riqueza de aspectos e o incessante jogo de disfarces, no qual a audácia mental de Nietzsche parece dispersar-se numa variedade inapreensível. De outro, a pergunta a ele dirigida: o que significa o jogo dessa audácia. Não que o próprio Nietzsche tivesse presente a unidade na dispersão, nem que tivesse traduzido em conceitos o nexo interno entre o princípio básico da vontade de poder e a mensagem meridiana do eterno retorno do mesmo. Se eu compreendo Heidegger, é precisamente isso o que Nietzsche não fez, de modo que as metáforas de suas últimas visões aparecem como facetas reflexivas, detrás das quais não há uma realidade unívoca. Essa seria, segundo Heidegger, a posição final de Nietzsche, onde se esquece e se perde a pergunta pelo ser. Assim, a era tecnológica na qual o niilismo alcança sua perfeição, significaria de fato, segundo o próprio Heidegger, o eterno retorno do mesmo. Pensar isso, assimilar a Nietzsche pelo pensamento, não me parece ser nenhuma recaída na metafísica e em seu esquema ontológico, que culmina no conceito de essência. Nesse caso, os caminhos de Heidegger, que estão a caminho de uma “essência” de estrutura radicalmente distinta, temporal, não se perderiam sempre de novo no intransitável. O diálogo que continuamos em nosso próprio pensamento e que talvez se enriquece em nosso tempo com novos e grandes interlocutores, numa humanidade de dimensões planetárias, deveria buscar sempre seu interlocutor… especialmente se esse interlocutor é radicalmente distinto. Aquele que me leva a valorizar muito a desconstrução, e insiste na diferença, se encontra no começo de um diálogo, e não no final. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

No que se refere à primeira dessas questões, o conceito histórico [377] de estilo parece indiscutivelmente legítimo onde a vinculação a um gosto vigente representa o único padrão estético. Vale, portanto, em primeiro lugar, para os fenômenos decorativos, cuja determinação mais própria não é ser para si, mas estar em outra coisa e conformá-la à unidade de um nexo vital. O decorativo é uma espécie de qualidade coadjuvante que pertence, evidentemente, àquilo que tem uma determinação de outra ordem, ou seja, que tem um uso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO I

Por outro lado, pode-se questionar se é legítimo estender o ponto de vista da história do estilo às assim chamadas obras de arte livres. Já era evidente para nós que também estas têm seu lugar originário em um nexo vital. Quem quiser compreendê-las não pode querer obter delas valores vivenciais quaisquer, mas deve tomar a atitude correta e isso significa sobretudo uma atitude historicamente correta. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO I

Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey, que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia “descritiva e analítica”, purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Enquanto jurista, Betti está longe de supervalorizar a opinião subjetiva, por exemplo, as casualidades históricas que levaram à formulação de um conteúdo jurídico, equiparando assim a opinião subjetiva ao sentido jurídico. Mas, por outro lado, mantém-se tão fiel à “interpretação psicológica” formulada por Schleiermacher que sua própria posição hermenêutica está constantemente ameaçada de afundar e desaparecer. Por mais que se esforce para superar o reducionismo psicológico e conceber sua tarefa como a reconstrução do nexo espiritual de valores e conteúdos de sentido, só consegue fundamentar a proposição dessa autêntica tarefa hermenêutica através de uma espécie de analogia com a interpretação psicológica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Nesse sentido, a dogmática é, de fato, um elemento de nosso conhecimento histórico. Deve-se a Rothacker ter dado destaque a esse elemento como “a única fonte de nosso saber espiritual” (25). Um nexo de sentido tão abrangente como o que é apresentado por esse tipo de dogmática deve ser levado a efeito, deve mostrar-se [399] evidente. Na pior das hipóteses, para poder realmente compreendê-lo, deve-se considerar a impossibilidade de não ser “verdadeiro”. Com isso, segundo a exposição de Rothacker, coloca-se naturalmente o problema da multiplicidade desses sistemas ou estilos dogmáticos. É exatamente isso que constitui o problema do historicismo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A afirmação de que a hermenêutica jurídica pertence ao nexo de problemas de uma hermenêutica geral não é evidente por si. De fato, nela não está em questão uma reflexão de caráter metodológico, como é o caso da filologia e da hermenêutica bíblica. Ela trata propriamente de um princípio jurídico subsidiário. Sua tarefa não é compreender enunciados jurídicos vigentes, mas encontrar o direito, isto é, interpretar as leis de tal modo que a ordem do direito impregne toda a realidade. Visto que a interpretação tem aqui uma função normativa, um autor como Betti pode separá-la totalmente da interpretação filológica, e mesmo daquela compreensão histórica, cujo objeto é de natureza jurídica (constituições, leis etc). Não se pode discutir o fato de a interpretação da lei, no sentido jurídico, acabar sendo uma atividade criadora de direito. Os diversos princípios que devem ser aplicados no fazer — como, por exemplo, o princípio da analogia, o princípio da complementação de lacunas da lei ou finalmente o princípio produtivo, implicado ele próprio na sentença jurídica, isto é, [400] dependente do caso jurídico concreto — não representam apenas problemas metodológicos, mas penetram profundamente e atingem a própria matéria do direito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Talvez tenhamos de perguntar, aqui, se a conjugação interna da hermenêutica com o escrito não deve ser julgada como algo secundário. Não é por estar escrito que um pensamento necessita de interpretação, mas por causa de seu caráter de linguagem, isto é, a universalidade de seu sentido, a qual possibilita, como consequência, uma consignação escrita. Assim creio ter mostrado que tanto o direito codificado quanto o texto escrito, herdado da tradição, apontam para um nexo profundo, que diz respeito ao relacionamento entre compreensão e aplicação. Não causa nenhuma surpresa o fato de Aristóteles ser a maior testemunha disto. Suponho, no entanto, que o gérmen de toda a sua filosofia própria é a crítica que ele dirige à ideia platônica do bem. Contém uma revisão radical da relação entre o universal e o particular implicada na teoria platônica da ideia do bem — ao menos como é apresentada nos diálogos platônicos. E nem por isso ela se torna “nominalismo”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Seria interessante investigar qual o nexo essencial existente entre hermenêutica e literatura escrita, em seus primórdios gregos. [420] VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

As palavras que são utilizadas na linguagem filosófica, aguçadas pelo pensamento a uma precisão conceitual, implicam sempre momentos semânticos “da linguagem do objeto”, e enquanto implicam uma certa inadequação. Mas o nexo de significado que ressoa sempre em cada palavra da língua viva invade também o potencial [462] de significação da palavra conceitual. E isso não pode ser desconectado em nenhum emprego de expressões da linguagem comum com vistas ao conceito. Mas isso não tem nenhuma importância na formação do conceito nas ciências da natureza, na medida em que nelas a relação experimental controla todo o uso dos conceitos, impondo assim um ideal de univocidade e preparando de modo puro o conteúdo lógico dos enunciados. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Isso leva-me a falar da história da hermenêutica. A sua tematização em meu próprio ensaio representou no fundo uma tarefa preparatória, formando um pano de fundo para o meu trabalho. A consequência disso é que todas as minhas exposições demonstraram uma certa unilateralidade. Isso vale sobretudo para Schleiermacher. Nem as lições sobre hermenêutica — encontradas tanto na edição de Lücke quanto no material original que H. Kimmerle editou nas “Abhandlungen der heidelberger Akademie der Wissenschaften” (e entrementes completadas com um minucioso epílogo [463] crítico) — nem tampouco as conferências acadêmicas de Schleiermacher — que comportam a casual referência polêmica a Wolf e Ast — podem ser comparadas com o conteúdo do seu curso de dialética, no que diz respeito ao peso teórico para uma hermenêutica filosófica, sobretudo o nexo entre pensar e falar elaborado ali. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

A intenção teórica de meu próprio questionamento determinou o importante lugar que ocupa Wilhelm Dilthey no nexo dos problemas de minha investigação, junto com a energia com que acentuei sua atitude ambivalente frente à lógica indutiva de seu século e à herança romântico-idealista, o que no Dilthey tardio inclui não só Schleiermacher mas também o jovem Hegel. Nesse sentido, temos que destacar alguns novos aspectos. Com uma intenção oposta à minha, Peter Krausser rastreou o amplo interesse científico de Dilthey, ilustrando-o, em parte, com material das obras póstumas. A ênfase com que apresenta esse interesse de Dilthey é característica de uma geração que conheceu a Dilthey em sua atualidade tardia dos anos 20 do século XX. Para aqueles que tematizaram, primeiramente e com intenção teórica pessoal, o interesse de Dilthey pela historicidade e pela fundamentação das ciências do espírito, por exemplo, para Misch, Groethuysen e Spranger, mas também para Jaspers e Heidegger, sempre foi evidente que Dilthey teve grande participação nas ciências da natureza de seu tempo, sobretudo no seu ramo antropológico e psicológico. Krausser desenvolve a teoria estrutural de Dilthey com os meios de uma análise quase cibernética, de modo que a fundamentação das ciências do espírito segue exatamente o modelo das ciências da natureza. Mas isso sobre a base de dados tão vagos que qualquer cibernético persignar-se-ia diante disso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

A hermenêutica e a filosofia grega foram os dois pontos básicos de meu trabalho. Permitam-me expor brevemente o nexo interno que sustenta meu pensamento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.