O aspecto crítico dessa ideia não era, certamente, totalmente novo. Sob a forma de uma crítica ao idealismo, esse aspecto já havia sido pensado pelos neo-hegelianos, e, nesse sentido, não é por acaso que tanto os demais críticos do idealismo neokantiano como o próprio Heidegger acolham nesse momento um Kierkegaard procedente da crise espiritual do hegelianismo. Porém, de outra parte, essa crítica ao idealismo, tanto naquele tempo como agora, vê-se confrontada com a ampla pretensão do questionamento transcendental. Na medida em que a reflexão transcendental não queria deixar impensado nenhum dos possíveis motivos do pensamento no desenvolvimento do conteúdo do espírito — e desde Hegel, essa foi a pretensão da filosofia transcendental — esta já inclui sempre toda objeção possível na reflexão total do espírito. E isso vale igualmente para o questionamento transcendental, sob o qual Husserl colocou a tarefa universal da fenomenologia: a constituição de toda validez ôntica. É evidente que essa tarefa tem de incluir em si também a facticidade a que Heidegger deu validade. Husserl pode, assim, reconhecer o ser-no-mundo como um problema da intencionalidade de horizonte da consciência transcendental, e a historicidade absoluta da subjetividade transcendental teria de poder mostrar também o sentido da facticidade. Por isso Husserl pôde, em seguida, objetar contra Heidegger, mantendo-se consequente na sua ideia central do eu-originário, que o próprio sentido da facticidade é um eidos e pertence, portanto, essencialmente à esfera eidética das generalidades essenciais. Se examinarmos nesse rumo os esboços contidos nos últimos trabalhos de Husserl, sobretudo os trabalhos a respeito da “Crise”, no VII tomo, neles encontraremos realmente numerosas análises da “historicidade absoluta”, continuando a desenvolver de modo consequente a problemática das “Ideias”, as quais correspondem ao novo, revolucionário e polêmico ponto de partida de Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Assim, teremos de nos perguntar se a nossa própria tentativa de uma hermenêutica histórica pode ser também alvo desta mesma crítica ou se conseguimos nos manter livres da pretensão metafísica da filosofia da reflexão e justificar a legitimidade da experiência hermenêutica, concordando com a poderosa crítica histórica dos neo-hegelianos contra Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
neo-testamentária……………….1
A estrutura aplicativa do compreender, revelada na análise filosófica, não significa, de modo algum, uma diminuição da disposição “neutra” de compreender o que o próprio texto diz e nem permite que se aliene o texto de sua “própria” intenção semântica [109] para utilizá-lo com intenções preconcebidas. O que a reflexão faz é apenas descobrir os condicionamentos que já estão atuando, a cada vez, sobre o compreender, condicionamentos que sempre já estão sendo aplicados quando nos empenhamos em esclarecer um texto, visto que são constitutivos de nossa “compreensão prévia”. Isso não significa, em absoluto, que deixemos as “ciências do espírito” vegetando como ciências “inexatas” em toda sua lamentável insuficiência, enquanto não se elevarem ao nível de science e não puderem se integrar à unity of science. Ao contrário, uma hermenêutica filosófica haverá de concluir que o compreender só é possível quando aquele que compreende coloca em jogo seus próprios preconceitos. A contribuição produtiva do intérprete é parte inalienável do próprio sentido do compreender. Isso não legitima o caráter privado e arbitrário das pressuposições subjetivas, visto que a coisa que está em questão a cada vez — o texto que se quer compreender — é o único critério dotado de validade. A distância insuperável e necessária entre os tempos, as culturas, as classes, as raças — ou mesmo entre as pessoas — é um momento supra-subjetivo, que confere tensão e vida a todo compreender. Pode-se descrever esse fenômeno também do seguinte modo: O intérprete e o texto possuem cada qual seu próprio “horizonte” e todo compreender representa uma fusão desses horizontes. Assim, não só na ciência neo-testamentária (sobretudo em E. Fuchs e G. Ebeling), como por exemplo no literary criticism, mas também no desenvolvimento filosófico do enfoque heideggeriano, a questão da hermenêutica deslocou-se radicalmente da base subjetivo-psicológica para um sentido objetivo, mediado pela história dos efeitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
neokantiana…………………….11
A fórmula de Droysen para o conhecimento histórico é, pois, “compreender investigando” (§ 8). Nisso se oculta tanto uma mediação infinita como uma imediatez última. O conceito da investigação, que Droysen vincula, aqui numa cunhagem tão significativa, com o do compreender, deve marcar a infinitude da tarefa que separa o historiador tão profundamente das perfeições da criação artística, como da perfeita sintonia que instauram a simpatia e o amor entre o eu e o tu. Somente investigando a tradição até o fim e “sem descanso”, descobrindo sempre novas fontes e reinterpretando-as sem cessar, a investigação vai se aproximando pouco a pouco da “ideia”. Isso soa como um apoiar-se no procedimento das ciências da natureza e como uma antecipação da interpretação neokantiana da “coisa em si”, como “tarefa infinita”. Porém, observando-se mais de perto, descobrir-se-á que nisso há algo mais. A fórmula de Droysen não delimita o fazer do historiador somente face à idealidade total da arte e face à comunhão íntima das almas, mas também, ao que parece, face ao procedimento das ciências da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
E assim, surge a questão de se saber até que ponto a superioridade dialética da filosofia da reflexão corresponde a uma verdade pautada na coisa ou até que ponto gera tão-somente uma aparência formal. Pois a argumentação da filosofia da reflexão não pode acabar ocultando que a crítica contra o pensamento especulativo, que é exercida do ponto de vista da limitada consciência humana, contém algo de verdade. Isso se mostra muito particularmente nas formas epigônicas do idealismo, por exemplo, na crítica neokantiana da filosofia da vida e da filosofia existencial. Em 1920, Heinrich Rickert, argumentando fundamentalmente a “filosofia da vida”, não conseguiu alcançar o efeito de Nietzsche e de Dilthey, que então começava a exercer sua grande influência. Mesmo que se mostre claramente a contraditoriedade interna de qualquer relativismo, as coisas não deixam de ser como as descreve Heidegger: todas essas argumentações triunfais têm sempre algo de uma tentativa de ataque de surpresa. Por mais convincentes que pareçam, passam ao largo face ao verdadeiro núcleo das coisas. Servindo-se delas se tem razão, e, no entanto, não expressam nenhuma evidência superior, que fosse fecunda. É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime. Mas, o que se consegue com isso? O argumento da reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia contra aquele que o emprega, na medida em que torna suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se alcança através dessa argumentação não é a realidade do ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do argumentar formal em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Ao sair das profundezas do hegelianismo epigonal e do materialismo acadêmico da metade do século, a filosofía passou a se afirmar sob o signo de Kant e de seu questionamento epistemológico pela fundamentação da ciência. Na Crítica da razão pura, Kant respondeu à questão pela possibilidade de uma ciência pura da natureza. Isso agora foi ultrapassado na medida em que se pergunta pela possibilidade da ciência da história. Ao lado da Crítica da razão pura, procurou-se colocar uma Crítica da razão histórica (para usar uma expressão de Wilhelm Dilthey). O problema da história apresentou-se como o problema da ciência da história. Como esta adquire seu direito de ser uma teoria do conhecimento? Perguntar desta forma, porém, significou medir a [29] ciência da história nos moldes das ciências da natureza. O livro clássico da lógica neokantiana da história traz um título bem característico: “Os limites da formação conceitual das ciências da natureza”. Nele, Heinrich Rickert procura demonstrar o que caracteriza o objeto da história, e porque na história em lugar de se procurar leis universais, como na ciência da natureza, reconhece-se o singular, o individual. O que é que transforma um mero fato numa realidade histórica? A resposta é: Seu significado, isto é, sua relação com o sistema dos valores culturais humanos. Neste questionamento, apesar de todas as restrições, o modelo de conhecimento das ciências da natureza continua sendo o determinante. O problema da história resume-se inteiramente no problema epistemológico sobre a possibilidade de uma ciência da história. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
A consciência filosófica reúne no conceito “a natureza da coisa (Sache)” uma resistência, sentida a partir de diversas vertentes, contra o idealismo filosófico e especialmente contra a forma neokantiana, que revitalizou esse idealismo na segunda metade do século XIX. Essa continuação de Kant que a ele se refere para transformá-lo em expoente da fé no progresso e em orgulho da ciência de sua época, no fundo, não conseguiu empreender coisa alguma com o conceito de “coisa-em-si”. Apesar da refutação explícita do idealismo metafísico dos seguidores de Kant, não mais se observou o dualismo kantiano de coisa-em-si e fenômeno. Foi só pela reinterpretação do pensamento de Kant que se pôde adaptar o sentido literal de Kant às convicções próprias, tornadas óbvias, em consequência das quais o idealismo viria a significar a total determinação do objeto pelo conhecimento. Compreendeu-se, assim, a coisa-em-si como mera finalidade de uma tarefa progressiva e infinita de determinação. O próprio Husserl, que contrariamente ao neokantianismo partiu mais da experiência cotidiana do que do fato da ciência, procurou dar à teoria da coisa-em-si uma identidade fenomenológica, admitindo que os diversos matizes da coisa percebida formam o continuum de uma experiência. A teoria da coisa-em-si não pôde ser referida a outra coisa além dessa constante transferibilidade de um aspecto da coisa para os outros, que possibilita o contexto unitário de nossa experiência. Também Husserl, portanto, acabou compreendendo a ideia da coisa-em-si a partir da ideia do progresso de nosso conhecimento, o qual tem a sua demonstração última na investigação da ciência. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Para lembrar sumariamente qual o conteúdo que a reflexão filosófica sobre a história considerou no passado como essencial e que problemas assumiu como fundamentais, vou considerar a filosofia da história desenvolvida no sudoeste da Alemanha, ou seja, na escola neokantiana de Heidelberg (se é que se pode chamar de filosofia da história à teoria do conhecimento das ciências históricas) e a filosofia da história de Dilthey (se é que se pode chamar de filosofia da história à dissolução da metafísica em história). A reflexão epistemológica que o neokantismo de Heidelberg, em ultrapassando Kant, expandiu até a ciência historiográfica aborda a seguinte questão: O que distingue um objeto da investigação histórica e o modo de doação que constitui o objeto de investigação das ciências naturais. O que transforma um fato em fato histórico? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
Foi a filosofia existencial, hoje tão menosprezada, que defendeu algumas dessas verdades. Sobretudo o conceito de situação desempenhou um papel muito importante no afastamento da metodologia cientificista da escola neokantiana. De fato, nesse conceito, analisado sobretudo por Karl Jaspers, encontra-se uma motivação lógica, cuja complexidade supera a simples relação entre universal e particular ou entre lei e caso concreto. Encontrar-se numa situação possui sempre um momento inalcançável para o conhecimento objetivante. Não é por acaso que, em contextos semelhantes, usamos expressões metafóricas como a da necessidade de colocar-se na situação, a fim ultrapassar o conhecimento genérico e descobrir o que é realmente factível e possível. A situação não tem caráter de objeto e refuta a premissa de que bastaria o conhecimento dos dados objetivos para alcançar o seu saber. Mesmo um conhecimento suficiente de todos os dados objetivos, como ocorre na ciência, não seria capaz de antecipar a perspectiva daquele que está vinculado à situação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto “cultura”, convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da “facticidade” do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Para isso é preciso uma visão certeira. A admirável empresa de uma crítica da razão histórica, empreendida por Dilthey, foi marcada e também obstaculizada, pensamos hoje, por sua dependência em relação ao modelo metodológico das ciências experimentais da [328] natureza. De certo, seu repúdio à teoria axiológica do neokantismo (Rickert) tem sua razão de ser; mas era preciso superar a mera oposição à teoria neokantiana dos valores. Foi o que fez Theodor Litt. Quando no ano de 1941, eu escutei, em Leipzig, a conferência de Litt na Academia saxônica de ciências, da qual acabara de ser eleito membro — seu membro mais jovem — esse estudo sobre “o universal na elaboração do conhecimento das ciências do espírito” pareceu-me uma síntese na qual Litt ratificava sua posição intermediária entre Kant e Herder. Ele a havia elaborado no ano de 1930 num belo livro. Como a linguagem constituía nesse caso a ponte entre o universal e o particular ou singular, pareceu-me muito natural aproveitar meu próprio estudo da crítica ontológica que Heidegger fez à metafísica grega e a sua consequência histórica, aplicando-o ao pensamento subjetivo da modernidade para precisar melhor a natureza das ciências do espírito. Ainda hoje sinto-me próximo de Litt, por exemplo, na defesa da linguagem da cotidianidade frente à linguagem técnica e o conceito “puro”, o qual tem sua plena justificação nas ciências da natureza. Litt aprendeu a articular seu próprio pensamento na dialética hegeliana do universal e do particular e na fusão do juízo determinante com o juízo reflexivo. Desse modo tocava no nervo hermenêutico. Eu mesmo procurei ultrapassar o horizonte da teoria moderna da ciência e da filosofia das ciências do espírito para examinar o problema hermenêutico, tomando como referência a estrutura fundamental do ser humano baseada na linguagem. A virtude aristotélica da racionalidade, a phronesis, acaba sendo a virtude hermenêutica fundamental. Serviu de modelo para a formação de minha própria linha argumentativa. Desse modo, a hermenêutica, essa teoria da aplicação, quer dizer, da conjugação do universal e do particular, converteu-se para mim numa tarefa filosófica central. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Quando chamo de dialética à situação inicial da qual Heidegger tenta percorrer seu caminho de volta, não o faço pela razão extrema segundo a qual Hegel fez sua síntese secular do legado da metafísica mediante uma dialética especulativa que pretendia recolher e assimilar toda a verdade do começo grego. Faço-o sobretudo porque Heidegger foi realmente aquele que não ficou preso às modificações e perpetuações do legado da metafísica realizadas pelo neokantismo de Marburgo e pela reformulação neokantiana da fenomenologia de Husserl. O que ele buscou como superação da metafísica não se esgotou no gesto de protesto, como é o caso da esquerda hegeliana e de figuras como Kierkegaard e Nietzsche. Ele empreendeu essa tarefa pelo árduo trabalho do conceito, [369] aprendido em Aristóteles. Dialética significa, pois, em meu contexto o amplo conjunto da tradição ocidental da metafísica, tanto o “lógico” em sentido hegeliano quanto o logos do pensamento grego, que marcou já os primeiros passos da filosofia ocidental. Nesse sentido, a tentativa de Heidegger de renovar a pergunta pelo ser, ou melhor, de formulá-la pela primeira vez em sentido não metafísico, portanto, o que ele chamou de “o passo para trás” foi um distanciamento da dialética. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
É verdade que também o neokantismo, com sua “história dos problemas”, tentara descobrir as próprias perguntas. Mas a pretensão de que esses problemas supratemporais, “eternos”, se reiterassem em contextos sistemáticos sempre novos era incomprovada, e na verdade esses problemas “idênticos” se extraíam ingenuamente do material de construção da filosofia idealista e neokantiana. Contra essa suposta supratemporalidade, a objeção do ceticismo histórico-relativista era óbvia e irrefutável. Mas quando aprendi com Heidegger a conduzir o pensamento histórico para a recuperação dos questionamentos da tradição, que as velhas questões tornavam-se tão compreensíveis e vivas que se convertiam em verdadeiras perguntas. O que estou descrevendo é a experiência hermenêutica fundamental, como a caracterizaria hoje. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.