As pesquisas que virão a seguir têm a ver com o problema da hermenêutica. O fenômeno da compreensão e da maneira correta de se interpretar o que se entendeu não é apenas, e em especial, um problema da doutrina dos métodos aplicados nas ciências do espírito. Sempre houve também, desde os tempos mais antigos, uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não era tão acentuadamente científico e teórico, mas, muito mais, assinalado pelo comportamento prático correspondente e a serviço do juiz ou do clérigo instruído. Por isso, desde sua origem histórica, o problema da hermenêutica sempre esteve forçando os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da moderna ciência. Entender e interpretar os textos não é somente um empenho da ciência, já que pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo. Na sua origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método. O que importa a ele, em primeiro lugar, não é estruturação de um conhecimento seguro, que satisfaça aos ideais metodológicos da ciência — embora, sem dúvida, se trate também aqui do conhecimento e da verdade. Ao se compreender a tradição não se compreende apenas textos, mas também se adquirem juízos e se reconhecem verdades. Mas que conhecimento é esse? Que verdade é essa? VERDADE E MÉTODO Introdução
As pesquisas que virão a seguir têm a ver com o problema da hermenêutica. O fenômeno da compreensão e da maneira correta de se interpretar o que se entendeu não é apenas, e em especial, um problema da doutrina dos métodos aplicados nas ciências do espírito. Sempre houve também, desde os tempos mais antigos, uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não era tão acentuadamente científico e teórico, mas, muito mais, assinalado pelo comportamento prático correspondente e a serviço do juiz ou do clérigo instruído. Por isso, desde sua origem histórica, o problema da hermenêutica sempre esteve forçando os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da moderna ciência. Entender e interpretar os textos não é somente um empenho da ciência, já que pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo. Na sua origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método. O que importa a ele, em primeiro lugar, não é estruturação de um conhecimento seguro, que satisfaça aos ideais metodológicos da ciência — embora, sem dúvida, se trate também aqui do conhecimento e da verdade. Ao se compreender a tradição não se compreende apenas textos, mas também se adquirem juízos e se reconhecem verdades. Mas que conhecimento é esse? Que verdade é essa? 5 VERDADE E MÉTODO Introdução
A doutrina da arte da compreensão e da interpretação havia se desenvolvido por dois caminhos diversos, o teológico e o filológico, a partir de um estímulo análogo: a hermenêutica teológica, como mostrou Dilthey muito bem, a partir da autodefesa da compreensão reformista da Bíblia contra o ataque dos teólogos tridentinos e seu apelo ao caráter indispensável da tradição; a hermenêutica filológica apareceu como instrumentaria para as tentativas humanísticas de redescobrir a literatura clássica. Num caso e noutro trata-se de redescobrimentos, e talvez de um redescobrimento de algo que não é totalmente desconhecido, mas de cujo sentido se havia tornado estranho e inacessível: A literatura clássica, enquanto material de formação, até estava sempre presente, mas havia sido amoldada por completo ao mundo cristão; também a Bíblia era, sem dúvida alguma, o livro sagrado que se lia ininterruptamente na igreja, segundo a convicção dos reformados, também por ela encoberta. Em ambas as tradições trata-se de linguagens estranhas, não a linguagem universal dos eruditos da época medieval latina, de maneira que o estudo da tradição, que se procura recuperar originariamente, torna necessário tanto aprender grego e hebreu como purificar o latim. A hermenêutica procura em ambos os terrenos, da tradição, tanto para a literatura como para a Bíblia pôr a descoberto o sentido original dos textos, através de um procedimento de correção quase artesanal, e ganha uma importância decisiva o fato de que em Lutero e Melanchthon se reúnam a tradição humanística e o impulso reformador. 949 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A formação de uma ciência da hermenêutica, como foi desenvolvida por Schleiermacher na confrontação como os filólogos RA. Wolf e F. Ast, e em continuação à hermenêutica teológica de Ersnesti, não representa, pois, um mero passo adiante na história da arte da própria compreensão. Em si mesma, essa história da compreensão tem estado acompanhada pela reflexão teórica desde os tempos da filologia antiga. Essas reflexões, porém, têm o caráter de uma “doutrina da arte”, isto é, pretendem servir à arte da compreensão do mesmo modo que a retórica serve à arte de falar e a poética à arte de compor e a seu julgamento.íesse sentido também a hermenêutica teológica da patrística e da Reforma foi uma doutrina da arte. Todavia, agora é a compreensão como tal que se converte em problema. A generalidade desse problema é um testemunho de que a compreensão se converteu em uma tarefa num sentido novo, e que com isso também a reflexão teórica recebe um novo sentido. Ela já não é uma doutrina da arte a serviço da práxis do filólogo ou do teólogo. É verdade que o próprio Schleiermacher acaba dando à sua hermenêutica o nome de doutrina da arte, porém, em um sentido sistemático completamente diferente. E busca alcançar a fundamentação teórica do procedimento comum a teólogos e filólogos, na medida em que, aquém de ambos os interesses, remonta a uma relação mais originária da compreensão do pensamento. 965 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Permaneceremos conscientes de que com isso se exige algo incomum à autocompreensão da ciência moderna. Procuramos, ao largo de nossas reflexões, tornar essa exigência mais plausível, ao ir mostrando-a como o resultado da convergência de toda uma série de problemas. De fato, a teoria da hermenêutica que chega até os nossos dias se desagregou em diferenciações que ela mesma não é capaz de sustentar. Isso se torna tanto mais patente aí, onde se procura formular uma teoria geral da interpretação. Se distinguirmos, por exemplo, entre interpretação cognitiva, normativa e re-produtiva, tal como o faz E. Betti em sua Allgemeine Theorie der Interpretation, montada sobre um admirável conhecimento e domínio do tema, as dificuldades aparecem no momento de inscrever os fenômenos no momento dessa divisão. Isso vale imediatamente para a interpretação científica. Se juntarmos a interpretação teológica e a jurídica e se dermos a ambas a função normativa, então teremos de lembrar que Schleiermacher relaciona inversamente, e de forma mais estreita, a interpretação teológica com a interpretação geral, que para ele é a histórico-filológica. De fato, a cisão entre as funções cognitiva e normativa atravessa, por inteiro, a hermenêutica teológica, e não chega a ser compensada distinguindo-se o conhecimento científico de uma ulterior aplicação edificante. É a mesma cisão que atravessa a interpretação jurídica, na medida em que o conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico concreto não são atos separados, mas um processo unitário. 1713 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas, segundo isso, tampouco a hermenêutica teológica poderia ainda arrogar-se um significado sistemático e autônomo. Schleiermacher a havia reconduzido conscientemente à hermenêutica geral, considerando-a simplesmente como uma aplicação especial desta. Mas, desde então, a teologia científica afirma sua capacidade de competir com as modernas ciências históricas, tendo por base que a interpretação da Sagrada Escritura não deve guiar-se por leis e nem por regras diversas das que presidem a compreensão de qualquer outra tradição. Nesse sentido não haveria porque existir uma hermenêutica especificamente teológica. 1775 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Hoje em dia parece uma tese paradoxal tentar renovar a velha verdade e a velha unidade das disciplinas hermenêuticas ao nível da ciência moderna. O passo que levou à moderna metodologia espiritual-científica supõe-se que era precisamente sua desvinculação com respeito a qualquer liame dogmático. A hermenêutica jurídica tinha se separado do conjunto de uma teoria da compreensão, porque tinha um objetivo dogmático, enquanto que, na direção inversa, a hermenêutica teológica se integrou na unidade do método histórico-filológico, precisamente ao se desfazer de sua vinculação dogmática. 1777 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Já assinalamos antes que a pertença à tradição é uma das condições da compreensão espiritual-científica. Agora podemos tirar a prova, examinando como aparece esse momento estrutural da compreensão no caso da hermenêutica teológica e da hermenêutica jurídica. Evidentemente não se trata de uma condição restritiva da compreensão, mas, antes, de uma das condições que a tornam possível. A pertença do intérprete ao seu texto é como a do ponto de vista na perspectiva que se dá num quadro. Tampouco se trata de que esse ponto de vista tenha de ser procurado como um determinado lugar para nele se colocar, mas que aquele que compreende não elege arbitrariamente um ponto de vista, mas que seu lugar lhe é dado com anterioridade. Assimfpara a possibilidade de uma hermenêutica jurídica é essencial que a lei vincule por igual todos os membros da comunidade jurídica. Quando não é este o caso, como no caso do absolutismo, onde a vontade do senhor absoluto está acima da lei, já não é possível hermenêutica alguma, “pois um senhor superior pode explicar suas próprias palavras, até contra as regras da interpretação comum”. Neste caso nem sequer se coloca a tarefa de interpretar a lei, de modo que o caso concreto se decida com justiça dentro do sentido jurídico da lei. A vontade do monarca, não sujeito à lei, pode sempre impor o que lhe parece justo, sem atender à lei, isto é, sem o esforço da interpretação. A tarefa de compreender e de interpretar só ocorre onde se põe algo de tal modo que, como tal, é vinculante e não abolível. 1799 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Vejamos agora o caso da hermenêutica teológica tal como [336] foi desenvolvido pela teologia protestante, na perspectiva de nosso problema. Aqui se pode apreciar claramente uma autêntica correspondência com a hermenêutica jurídica, já que também aqui a dogmática não reveste nenhum caráter de primazia. A verdadeira concreção da proclamação tem lugar na prédica, assim como a do ordenamento legal tem lugar no juízo. Mas aqui há uma importante diferença. Ao inverso do que ocorre no juízo jurídico, a prédica não é uma complementação produtiva do texto que interpreta. A mensagem da salvação não experimenta, em virtude da prédica, nenhum incremento de conteúdo que se possa comparar com a capacidade complementadora do direito que convém à sentença do juiz. Nem sequer se pode dizer que a mensagem de salvação só obtenha uma determinação precisa a partir da ideia do pregador. Ao contrário do que ocorre com o juiz, o pregador não fala ante a comunidade com autoridade dogmática. É verdade que na prédica se trata de interpretar uma verdade vigente. Mas esta verdade é anúncio, e o que se consegue não depende da ideia do pregador, mas da força da própria palavra, que pode chamar à conversão inclusive através de uma má prédica. O anúncio não pode ser separado de sua realização. Toda fixação dogmática da doutrina pura é secundária. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus e isso significa que a Escritura mantém uma primazia absoluta face à doutrina dos que a interpretam. 1803 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
É claro que poder-se-ia tentar escapar dessa consequência, dizendo que basta saber que os textos religiosos só devem ser compreendidos como textos que respondem à questão a respeito de Deus. Não exigir-se-ia do intérprete nenhuma motivação religiosa. Mas qual seria a opinião de um marxista, que considera que toda afirmação religiosa só é compreendida, quando é revelada como jogo de interesses das relações de domínio social? Evidentemente o marxista não aceitará o pressuposto de que a existência humana como tal é movida pela questão a respeito de Deus. Esse pressuposto só vale para aquele que já reconheceu nisso a alternativa da crença ou não-crença face ao Deus verdadeiro. Por isso tenho a impressão de que o sentido hermenêutico da pré-compreensão teológica é, ele próprio, teológico. A própria história da hermenêutica mostra como o questionamento de um texto está determinado por uma pré-compreensão muito concreta. A hermenêutica moderna, como disciplina protestante, tem, enquanto arte da interpretação da Escritura, uma relação polêmica para com a tradição dogmática da igreja católica e sua doutrina da justificação pelas obras. Tem pois, ela própria, um sentido dogmático e confessional. Isso não quer dizer que uma hermenêutica teológica desse tipo parta [338] de preconceitos dogmáticos, de tal modo que somente lê no texto o que ela própria aí colocou. Antes, ela própria se põe realmente em jogo. Mas o que pressupõe é que a palavra da Escritura atinge verdadeiramente, e que somente a compreende aquele a quem a sua verdade afeta, quer na fé, quer na dúvida. Nesse sentido, a aplicação é a primeira. 1811 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas, se reconhecemos isso, então a melhor maneira de [344] levar a filologia à sua verdadeira dignidade e a uma adequada compreensão de si mesma seria libertando-a da historiografia. Só que isso me parece só meia verdade. Temos de nos questionar, antes, se também a imagem do comportamento histórico, que foi orientadora aqui, não: estaria deformada. Talvez não somente o filólogo, mas também o historiador, deva orientar seu comportamento, menos segundo o ideal metodológico das ciências da natureza, que segundo o modelo que nos oferecem a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica. Pode ser certo que o tratamento que o historiador confere aos textos seja especificamente diverso da vinculação original do filólogo com seus textos. Pode ser certo também que o historiador procure ir até atrás de seus textos com o fim de obrigá-los a uma conclusão que eles não querem dar e que por si mesmos tampouco poderiam fazê-lo. Se se mede segundo o padrão que apresenta um só texto, as coisas parecem ser efetivamente assim. O historiador se comporta com os seus textos como o juiz de instrução no interrogatório das testemunhas. Entretanto, a mera constatação de fatos que este consegue extrair a partir das atitudes preconcebidas de uma testemunha não esgota a tarefa do historiador; esta só chega ao seu final quando se compreendeu o significado dessas constatações. Com os testemunhos históricos ocorre algo parecido ao que se passa com as declarações das testemunhas num julgamento. O fato de que se use o mesmo não é uma casualidade. Em ambos os casos o testemunho é um meio para estabelecer fatos. Todavia, tampouco estes são o verdadeiro objeto, mas unicamente o material para a verdadeira tarefa: no juiz, encontrar o direito; no historiador, determinar o significado histórico de um acontecimento no conjunto de sua autoconsciência histórica. 1841 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Isso vale também para conotações tardias do sentido da palavra como as que encontramos na recente hermenêutica teológica e jurídica: São uma espécie de “arte” ou pelo menos servem como recurso para essa “arte”, comportando sempre uma competência normativa, não só a de que os intérpretes compreendam sua arte, mas de que expressem algo normativo: a lei divina ou humana. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A hermenêutica recebeu um novo impulso com a Reforma, quando esta apregoava a volta à literalidade da Sagrada Escritura e os reformadores polemizaram contra a tradição da doutrina eclesiástica e o tratamento que esta dava aos textos com os métodos dos vários sentidos da Escritura. Recusava-se especialmente o método alegórico e restringiu-se a compreensão alegórica aos casos em que o sentido figurado a justificava, como por exemplo nos discursos de Jesus. Junto com isso desenvolveu-se uma nova consciência de método que se alardeava ser objetiva, ligada ao objeto e livre de todo arbítrio subjetivo. No entanto, a motivação principal era de caráter normativo: na hermenêutica teológica assim como na hermenêutica humanística da Idade Moderna, o que importa é a correta interpretação daqueles textos que contêm o que realmente é decisivo, e que se deve recuperar. Nesse sentido, a motivação do esforço hermenêutico não é tanto, como mais tarde em [95] Schleiermacher, a dificuldade de compreender uma tradição e os mal-entendidos a que esta pode dar lugar, mas antes buscar trazê-la a uma nova compreensão, rompendo ou transformando uma tradição vigente pela descoberta de suas origens esquecidas. Deve-se resgatar e renovar seu sentido originário, encoberto e desfigurado. A hermenêutica, voltando às fontes originárias, busca alcançar uma nova compreensão daquilo que se havia corrompido por distorção, deslocamento ou mau uso: A Bíblia, pela tradição magisterial da Igreja; os clássicos, pelo latim bárbaro da escolástica; o direito romano, pela jurisprudência regionalista etc. O novo esforço deveria não apenas ser no sentido de buscar compreender de modo mais correto, mas também de recuperar a vigência do paradigmático, no mesmo sentido como se fosse o anúncio de uma mensagem divina, a interpretação de um oráculo ou de uma lei preceptiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Essas poucas regras gerais da hermenêutica, apresentadas preliminarmente nessas “hermenêuticas”, apoiadas na antiga retórica, por certo não justificam um interesse filosófico por esses escritos. Não obstante a profunda problemática filosófica, que viria a aflorar plenamente só em nosso século, já se reflete na história inicial da hermenêutica protestante. É certo que o princípio luterano da sacra scriptura sui ipsius interpres contém uma clara recusa da tradição dogmática da Igreja Romana. Mas, uma vez que essa frase não quer defender uma teoria ingênua da inspiração e sobretudo que a teologia de Wittenberg, seguindo a tradução da Bíblia do grande intelectual Lutero, lançava mão de um rico aparato filológico e exegético para justificar o próprio trabalho, a problemática de toda interpretação teve de assumir também o mote da sui ipsius interpres. O paradoxo desse princípio era por demais evidente e não houve como evitar que os defensores da tradição magisterial da Igreja católica, o Concílio de Trento e a literatura contra-reformista descobrissem a debilidade teórica do mesmo. Não havia como negar que também a exegese bíblica protestante não trabalhava sem diretrizes dogmáticas, em parte resumidas sistematicamente nos “artigos de fé” e, em parte, sugeridas na escolha dos hei praecipui. A crítica de Richard Simon a Flacius é para nós hoje um documento decisivo para conhecer a problemática hermenêutica da “compreensão prévia”, o que torna patente a existência de implicações ontológicas que só foram explicitadas pela filosofia de nosso século. Por fim e ainda no contexto da recusa à doutrina de inspiração verbal, também a hermenêutica teológica dos primórdios do Iluminismo busca estabelecer regras gerais para a compreensão. Especialmente a crítica histórica da Bíblia encontra então sua primeira legitimação. O tratado teológico-político de Espinosa foi o acontecimento principal. A sua crítica ao conceito de milagre, por exemplo, legitimava-se no postulado da razão de se reconhecer somente o que é racional, isto é, o que é possível. Não era só [97] crítica, continha também uma virada positiva, à medida que exigia uma explicação natural das passagens da Escritura contrárias à razão. Isso acarretou uma virada em direção ao que é histórico, ou seja, uma virada da presumida (e incompreensível) história dos milagres em direção à fé (compreensível) nos milagres. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A hermenêutica teológica característica da época inaugurada com a fundamentação geral de Schleiermacher acabou igualmente enredada em suas aporias dogmáticas. Já o próprio editor do curso de hermenêutica de Schleiermacher, Lucke, sublinhou de modo decisivo seu momento teológico. Toda a dogmática teológica do século XIX retornou à problemática da hermenêutica dos primórdios do protestantismo, dada com a regula fidei. O postulado histórico da teologia liberal, que criticava toda dogmática, enfrentou-se com ela, resultando numa crescente indiferença com relação à tarefa específica da teologia. Por isso, na época da teologia liberal, não houve fundamentalmente nenhuma problemática hermenêutica especificamente teológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
A função que exerce o mistério da linguagem no pensamento tardio de Heidegger ensina de maneira suficiente que o aprofundamento na historicidade da autocompreensão deslocou de sua posição central não apenas o conceito de consciência, mas também o [126] conceito de mesmidade (Selbstheit). Pois o que pode ser mais desprovido de consciência e de mesmidade do que o âmbito misterioso da linguagem no qual nos encontramos e que faz vir à palavra aquilo que é, de tal forma que o ser “se temporaliza”? O que assim vale para o mistério da linguagem, vale igualmente para o conceito de compreensão. Também esse não deve ser concebido como uma simples atividade da consciência compreensiva, mas como um modo de acontecer do próprio ser. Dito de forma puramente formal, o primado que possuem a linguagem e a compreensão no pensamento de Heidegger remete para o caráter prévio da “relação” frente aos seus componentes relacionais: o eu que compreende e aquilo que é compreendido. Também parece-me possível — e eu próprio realizei esse experimento em Verdade e método I — confirmar as explanações de Heidegger sobre “o ser” e a problemática desenvolvida a partir da experiência da “virada” na própria consciência hermenêutica. A relação de compreensão e compreendido tem a primazia frente ao compreender e o compreendido, do mesmo modo que a relação entre quem fala e o que se fala remete para a realização de um movimento que não tem sua base fixa em nenhum dos membros da relação. Compreender não é autocompreensão, como o idealismo considera certo e óbvio. O sentido de compreender, todavia, também não se esgota com a crítica revolucionária ao idealismo que pensa o conceito de autocomprensão como algo que sucede com o si-mesmo (Selbst) e pelo qual este chega a ser ele próprio. Considero que, no compreender, se dá um momento de desprendimento de si mesmo que merece a atenção também da hermenêutica teológica e que deveria ser investigado sob o fio condutor da estrutura do jogo. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.
É verdade, porém, que na época da nova ciência e do racionalismo, desenvolvido durante os séculos XVII e XVIII, o vínculo entre retórica e hermenêutica se afrouxa. H. Jaeger chamou a atenção ultimamente para o papel que desempenhou Dannhauer com sua ideia do boni interpretis. Esse autor parece ter sido o primeiro a utilizar a palavra “hermenêutica” em sentido terminológico, em estreita conexão com o escrito correspondente do Organon de Aristóteles. Isso mostra que a intenção de Dannhauer é continuar e acabar o que Aristóteles havia iniciado com seu escrito Peri hermeneias. Como ele mesmo afirmou: “os limites do Organon de Aristóteles se ampliam com a anexação de uma nova cidade”. A sua orientação é, pois, a lógica, à qual ele quer justapor como uma parte a mais, [288] como outra ciência filosófica, a ciência da interpretação, e isto de um modo tão universal que ela preceda a hermenêutica teológica e a hermenêutica jurídica, como a lógica e a gramática precedem toda aplicação específica. Dannhauer deixa de lado o que ele chama de exposição retórica, ou seja, o uso e a utilidade que se busca com um texto e que se costuma chamar de accomodatio textus, para tentar alcançar pela sua hermenêutica uma infalibilidade humana e racional equiparável à lógica, na compreensão geral dos textos. É essa tendência a uma espécie de nova lógica o que a leva a um paralelismo com a lógica analítica e a uma distinção explícita desta. Ambas as partes da lógica, a analítica e a hermenêutica, se relacionam com a verdade e ambas ensinam a refutar o erro. Mas diferem no fato de que a hermenêutica ensina a investigar o verdadeiro sentido de uma frase errônea, enquanto que a analítica deriva a verdade da conclusão de princípios verdadeiros. Aquela se refere, pois, unicamente ao “sentido” das frases, não à retidão objetiva. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Parece que lhe causa certa satisfação que a hermenêutica careça de tradição. Em todo caso, só pode referir-se em sentido diverso a Dilthey e à problemática de uma hermenêutica filosófica desenvolvida a partir de Heidegger. Dilthey buscou mostrar a tradição da hermenêutica teológica, onde se encontram Schleiermacher e, com ele, o método histórico da era pós-romântica. A pré-história pré-romântica, com efeito, é mais pré-história do que história. A “hermenêutica recente” no sentido de Jaeger só pode nascer pela ampliação da teoria da interpretação teológica e filológica à ideia de uma metodologia histórica geral. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
A virada da teoria hermenêutica iniciada com a crítica de Heidegger ao idealismo da consciência tem, por outro lado, uma história muito antiga. Encontramos aqui a conexão do problema hermenêutico com a tradição da filosofia prática desde Aristóteles, defendida por J. Ritter e por eu mesmo. Essa tradição não é tão fácil de se liquidar, e não consigo compreender por que Jaeger se enoja da “interpretação” e a “compreensão”. São, sobretudo, os procedimentos analíticos os que nada têm a ver com qualquer tipo de aventura irracionalista. Ajustam-se muito mais à tradição clássica da retórica e, segundo o artigo de Jaeger, que tem para mim o mérito de me haver incitado ao estudo de Dannhauer, sei que também a lógica aristotélica e analítica, no sentido de methodus resolutiva, constituiu uma outra, possível orientação para a formação da teoria hermenêutica. O certo é que o douto trabalho de Jaeger só me serviu para esse “também”. Não sei por que o aristotelismo lógico de Dannhauer não deva ocupar um lugar de destaque dentro da res publica litteraria, frente a Flacius e à hermenêutica teológica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
E todo o culto cristão, desde que se tornou prioritário pela Reforma, de modo ainda mais decisivo que na tradição cristã anterior, se resume na profissão de fé, no fortalecimento e no chamado à fé. A fé baseia-se tão-somente na reta interpretação da mensagem cristã. Por isso, a tarefa específica da hermenêutica teológica irá tornar-se evidente pelo fato de a interpretação da Sagrada Escritura, em virtude da pregação, aparecer agora como o centro do culto divino, nas igrejas cristãs. Não serve tanto para uma interpretação científica da Sagrada Escritura quanto para a práxis da pregação, pela qual a mensagem salvífica deve atingir o indivíduo de modo que esse se sinta interpelado e nela implicado. Por isso, a aplicação não é uma mera “aplicação” da compreensão, mas seu verdadeiro núcleo. Desse modo, a problemática da aplicação, que alcançou seu ponto alto no pietismo, não representa apenas um momento essencial na hermenêutica dos textos religiosos, mas mostra a significação filosófica do problema hermenêutico em seu conjunto. A aplicação é algo mais que um mero recurso metodológico. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a “manifestações vitais fixadas por escrito” (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam “interpretação” e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
O diálogo sobre a hermenêutica estendeu-se sobretudo em quatro áreas da ciência: a hermenêutica jurídica, a hermenêutica teológica, a teoria da literatura e a lógica das ciências sociais. Dentre uma literatura que em seu conjunto torna-se cada vez mais inabarcável, gostaria de destacar apenas alguns trabalhos que têm referência expressa com meus próprios trabalhos. E o caso da hermenêutica jurídica: VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.