A doutrina da arte da compreensão e da interpretação havia se desenvolvido por dois caminhos diversos, o teológico e o filológico, a partir de um estímulo análogo: a hermenêutica teológica, como mostrou Dilthey muito bem, a partir da autodefesa da compreensão reformista da Bíblia contra o ataque dos teólogos tridentinos e seu apelo ao caráter indispensável da tradição; a hermenêutica filológica apareceu como instrumentaria para as tentativas humanísticas de redescobrir a literatura clássica. Num caso e noutro trata-se de redescobrimentos, e talvez de um redescobrimento de algo que não é totalmente desconhecido, mas de cujo sentido se havia tornado estranho e inacessível: A literatura clássica, enquanto material de formação, até estava sempre presente, mas havia sido amoldada por completo ao mundo cristão; também a Bíblia era, sem dúvida alguma, o livro sagrado que se lia ininterruptamente na igreja, segundo a convicção dos reformados, também por ela encoberta. Em ambas as tradições trata-se de linguagens estranhas, não a linguagem universal dos eruditos da época medieval latina, de maneira que o estudo da tradição, que se procura recuperar originariamente, torna necessário tanto aprender grego e hebreu como purificar o latim. A hermenêutica procura em ambos os terrenos, da tradição, tanto para a literatura como para a Bíblia pôr a descoberto o sentido original dos textos, através de um procedimento de correção quase artesanal, e ganha uma importância decisiva o fato de que em Lutero e Melanchthon se reúnam a tradição humanística e o impulso reformador. 949 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Aos olhos de Dilthey, a hermenêutica não chega, pois, à sua verdadeira essência, a não ser quando ela transforma sua posição, a serviço de uma tarefa dogmática — que para o teólogo cristão é a correta proclamação do Evangelho — na função de um organon histórico. E se, pelo contrário, o ideal do Aufklärung histórico, a que pertence Dilthey, tivesse de se revelar como uma ilusão, então toda a pré-história da hermenêutica, esboçada por ele, teria de adquirir, também, um significado totalmente diferente; a virada em direção à consciência histórica já não seria sua liberação das presilhas do dogma, mas uma mudança de sua essência. E exatamente o mesmo vale para a hermenêutica filológica. Pois a ars critica da filologia teve, em princípio, sua pressuposição no caráter modelar irrefletido da antiguidade clássica, de cuja transmissão cuidava. Também ela, portanto, terá que se transformar em sua essência, se entre a antiguidade e o próprio presente já não existe nenhuma relação inequívoca de modelo e seguimento. Um índice disso é a quereile des anciens et des modernes, que cunha o tema geral para toda época compreendida entre o classicismo francês e o alemão. Este seria também o tema em torno do qual se desenvolveria a reflexão histórica, que acabaria dissolvendo a pretensão normativa da antiguidade clássica. Nos dois caminhos, portanto, da filologia e da teologia, dá-se o mesmo processo, que acabou levando à concepção de uma hermenêutica universal, para a qual o caráter de modelo especial já não representa uma pressuposição para a tarefa hermenêutica. (182) 963 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Dessa maneira, a hermenêutica romântica e seu pano de fundo, a metafísica panteísta da individualidade foram determinantes para a reflexão teórica da investigação da história no século XIX. Isso foi decisivo para o destino das ciências do espírito e para a concepção do mundo da escola histórica. Ainda veremos que a filosofia hegeliana da história universal, contra a qual protesta a escola histórica, compreendeu o significado da história para o ser do espírito e para o conhecimento da verdade com uma profundidade incomparavelmente maior que aqueles grandes historiadores que não quiseram reconhecer sua dependência com respeito a ele. O conceito da individualidade de Schleiermacher, que caminhava lado a lado com os interesses da teologia, da estética e da filologia, não somente era uma instância crítica contra a construção apriorística da filosofia da história, como oferecia às ciências históricas, ao mesmo tempo, uma orientação metodológica que as remetia, num grau não inferior às ciências da natureza, à investigação, isto é, à única base que sustenta uma experiência progressiva. Dessa maneira, a resistência contra a filosofia da história universal acabou empurrando-a para o elemento da filologia. Seu orgulho estava em que tal metodologia não pensava o nexo da história universal teleologicamente, a partir de um estado final, como era o (203) estilo do Aufklärung pré-romântico ou pós-romântico, estado que seria igualmente o fim da história, o dia final da história universal. Pelo contrário, para ela não há nenhum final, e nenhum fora, além da história. A compreensão do decurso total da história universal só pode ser obtido a partir da própria tradição histórica. E esta é justamente a pretensão da hermenêutica filológica, ou seja, que o sentido de um texto pode ser compreendido por si próprio. Por consequência, o fundamento da historiografia é a hermenêutica. 1082 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
A história da hermenêutica nos ensina que junto à hermenêutica filológica existiram também uma teológica e outra jurídica, e que somente as três juntas comportam o conceito pleno de hermenêutica. É uma consequência do desenvolvimento da consciência histórica nos séculos XVIII e XIX o fato de que a hermenêutica filológica e a historiografia se desfizessem de seu vínculo com as outras disciplinas hermenêuticas e se estabelecesse automaticamente como teoria metodológica da investigação espiritual-científica. 1707 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A estreita pertença que unia na sua origem a hermenêutica filológica com a jurídica repousava sobre o reconhecimento da aplicação como momento integrante de toda compreensão. Tanto para a hermenêutica jurídica como para a teológica, é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto — da lei ou da revelação — por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação, no juízo ou na prédica, por outro. Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em sua validez jurídica. Da mesma maneira, o texto de uma mensagem religiosa não deseja ser compreendido como um mero documento histórico, mas ele deve ser entendido de forma a poder exercer seu efeito redentor. Em ambos os casos isso implica que o texto, lei ou mensagem de salvação, se se quiser compreendê-lo adequadamente, isto é, de acordo com as pretensões que o mesmo apresenta, tem de ser compreendido em cada instante, isto é, em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui, compreender é sempre também aplicar. 1709 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Ao contrário, a formulação da hermenêutica filológica, segundo a qual temos de compreender um autor melhor do que ele próprio se compreendeu, como já demonstrei, provém da estética do gênio; originalmente, porém, não passa de uma simples formulação do ideal do Iluminismo buscando explicitar ideias confusas através da análise conceitual. Sua aplicação à consciência histórica é secundária e dá asas à falsa aparência de uma superioridade insuperável do intérprete atual, o que Strauss critica com razão. Quando Strauss argumenta, porém, que mesmo para compreender melhor temos que compreender primeiramente um autor como ele próprio se compreendeu, creio que está subestimando as dificuldades de toda compreensão, porque ignora aquilo que se pode chamar de dialética da proposição. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.