Gadamer (VM): gênio

O que Kant de sua parte, através de sua crítica do juízo estético, legitimou e queria legitimar era a universalidade subjetiva do gosto estético, na qual não se encontra mais nenhum conhecimento do objeto, e, no âmbito das “belas artes”, a superioridade do GÊNIO sobre toda estética da regra. É assim que a hermenêutica romântica e a historiografia, com relação à sua auto-evidência, encontram um ponto de vinculação somente no conceito de GÊNIO, o qual alcança validade através da estética de Kant. Esse foi justamente o outro lado da atuação de Kant. A justificação transcendental do juízo estético alicerça a autonomia da consciência estética, da qual viria a derivar-se também a legitimação da consciência histórica. A subjetivação radical, que incluiu a refundamentação da estética de Kant, marcou verdadeiramente uma época. Ao desacreditar qualquer outro conhecimento teórico que não fosse o da ciência da natureza, forçou a auto-determinação das ciências do espírito a apoiar-se na doutrina de método das ciências da natureza. Mas ao mesmo tempo facilitou-lhes esse apoio, ao colocar à sua disposição, como um dispositivo secundário, o “momento artístico”, o “sentimento” e a “empatia”. A característica das ciências do espírito de Helmholtz, de que nos ocupamos acima, é, nos dois sentidos, um bom exemplo da atuação de Kant. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

À sua intenção transcendental corresponde, então, o fato de que a “Analítica do gosto” pode extrair exemplos de prazer estético, à vontade, das belezas artísticas naturais, do que seja decorativo, bem como da representação artística. O gênero de existência dos objetos, cuja representação agrada, não tem importância para a natureza do julgamento estético. A “crítica do juízo estético” não pretende ser uma filosofia da arte — por mais que a arte seja um objeto desse juízo. O conceito de “juízo de gosto estético puro” é uma abstração metódica, que está de viés para a diferença entre a natureza e a arte. Por isso, importa reconduzir ao seu padrão as interpretações artístico-filosóficas da estética de Kant, através de um exame mais exato, interpretações que se vinculam especialmente ao conceito de GÊNIO. Para essa finalidade, consideramos a notável e muito controvertida doutrina de Kant sobre a beleza livre e dependente. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

A diferença entre belezas naturais e belezas artísticas, como mais tarde ele mesmo discute (parágrafo 48), não tem aqui significado algum. Mas quando, entre os exemplos de beleza livre, cita, além das flores, também os tapetes de arabesco e a música (”sem tema” ou mesmo “sem texto”), então vemos indiretamente circunscrito tudo o que representa um “objeto sob um determinado conceito”, e que por isso passa a ser uma beleza condicional e não-livre: todo o reino da poesia, das artes pictoriais e da arte da construção, da mesma forma que todas as coisas da natureza, que não vemos como tais somente por sua beleza, como as flores ornamentais. Em todos esses casos o juízo de gosto encontra-se turvado e restrito. O reconhecimento da arte parece impossível a partir da fundamentação da estética no “juízo de gosto puro” — a não ser que o padrão do gosto seja rebaixado a uma mera pré-condição. Pode-se compreender a introdução do conceito de GÊNIO nos trechos mais tardios da “Crítica do juízo”, nesse sentido. Mas isso viria a significar um deslocamento posterior. De início nada se fala disso. Aqui (no parágrafo 16), ao que parece, o ponto de vista do gosto torna-se tampouco uma mera pré-condição, que reivindica, antes, a plenitude da essência do juízo estético e a sua proteção contra a limitação feita por meio dos padrões “intelectuais”. E quando também Kant percebe que pode ser o mesmo objeto que está sendo julgado sob os dois pontos de vista diversos da beleza livre e dependente, o juiz ideal do gosto parece ser aquele que julga segundo “o que ele tem diante dos sentidos” e não segundo “o que tem diante do pensamento”. A verdadeira beleza seria a das flores e dos ornamentos que, no nosso mundo dominado pelos fins, se apresentam de antemão e a partir de si como belezas e que por isso não se torna necessário que, de início, haja uma abstração consciente de um conceito ou finalidade. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

A definição que Kant deu à arte, como a “bela representação de uma coisa” faz jus à fama, na medida em que até mesmo o feio, na representação através da arte, é belo. Não obstante, a genuína natureza da arte ao se realçar em contraste com o belo natural, saiu-se mal. Se o conceito de uma coisa só fosse considerado como belo, passaria a ser de novo apenas uma questão de uma representação “de cunho acadêmico” e preencheria apenas a condição imprescindível de toda beleza. A arte é justamente, também segundo Kant, mais do que uma “bela representação de uma coisa”: Ela é representação de ideias estéticas, isto é, de algo que vai além de todo conceito. O conceito do GÊNIO pretende formular essa concepção de Kant. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

As linhas mestras de seu raciocínio encontram-se, porém, livres de tais lacunas e mostram uma impressionante coerência sequencial que culmina na função do conceito de GÊNIO para a fundamentação da arte. Mesmo sem entrar numa interpretação mais acurada dessa “capacidade para a representação de ideias estéticas”, pode-se indicar que Kant não se vê aqui desviado de seu questionamento filosófico transcendental, nem forçado a tomar o caminho falso de uma psicologia do criar artístico. A irracionalidade do GÊNIO, antes, torna apreensível um momento da criação produtiva de regras, que se mostra da mesma forma tanto a quem cria como a quem desfruta: Face à obra da arte bela, não há nenhuma possibilidade de apossar-se de seu conteúdo, a não ser sob a forma única da obra e sob o mistério de sua impressão, que nenhuma linguagem jamais poderá alcançar inteiramente. O conceito do GÊNIO coincide, pois, com o que Kant considera o decisivo do gosto estético, ou seja, o jogo aliviado das forças do ânimo, a ampliação do sentimento vital que se gera da congruência da forma de imaginação e entendimento e que convida ao repouso ante o belo. O GÊNIO é um modo de manifestação desse espírito vivificador. Pois face à rígida regularidade da mestria escolar, o GÊNIO mostra o livre impulso da invenção e, com isso, uma originalidade criadora de modelos. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Em face dessa situação, apresenta-se a pergunta pelo modo como Kant determina a mútua relação entre o gosto e o GÊNIO. Kant conserva sua primazia principiai para o gosto, na medida em que também as obras das belas artes, que são artes de um GÊNIO, encontram-se sob o ponto de vista condutor da beleza. Pode-se ter dificuldade em citar, em contraste com a inventividade do GÊNIO, o aprimoramento posterior, que se torna um imperativo do gosto — mas essa é a disciplina necessária, que se pode atribuir ao GÊNIO. Até aí, em casos de litigio, segundo a opinião de Kant, o gosto continua merecendo a primazia. Mas essa questão não tem significação principiai. Porque, basicamente, o gosto encontrase no mesmo nível que o GÊNIO. A arte do GÊNIO reside em tornar transmissível o jogo livre das forças do conhecimento. É o que produzem as ideias estéticas, que ele inventa. A transmissibilidade do estado de ânimo, do prazer, caracteriza também o prazer estético do gosto. E uma capacidade do julgamento, portanto, um gosto de reflexão, mas aquilo sobre o que ele reflete é somente aquele estado de ânimo do avivamento das forças do conhecimento, que se encontra tanto no belo natural como no belo artístico. A significação sistemática do conceito do GÊNIO, ao contrário, está restrita ao caso especial da beleza artística, mas a significação do conceito do gosto é universal. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Que Kant ponha o conceito do GÊNIO totalmente a serviço de seu questionamento transcendental, e de forma alguma o derive da psicologia empírica, percebe-se com toda nitidez na sua restrição do conceito do GÊNIO à criação artística. Quando ele sonega essa designação aos grandes inventores e descobridores no âmbito da ciência e da técnica, isso se torna, visto empírico-psicológicamente, inteiramente injustificado. Por toda parte onde a gente tem de “chegar a alguma coisa” que não se pode descobrir somente através do aprendizado e do trabalho metódico; por toda parte, portanto, onde há inventio, onde se há de agradecer à inspiração e não ao cálculo metódico o que passa a importar é o ingenium, isto é, o GÊNIO. Mesmo assim, a intenção de Kant é correta: somente a obra de arte, segundo o seu sentido, encontra-se determinada a ser criada pelo GÊNIO e por ninguém mais. Somente no caso do artista é que o seu “invento”, a obra, de acordo com o seu próprio ser, continua vinculada ao espírito, o espírito que cria, como aquele que julga e usufrui. Somente estas invenções não se deixam imitar, e por isso — do ponto de vista transcendental — é correto quando Kant somente aqui fala do GÊNIO e define as belas artes, como a arte do GÊNIO. Todos os demais desempenhos (Leistungen) e invenções geniais, por maior que seja a genialidade da invenção, não são, em sua essência, determinados por ela. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Uma coisa é certa: para Kant, o conceito de GÊNIO significa realmente apenas uma complementação daquilo que o faz interessar-se pelo juízo estético, “na intenção transcendental”. Não se deve esquecer, que a crítica do juízo, na sua segunda parte, tem a ver absolutamente só com a natureza (e seu julgamento segundo conceitos de finalidade), não tendo nada a ver com a arte. Para a intenção sistemática do todo, a aplicação do juízo estético com relação ao belo e ao sublime na natureza é mais importante do que a fundamentação transcendental da arte. A “adequação da natureza à nossa capacidade de conhecimento”, que, como vimos, só pode ocorrer no belo natural (e não nas belas artes), tem, como princípio transcendental do juízo estético, a importância de preparar igualmente o entendimento para aplicar o conceito de uma finalidade à natureza. Desse ponto de vista, a crítica do gosto, isto é, a estética, é uma preparação para a teleologia. Esta, cuja reivindicação constitutiva para o conhecimento da natureza foi destruída pela crítica da razão pura, no sentido de legitimar um princípio da capacidade de julgamento, é a intenção filosófica de Kant, que só a partir daí conduz a uma conclusão sistemática o todo de sua filosofia. O juízo lança a ponte entre entendimento e razão. O inteligível, a que faz alusão o gosto, o substrato supra-sensorial da humanidade, contém ao mesmo tempo a intermediação entre os conceitos de natureza e os conceitos de liberdade. Essa é a importância sistemática que tem para Kant o problema da beleza natural: Ela fundamenta a posição central da teleologia. Só ela, não a arte, pode ser de proveito na legitimação do conceito de finalidade com relação para o julgamento da natureza. Já a partir desse fundamento sistemático o juízo de gosto “puro” torna-se a base imprescindível da terceira crítica. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

O que o conceito do GÊNIO produz é pois apenas comparar esteticamente os produtos das belas artes com a beleza da natureza. Também a arte é vista esteticamente, isto é, também ela é um caso para o juízo reflexo. O que é trazido à tona intencionalmente — e, nesse sentido, plenamente adequado ao fim — não deve ser relacionado a um conceito, mas pretende agradar, com relação ao mero julgamento — tal qual o belo natural. “As belas artes são arte do GÊNIO”, não significa nada mais do que o seguinte: também para o belo, não existe na arte nenhum outro princípio de julgamento, nenhuma medida de conceito ou de conhecimento, a não ser o da conveniência (Zweckmässigkeit) para o sentimento da liberdade no jogo de nossa capacidade de conhecimento. O belo na natureza ou na arte possui um e mesmo princípio apriorístico, que reside totalmente na subjetividade. A autonomia do juízo estético não fundamenta, de forma alguma, nenhum campo de validade autônoma para belos objetos. A reflexão transcendental de Kant sobre um a priori do juízo, justifica a reivindicação do julgamento estético, mas, no fundo, não admite uma estética filosófica no sentido de uma filosofia da arte (o próprio Kant diz que aqui a crítica não corresponde a nenhuma doutrina ou metafísica). VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

A fundamentação do juízo estético sobre um a priori da subjetividade estava fadado a ganhar uma significação totalmente nova quando se modificou o sentido da reflexão transcendental-filosófica nos sucessores de Kant. Quando deixa de existir o pano de fundo da metafísica, que fundamentou a preferência pelo belo natural, em Kant, e voltou a vincular o conceito de GÊNIO à natureza, apresenta-se, em um novo sentido, o problema da arte. Já a maneira pela qual Schiller assimilou a Crítica do Juízo de Kant e, tendo em vista o seu ideal de uma “educação estética”, aplicou todo o ímpeto de seu temperamento moral-pedagógico, fez que se elevasse a um primeiro plano o ponto de vista da arte em contraste com o ponto de vista kantiano do gosto e do juízo. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

É, de fato, elucidativo que o conceito do gosto perca o seu significado quando o fenômeno da arte passa a ocupar o primeiro plano. Em face da obra de arte, o ponto de vista do gosto é secundário. A sensibilidade de escolha, que o perfaz, possui, em contraste com a originalidade da obra de arte genial, uma função muitas vezes niveladora. O gosto evita o que é incomum e monstruoso. Ele é um sentido superficial, não se mete com o que há de original numa produção artística. Já a ascensão do conceito do GÊNIO no século XVIII mostra uma ponta polêmica contra o conceito do gosto. Ele era dirigido contra a estética do classicismo, na medida em que se reivindicava ao ideal dos clássicos franceses o reconhecimento de Shakespeare (Lessing!). Kant é, nesse particular, antiquado e assume uma posição medianeira, quando ele ficou apegado, em sua intenção transcendental, ao conceito de gosto que, sob o signo de tempestade e impulso (Sturm und Drang), não somente foi repudiado com élan, mas também foi ferido de maneira tempestuosa. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Assim vemos que, segundo a questão, a ideia de um gosto consumado, discutida por Kant, seria melhor definida através do conceito do GÊNIO. Naturalmente seria desagradável aplicar a ideia do gosto consumado, como tal no campo do belo natural. Para a arte da jardinagem, até pode, eventualmente, ser aceito. Mas, de uma forma consequente, Kant cunhou a arte da jardinagem como o belo artístico. No entanto, em face da beleza da natureza, p. ex., da beleza de uma paisagem, a ideia de um gosto consumado está bastante fora do lugar. Será que ele consiste em dignificar segundo o mérito tudo que é belo na natureza? Pode haver ali uma seleção? Existe ali uma ordem hierárquica? Será que uma paisagem ensolarada é mais bela que uma mergulhada em chuva? Afinal, existe na natureza o feio? Ou será que há somente para variações de ânimo, variações de simpatia (Ansprechendes), para gostos diferentes, agrados diferentes? Kant pode ter razão quando considera de importância moral indagar se a natureza pode, seja como for, agradar a alguém. Mas pode-se diante dela diferenciar, com sentido, um bom e um mau gosto? Onde uma tal diferenciação não deixa absolutamente nenhuma dúvida, em face da arte e do artístico, aí, como vimos, o gosto é, ao contrário, apenas uma condição restritiva do belo e não contém o seu genuíno princípio. Assim, a ideia de um gosto consumado, ante a natureza como ante a arte, ganha algo de duvidoso. A gente faz violência ao conceito do gosto quando não se assume nele a mutabilidade do gosto. Se há algo que é um testemunho da mutabilidade de todas as coisas humanas e da relatividade de todos os valores humanos, esse algo é o gosto. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

A fundamentação kantiana da estética sobre o conceito de gosto não pôde, a partir disso, satisfazer plenamente. É bem mais próximo o conceito de GÊNIO, que Kant desenvolve como um princípio transcendental para o belo artístico, do que utilizar o princípio estético universal. Preenche bem melhor do que o conceito do gosto a exigência de se manter invariável ante a mudança dos tempos. O milagre da arte, a consumação enigmática, que aderem às criações bem sucedidas da arte, são visíveis ao longo de todos os tempos. Parece possível subordinar o conceito do gosto à fundamentação transcendental da arte e entender sob gosto o sentido seguro para o que é genial da arte. A frase de Kant: “As belas artes são arte do GÊNIO”, transforma-se então, por excelência, num princípio transcendental da estética. Estética é possível, ao cabo, apenas como filosofia da arte. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Para o desenvolvimento da mais recente estética torna-se decisivo que também aqui, como em toda a filosofia sistemática, o idealismo especulativo tenha tido um efeito que vai bem mais além de sua validade reconhecida. Conhecidamente, a execração do esquematismo dogmático da escola de Hegel, em meados do século XIX, acabou promovendo uma renovação da crítica sob a divisa: “De volta a Kant”. Isso vale, da mesma forma, para a estética. Por mais grandiosa que tenha sido a valoração da arte para uma história das cosmovisões, que Hegel deu na sua estética — o método de uma tal construção apriorística da história, que encontrou algumas aplicações na escola hegeliana (Rosenkranz, Schasler, entre outros), acabou sendo rapidamente desacreditada. A exigência de uma volta a Kant, que se levantou contra isso, não conseguiu representar uma verdadeira volta e retomada do horizonte, que abrangia as críticas de Kant. Antes, o fenômeno da arte e o conceito do GÊNIO permaneceram no centro da estética, e o problema do belo natural, bem como o conceito do gosto, continuaram à margem. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Isso se mostra também no uso da linguagem. A redução de Kant, do conceito de GÊNIO ao artista, que tratamos acima, não conseguiu se impor. Ao contrário, no século XIX o conceito de GÊNIO elevou-se a um conceito de valor universal e experimentou — em união com o conceito da criatividade — uma verdadeira apoteose. Era o conceito romântico-idealista da produção inconsciente, que suportou esse desenvolvimento e que alcançou uma enorme repercussão através de Schopenhauer e da filosofia do inconsciente. É verdade que mostramos que uma tal posição preferencial sistemática do conceito do GÊNIO em contraste com o conceito do gosto respondia, de forma alguma, à estética kantiana. Porém a preocupação essencial de Kant veio a produzir uma fundamentação da estética que é autônoma e liberta do padrão do conceito, e de maneira alguma chegou a colocar a questão relativa à verdade no âmbito da arte, mas, fundamentou o julgamento estético sobre o a priori subjetivo do sentimento vital, a harmonia de nossa capacidade para “o conhecimento como tal”, que perfaz a essência comum do gosto e do GÊNIO, anteposto ao irracionalismo e ao culto do GÊNIO do século XIX. A doutrina de Kant sobre a “elevação do sentimento vital” no prazer estético promoveu o desenvolvimento do conceito “GÊNIO” para um conceito de vida abrangente, principalmente depois que Fichte havia elevado o ponto de vista do GÊNIO e a produção genial a um ponto de vista universal e transcendental. Assim aconteceu que o neokantianismo, na medida em que procurava derivar tudo que tivesse valor de objeto da subjetividade transcendental, terminou caracterizando o conceito de vivência como a genuína realidade do consciente. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Sob a influência do conceito de GÊNIO e da subjetivação da “expressão”, esta diferença de significados se converte numa oposição de valores. O símbolo aparece como aquilo que, devido à sua indeterminação, pode ser interpretado inesgotavelmente, em oposição excludente ao que se encontra numa referência de significado mais precisa, e ao que se esgota nela, sendo isso próprio da alegoria; como a contradição de arte e não-arte. A indeterminação do seu significado é justamente o que permite e favorece a ascensão triunfal da palavra e do conceito do simbólico, no momento em que a estética racionalista da época do Aufklärung sucumbe à filosofia crítica e à estética do GÊNIO. Vale a pena atualizar este contexto pormenorizadamente. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Seja como for, Souger mantém a expressão do alegórico num sentido ainda bastante elevado no conjunto da arte cristã e Friedrich Schlegel vai ainda mais adiante dizendo: Toda beleza é alegoria (diálogo sobre a poesia). Também o uso simbólico que Hegel faz do conceito (tal como Creuzer) mantém-se ainda bastante próximo desse conceito do alegórico. Mas esse uso linguístico dos filósofos, que se encontra na base das ideias românticas sobre a relação do indizível para com a linguagem e do descobrimento da poesia alegórica do Oriente, já não pôde mais ser mantido pela formação humanística do século XIX. Havia quem se reportasse ao classicismo de Weimar, e, de fato, a desvalorização da alegoria tornou-se a preocupação dominante do classicismo alemão, que se entregou muito necessariamente à libertação da arte dos grilhões do racionalismo e à caracterização do conceito do GÊNIO. A alegoria não é, certamente, apenas questão do GÊNIO. Repousa sobre sólidas tradições e sempre teve um significado determinado e declarado, que não se opõe, de forma alguma, à compreensão intelectiva através do conceito. Ao contrário, o conceito e a questão da alegoria estão solidamente vinculados com o dogmatismo: com a racionalização do místico (tal qual no Aufklärung grego) ou com a interpretação cristã da Bíblia Sagrada, no sentido da unidade de uma doutrina (tal qual na Patrística) e, finalmente, com a reconciliação da tradição cristã com a formação da antiguidade, que forma a base da arte e da poesia dos povos mais recentes e cuja derradeira forma do mundo foi o Barroco. Com a ruptura dessa tradição, rompeu-se também com a alegoria. Isso porque no momento em que a essência da arte libertou-se de toda vinculação dogmática, podendo ser definida através da produção inconsciente do GÊNIO, a alegoria teria de, esteticamente, tornar-se questionável. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

O “motivo”, uma expressão comum na linguagem dos pintores, pode ilustrar isto. Pode ser tanto objetivo como abstrato — como motivo, em todo caso, visto ontologicamente, imaterial (aneu hyles). Isso não quer dizer, de maneira alguma, que seja destituído de conteúdo. Antes, algo torna-se um motivo pelo fato de possuir unidade, de maneira convincente, e pelo fato de que o artista executa essa unidade, como unidade de um sentido, tal qual aquele que a recebe entende-a como unidade. Kant, nesse contexto, fala reconhecidamente de “ideias estéticas”, às quais o pensamento irá atribuir muita coisa inominável”. Essa é uma maneira de ultrapassar a pureza transcendental do estético e de reconhecer o modo de ser da arte. Estava longe dele, como já demonstramos, querer evitar a “intelectualização” do prazer estético puro em si. O arabesco não é, de maneira alguma, seu ideal estético, mas meramente um exemplo metódico preferido. Para fazer jus à arte, a estética tem de ultrapassar-se a si mesma e renunciar à “pureza” do estético. Mas será que, com isso, ela encontra realmente uma posição sólida? Em Kant, o conceito do GÊNIO havia possuído uma função transcendental, através da qual o conceito da arte encontra seu fundamento. Tínhamos visto de que forma esse conceito do GÊNIO se ampliou, nos seus sucessores, a uma base universal da estética. Mas será que o conceito do GÊNIO é adequado para isso? VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Já a consciência do artista de hoje parece contrariá-lo. Ocorreu uma espécie de crepúsculo do GÊNIO. A representação de uma inconsciência sonâmbula, com a qual o GÊNIO cria — uma representação que, em todo caso, pode se legitimar através da autodescrição de Goethe em sua maneira poética de produzir — nos parece hoje um romantismo falso. A isso um poeta como Paul Valéry contrapôs os padrões de um artista e engenheiro como Leonardo da Vinci, em cujo engenho total, encontravam-se ainda indiferenciados e unos, o artesanato, a invenção mecânica e a genialidade artística. A consciência geral, ao contrário, é sempre ainda determinada pelos efeitos do culto do GÊNIO do século XVIII e pela sacralização da vocação artística, que vimos ser característica para a sociedade burguesa do século XIX. Nisso se comprova que, no fundo, o conceito do GÊNIO é concebido do ponto de vista do observador. Esse antigo conceito se oferece convincentemente não para o espírito que cria, mas para o espírito que julga. O que se apresenta ao observador como um milagre, a ponto de não se poder entender que alguém seja capaz de algo assim, irá se espelhar no que há de milagroso numa criação, através de uma inspiração genial. Os criadores, então na medida em que olham para si mesmos, podem se servir dessas formas de apreensão, e é assim, certamente, que o culto do GÊNIO veio a ser alimentado, no século XVIII, também pelos criadores. Mas nessa auto-apoteose nunca chegaram a alcançar o status que a sociedade burguesa lhes atribuía. A auto-evidência do criador continua bem mais sóbria. Continua vendo as possibilidades de fazer, de ser capaz e de indagar da técnica até mesmo onde o observador procura inspiração, mistério e significado profundo. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Se quisermos levar em conta a crítica à doutrina da produtividade inconsciente do GÊNIO, vemo-nos colocados de novo diante do problema que Kant tinha resolvido através da função transcendental, que atribuía ao conceito de GÊNIO. O que é uma obra de arte, e como se diferencia de um produto artesanal ou mesmo de uma “obra mal feita”, isto é, de algo esteticamente de menor valor? Para Kant e para o idealismo, a obra de arte era definida como a obra do GÊNIO. Sua caracterização, de ser algo completamente bem sucedido e exemplar, confirmava-se ao oferecer ao usufruto e à contemplação um objeto inesgotável de permanência e interpretação. O fato de que à genialidade do criar corresponde uma genialidade do desfrutar já se encontrava na doutrina de Kant do gosto e do GÊNIO, e o ensinavam ainda mais expressamente K. Ph. Moritz e Goethe. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Como deve ser pensada agora, sem o conceito de GÊNIO, a natureza do usufruto da arte e a diferença entre o que é feito artesanalmente e o que é criado artisticamente? VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

A mesma aporia ocorre quando, em lugar de partir do conceito do GÊNIO, parte-se do conceito da vivência estética. Esse problema já foi levantado pela dissertação fundamental de Georg von Lukács, A relação sujeito-objeto na estética. Ele confere à esfera estética uma estrutura heracíítica, e com isso quer dizer o seguinte: a unidade do objeto estético não chega a ser uma situação dada real. A obra de arte é apenas uma forma do vazio, o mero ponto nodal na possível maioria das vivências estéticas, nas quais se encontra apenas o objeto estético. Como se vê, há absoluta descontinuidade, isto é, decomposição da unidade do objeto estético na multiplicidade de vivências, uma consequência necessária da estética da vivência. Vinculando-se à ideia de Lukács, Oskar Becker chegou à seguinte formulação: “Vista temporalmente, a obra é apenas um momento (isto é, agora), é ‘agora’ esta obra, e já agora não é mais!” Isso, de fato, é algo consequente. A fundamentação da estética na vivência conduz à absoluta pontualidade, que suspende tanto a unidade da obra de arte como a identidade do artista consigo mesmo e a identidade de quem a compreende ou a usufrui. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

Disso sabem os poetas que procuram colocar-se à altura do modo de proceder do espírito poético que neles vige, como fez, por exemplo, Hölderlin. Afastando da experiência poética originária tanto o dado prévio da linguagem quanto o dado prévio do mundo, isto é, a ordem das coisas, e descrevendo a concepção poética como a confluência de mundo e alma no devir poético da linguagem, os poetas descrevem na verdade uma experiência rítmica. A configuração do poema, onde desemboca o devir de linguagem, garante, em sua finitude, a mútua referência de alma e mundo dada na linguagem. É aqui que o ser da linguagem mostra sua posição central. Partir da subjetividade, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívoco. A linguagem não deve ser pensada como um projeto prévio de mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de uma consciência individual ou do espírito de um povo. Esses todos são apenas mitologias, exatamente como o conceito do GÊNIO, que desempenha um papel tão predominante na teoria estética, porque ensina a compreender a construção da imagem como uma produção inconsciente e com isso interpretá-la a partir da analogia com o produzir consciente. A obra de arte não pode contudo ser compreendida a partir da execução planificada de um projeto — mesmo que esse seja sonâmbulo e inconsciente — tampouco como o curso da história universal pode ser pensado pela nossa consciência finita como a execução de um plano. Tanto num caso quanto no outro, sorte e êxito desvirtuam-se em oracula ex eventu, que encobre, na verdade, o evento do qual são a expressão, a palavra ou a ação. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6

Compreender não é mera reprodução de um conhecimento, ou seja, não é mera execução reiterada do mesmo, mas está consciente do caráter repetitivo de sua execução. Como já formulara August Boeckh, trata-se de conhecer o conhecido. Esta formulação paradoxal resume as ideias da hermenêutica romântica, que tinha clareza sobre a estrutura reflexiva do fenômeno hermenêutico. A inteireza do compreender exige que se traga à consciência o componente inconsciente da compreensão. Nesse sentido, a hermenêutica romântica tem por base um conceito fundamental da estética kantiana, o conceito de GÊNIO, que cria a obra paradigmática, “de modo inconsciente” — como a própria natureza — , isto é, sem o emprego consciente de regras e sem imitar modelos. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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