Gadamer (VM): filosofia moral

Na filosofia do escocês, o conceito de common sense encontrou uma função realmente central e sistemática, que polemiza tanto contra a metafísica, como contra sua cética solução, e sobre o fundamento de juízos originários e naturais do common sense, elabora seu novo sistema (Thomas Reid). Sem dúvida que nisso encontra-se atuante a tradição conceitual aristotélico-escolástica do sensus communis. A pesquisa dos sentidos e do seu desempenho cognitivo é haurida dessa tradição e, em última análise, deve servir para corrigir os exageros da especulação filosófica. Mas, ao mesmo tempo, permanece firme a relação do common sense com a society (sociedade): “Eles servem para nos guiar nos afazeres comuns da vida, quando nossa faculdade racional nos deixa no escuro”. A filosofia da sã compreensão humana, do good sense (bom senso) é, aos meus olhos, não somente um remédio contra o “sonambulismo” da metafísica — contém também o fundamento de uma FILOSOFIA MORAL, que é realmente justificada em relação à vida da sociedade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Ao contrário, a assimilação feita por Kant desse conceito na Crítica do juízo recebe uma ênfase totalmente diferente. O sentido fundamental e moral desse conceito não encontra mais nele nenhum lugar sistemático. É conhecido que ele esboçou sua FILOSOFIA MORAL simplesmente como contra-ataques à doutrina desenvolvida na filosofia inglesa do “sentimento moral”. Foi assim que, na FILOSOFIA MORAL, ele desligou totalmente o conceito do sensus communis. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A par disso, existe também para Kant, certamente, a questão de como se consegue fornecer às rigorosas leis da razão pura prática o acesso na índole humana. Isso vem a ser abordado por ele na “Doutrina de método da razão pura prática”, que quer esboçar o “método da instituição e cultura de princípios morais genuínos, com pouco”. Para essa tarefa reporta-se ele, de fato, à razão humana comum e pretende exercitar e formar o juízo prático, e decerto nisso haverá também momentos estéticos atuantes. Mas que, dessa maneira, possa haver uma cultura do sentimento moral, é o que, no fundo, não faz parte da FILOSOFIA MORAL e, em todo caso, não diz respeito aos seus fundamentos. Pois Kant exige que a nossa determinação da vontade permaneça apenas dependente dos motivos que repousam na autolegislação da razão pura prática. Nenhuma comunhão da sensibilidade pode criar base, para isso, mas apenas uma “ação da razão prática, a qual ainda que obscurecida, é no entanto seguramente condutora”, cujo esclarecimento e consolidação é tarefa da crítica da razão prática. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Para isso podemos nos apoiar na crítica romântica ao Aufklärung. Pois existe uma forma de autoridade que foi particularmente defendida pelo romantismo: a tradição. O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e nao somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre essa base, e, mesmo no caso em que, na educação, a “tutela” perde a sua função com o amadurecimento da maioridade, momento em que as próprias perspectivas e decisões assumem finalmente a posição que detinha a autoridade do educador, esta chegada da maturidade vital-histórica não implica, de modo algum, que nos tornemos senhores de nós mesmos no sentido de nos havermos libertado de toda herança histórica e de toda tradição. A realidade dos costumes, p. ex., é e continua sendo, em âmbitos bem vastos, algo válido a partir da herança histórica e da tradição. Os costumes são adotados livremente, mas não criados por livre inspiração nem sua validez nela se fundamenta. é isso, precisamente, que denominamos tradição: o fundamento de sua validez. E nossa dívida para com o romantismo é justamente essa correção do Aufklärung, no sentido de reconhecer que, à margem dos fundamentos da razão, a tradição conserva algum direito e determina amplamente as nossas instituições e comportamentos. A superioridade da ética antiga sobre a FILOSOFIA MORAL da idade moderna se caracteriza precisamente pelo fato de que, com base no caráter indispensável da tradição, ela fundamenta a passagem da ética à “política”, a arte da legislação correta. Em comparação a isso, o Aufklärung moderno é abstrato e revolucionário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

No âmbito da FILOSOFIA MORAL, certamente não há nada parecido. Isto porque a partir de Rousseau e Kant não foi mais possível admitir uma perfectibilidade moral do gênero humano. No entanto, a crítica fenomenológica ao neokantianismo encontrou também aqui o seu êmulo, sobretudo no formalismo da FILOSOFIA MORAL de Kant. O ponto de partida assumido por Kant no fenômeno do dever e sua demonstração na incondicionalidade do imperativo categórico pareciam banir da FILOSOFIA MORAL todo conteúdo daquilo que ordena a lei moral. Por mais fraca que seja em seu aspecto negativo, a crítica de Max Scheler ao formalismo da ética kantiana demonstrou sua própria fecundidade pelo projeto de uma ética material dos valores. A crítica fenomenológica de Scheler ao conceito neokantiano de produção representou também um importante [70] estímulo, que levou especialmente Nicolai Hartmann a desviar-se do neokantianismo e dirigir-se à concepção de sua “metafísica do conhecimento”. O fato de o conhecimento não proporcionar nenhuma modificação no conhecido — e muito menos sua geração — , o fato de que tudo que é seja, independentemente de ser conhecido ou não, pareceu-lhe um argumento contra toda forma de idealismo transcendental e também contra a investigação husserliana da constituição. Positivamente, Nicolai Hartmann acreditava que no reconhecimento do ser-em-si do ente e em sua independência frente a toda subjetividade humana poderia traçar o caminho para uma nova ontologia. Dessa forma, chegou bem próximo do novo “realismo”, que começava a se impor com toda força na Inglaterra. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

Somente a tradição filosófica do Ocidente pode conter uma resposta histórica para essa questão. Só a ela podemos interrogar. As enigmáticas formas enunciativas sobre profundidade e sabedoria, desenvolvidas em outras culturas, sobretudo no distante Oriente, mantêm, no fundo, uma relação não verificável frente ao que se chama de filosofia ocidental, especialmente porque a ciência, em nome da qual questionamos, é ela mesma uma descoberta ocidental. Se é assim que a filosofia não tem nenhum objeto próprio em que possa se medir, e no qual possa adequar-se com seus recursos conceptuais e de linguagem, então o objeto da filosofia não seria o próprio conceito? O conceito, assim como costumamos usar essa palavra, é o verdadeiro ser. Dizemos, por exemplo: “isto sim é o conceito de amigo”, quando queremos elogiar alguém pela sua capacidade de ser amigo. Será que isso significa que, enquanto o [78] objeto da filosofia e no modo como se relaciona com o que é, esclarecendo e conhecendo, o conceito é, por assim dizer, o autodesenvolvimento do pensamento? De certo, essa é a resposta da tradição desde Aristóteles até Hegel. No livro Gamma (O da Metafísica, Aristóteles distinguiu a filosofia e sobretudo a metafísica, a filosofia primeira, como conhecimento em geral, afirmando que todas as outras ciências têm um âmbito positivo e assim um objeto específico. Como ciência, a filosofia que buscamos aqui não tem um objeto assim delimitado. Tem em mente o ser como tal e a essa pergunta pelo ser como tal liga-se a consideração de modos de ser distintos entre si: o eterno e o divino imutáveis, o que está em constante movimento, a natureza, o ethos e sua vinculação, o homem. É assim que se nos apresenta a tradição da metafísica, com seus temas principais, até a configuração que Kant deu à metafísica da natureza e à metafísica dos costumes, na qual o saber sobre Deus estabeleceu uma ligação específica com a FILOSOFIA MORAL. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

O problema da liberdade parece ser um dos que preenchem perfeitamente a condição prévia de ser um problema filosófico idêntico. A condição prévia de ser um problema filosófico consiste na verdade em ser insolúvel. O problema deve ser de tal modo abrangente e fundamental que volta a se instaurar sempre de novo, uma vez que parece não haver nenhuma “solução” capaz de resolvê-lo totalmente. Já Aristóteles descreveu a essência do problema dialético, afirmando que são as questões grandes e insolúveis que se devem lançar ao adversário numa disputa verbal. A pergunta, porém, é: haverá “o” problema da liberdade? A questão da liberdade será realmente sempre a mesma em todos os tempos? O que dizer daquele mito profundo da República de Platão, segundo o qual a própria alma escolhe, num estado anterior ao nascimento, a sorte para sua vida, de tal modo que se queixa das consequências de sua escolha recebe como resposta: “aitia helemenou, Tens culpa na tua escolha”? Terá o mesmo sentido que o conceito de liberdade que dominou, por exemplo, a FILOSOFIA MORAL estoica, que afirmava com certa resolução que o único caminho para tornar-se independente e, com isso, livre seria não prender seu coração a nada, e não apegar-se a si próprio? Será este o mesmo problema do mito platônico? Será o mesmo problema quando a teologia cristã procura tecer e resolver seu grande enigma entre a liberdade do homem e a providência divina? E será o mesmo quando, na era da ciência da natureza, formulamos a pergunta: Como se deve conceber a possibilidade de liberdade, diante da determinação infalível do acontecimento natural diante do fato de que toda ciência da natureza deve partir do pressuposto de que na natureza não acontecem milagres? O problema do determinismo e do indeterminismo da vontade, formulado a partir dessa situação, será ainda o mesmo problema? VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

A mecânica construída por Galileu é, na realidade, a mãe de nossa civilização moderna. Nela surgiu um modo de conhecimento bem determinado, que provocou a tensão entre nosso conhecimento de mundo não metodológico, o qual abrange toda a extensão de [187] nossa experiência vital, e a produção cognitiva da ciência. A grande contribuição filosófica de Kant foi ter encontrado uma solução conceitual convincente para essa problemática tensão moderna. Pois a filosofia do século XVII e XVIII havia se consumido inutilmente na tarefa de conciliar o grande saber universal da tradição metafísica com a nova ciência — um intento que não conseguiu alcançar um verdadeiro equilíbrio entre a ciência racional, baseada em conceitos, e a ciência experimental. Kant encontrou a solução. É verdade que sua limitação crítica da razão — assumindo a crítica inglesa à metafísica — e a restrição de seu conhecimento conceitual ao dado na experiência significaram a destruição da metafísica como ciência dogmática da razão. Mas o “esmagador universal”, como chamavam os contemporâneos ao meigo professor de Konigsberg, foi também o grande fundador da FILOSOFIA MORAL sobre o princípio radical da autonomia da razão prática. Ao reconhecer a liberdade como um fato singular da razão, isto é, ao mostrar que sem o postulado da liberdade não se podem pensar nem a razão prática do homem e nem a sua existência ética e social do homem, Kant inaugurou um novo horizonte frente a todas as tendências deterministas procedentes da ciência moderna da natureza. Esse novo horizonte conferiu uma nova legitimidade ao pensamento mediante o conceito de liberdade. Na verdade, o impulso filosófico-moral de Kant, sobretudo na mediação feita por Fichte, serve de base para os grandes pioneiros da “cosmovisão histórica”, como Wilhelm von Humboldt, Ranke e sobretudo Droysen. Também Hegel e todos que foram influenciados por Kant, positiva ou negativamente, são marcados do princípio ao fim pelo conceito de liberdade. Conservam assim uma abertura para a grandeza e a totalidade da filosofia, frente ao mero metodologismo da ciência histórica. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.

Há, certamente, uma resistência em aplicar o conceito moderno de teoria à filosofia prática, que já pretende ser prática por sua própria autodeterminação. Por isso, estabelecer condições especiais de cientificidade, que sejam válidas para essas esferas, sobretudo quando Aristóteles as caracterizava com a vaga indicação de que são ciências menos exatas, é um problema extremamente árduo. No caso da filosofia prática, a situação é muito mais complexa e exigiu de Aristóteles uma certa reflexão metodológica. A filosofia prática necessita de uma legitimação de caráter próprio. O problema decisivo é, evidentemente, que essa ciência prática está relacionada com o problema global do bem na vida humana, que não se restringe, como as technai, a uma esfera determinada. Apesar disso, a expressão “filosofia prática” significa que para os problemas práticos não convém fazer-se um uso determinado de argumentos de tipo cosmológico, ontológico e metafísico. Se aqui for preciso limitar-se ao que for relevante para o ser humano, ao bem prático, o método que aborda essas questões do fazer prático é sem dúvida radicalmente diferente da razão prática. Já no aparente pleonasmo de uma “filosofia teórica” e principalmente na autodesignação “filosofia prática”, podemos encontrar algo que acompanha, até hoje, a reflexão dos filósofos: o fato de que a filosofia não pode renunciar completamente à pretensão de não somente saber, mas também de ter influência prática, isto é, à pretensão de promover, enquanto “ciência do bem no âmbito da vida humana”, esse mesmo bem. Para nós, isso é algo óbvio também nas ciências poiéticas, as chamadas technai. Essas “artes”, nas quais o uso é o decisivo. No caso da ética política, a coisa é diferente e, sem dúvida, é quase impossível renunciar a essa pretensão prática. É por isso que se manteve definitivamente até nossos dias. A ética não se limita a descrever as normas vigentes, mas busca fundamentar sua validez e ou introduzir normas mais justas. Esse passou a ser um verdadeiro problema, ao menos desde a crítica de Rousseau ao orgulho racional do Iluminismo. Como a “ciência filosófica das coisas morais” pode legitimar seu direito à existência se a incorruptibilidade da consciência moral natural pode na verdade conhecer e escolher o bem e o dever com uma precisão insuperável e com a mais apurada sensibilidade? Aqui certamente não é o lugar para analisar mais amplamente como, frente a esse desafio de Rousseau, Kant fundamentou a tarefa da FILOSOFIA MORAL. Tampouco é possível explicar como Aristóteles [305] coloca e resolve o mesmo problema sublinhando as condições especiais que encontra o aprendiz capaz de receber de modo razoável uma instrução teórica sobre o “bem prático”. A filosofia prática é aqui somente um exemplo de uma tradição desse saber que não se ajusta ao conceito moderno de método. VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Decerto, a ideia aristotélica de uma filosofia prática não sobreviveu em sua globalidade, mas apenas em seu aspecto político. A filosofia prática política foi se aproximando do conceito de uma técnica ao pretender oferecer uma espécie de competência de base filosófica ao serviço da razão legisladora. Esse esquema pôde integrar-se ainda, durante um período, no pensamento científico da época moderna. A FILOSOFIA MORAL grega, ao contrário, marcou a posteridade e sobretudo a Idade Moderna não tanto em sua forma aristotélica mas em sua versão estoica. Mesmo assim, a retórica de Aristóteles exerceu pouca influência na tradição da retórica antiga. Para os mestres da retórica e como guia para uma oratória perfeita era demasiado filosófica. Mas justamente em virtude de seu “caráter filosófico”, que a associava, como disse Aristóteles, à dialética e à ética (peri ta ethe pragmateia, Theet. 1356 a26), encontrou seu novo momento na época do humanismo e da Reforma. Interessa-nos conhecer aqui o uso que os reformadores e sobretudo Melanchton fizeram da retórica aristotélica. Essa passou da arte de “fazer” discursos para a arte de acompanhar um discurso, compreendendo-o, quer dizer, passou para a arte da hermenêutica. Aqui confluíram duas correntes: A nova escrita e a nova leitura, iniciadas com a invenção da imprensa, e a virada teológica da Reforma frente à tradição e na direção do princípio bíblico. O lugar central da Sagrada Escritura para o anúncio do Evangelho determinou sua tradução para as línguas vernáculas, e também a doutrina do sacerdócio geral suscitou um uso da Escritura que precisava de uma nova direção. Pois, quando os leitores da Sagrada Escritura eram leigos, já não se tratava de pessoas instruídas na leitura por tradições artesanais de certas profissões nem dispunham de preleções discursivas que lhes facilitassem a compreensão. O leitor não encontra ajuda na impressionante retórica do jurista nem na do pastor de almas, nem na do literato. VERDADE E METODO II OUTROS 22.

Uma ciência com pressupostos de conteúdo! Aqui surge, a meu ver, a verdadeira problemática epistemológica sob a qual se encontra a filosofia prática. Aristóteles refletiu sobre isso. Sustentou, por exemplo, que para aprender algo sobre filosofia prática, sobre os conceitos normativos da conduta humana ou sobre as constituições racionais do estado, é preciso já ter recebido uma educação, estar capacitado para a racionalidade. A “participação” precede aqui a “teoria”. São temas que Kant desenvolveu com mais precisão em outro contexto: Como se pode admitir ainda uma teoria e uma filosofia da moral quando descobrimos na racionalidade uma qualidade moral do ser humano que não depende de suas faculdades teóricas? Existe uma célebre nota de Kant em seus diários que diz o [327] seguinte: “Rousseau colocou-me no devido lugar!” Queria dizer com isso: aprendi de Rousseau que o aperfeiçoamento da civilização e o nível da cultura compreensiva não são garantia para o progresso na moralidade humana. Na verdade, sua conhecida FILOSOFIA MORAL repousa precisamente nessa profunda convicção. A autojustificação moral do homem não é uma tarefa da filosofia, mas da própria moralidade. O imperativo categórico de Kant, a que muito se faz referência, limitou-se a formular numa reflexão abstrata o que diz a “auto-responsabilidade prática” de cada um. Isso supõe o reconhecimento de que o saber da razão teórica não pode reclamar nenhum tipo de superioridade sobre a autonomia prática da racionalidade. Desse modo, a própria filosofia prática está subordinada a certas condições práticas. Seu princípio é o “que” (dass); na linguagem kantiana isso se chama o “formalismo” da ética. VERDADE E METODO II OUTROS 23.