Concorda com isso o fato de que a ciência moderna só tenha se recordado da valência ontológica autônoma da “forma” (Gestalt), quando chegou aos limites da construtibilidade mecânica do ente, e que somente então tenha incluído a ideia dessa forma — mesmo que de simetrias bem mais formais — como princípio suplementar de conhecimento na explicação natural, sobretudo na explicação da natureza viva (biologia, psicologia). Não é que com isso renuncie à sua atitude fundamental, mas que meramente procura alcançar, por um caminho mais refinado, o seu objetivo, o domínio do ente. Isso deve ser acentuado em contraste com a autocompreensão da ciência moderna da natureza. Mas ao mesmo tempo, e em seus próprios limites, nos limites do domínio da natureza que ela própria conseguiu, a ciência faz valer a beleza da natureza e a beleza da arte que servem a um prazer livre de qualquer [484] interesse. A partir da inversão da relação entre o que é belo por natureza e o que é pela arte, já descrevemos o processo de alternância, pelo qual o que é belo por natureza acaba perdendo sua primazia, até o ponto de ser pensado como reflexo do espírito. Poderíamos ter acrescentado que o mesmo conceito da “natureza” obtém a cunhagem que ele carrega consigo, desde Rousseau, somente a partir de seu reflexo no conceito da arte. Converte-se num conceito polêmico, ou seja, o do outro do espírito, o não-eu, e como tal já não lhe convém nada da dignidade ontológica universal, própria do cosmo como ordem das coisas belas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
I — O conceito de ciência moderna foi cunhado pelo desenvolvimento da ciência da natureza do século XVII. Deve-se a ele um crescente domínio da natureza, e desta forma espera-se também que a ciência do homem e da sociedade ofereça o mesmo domínio do universo humano-histórico. Espera-se das ciências do espírito até mais, uma vez que o crescente domínio da natureza pela ciência ao invés de diminuir o mal-estar da cultura acabou aumentando-o. Os métodos das ciências da natureza não apreendem tudo que é digno de se saber, nem sequer o que é mais digno de se saber, ou seja, os fins últimos aos quais deve estar subordinado todo domínio dos recursos da natureza e do homem. O que se espera das ciências do espírito e da filosofía, nelas contidos, são conhecimentos de uma outra espécie e de uma outra ordem. E assim parece que precisamos falar não do elemento comum que o uso dos métodos científicos coloca para toda a ciência, mas do elemento singular que faz com que as ciências do espírito sejam tão significativas e tão dignas de serem pensadas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.
Perseguindo, por outro lado, o significado da expressão “a linguagem das coisas”, seguimos aparentemente uma direção muito parecida. Também a linguagem das coisas é algo a que não ouvimos suficientemente e que deveríamos escutar melhor. Essa expressão tem certo tom polêmico. Expressa que, em geral, não estamos preparados para ouvir as coisas no seu ser próprio, já que estão submetidas ao cálculo do homem e ao seu domínio da natureza pela racionalidade da ciência. Num mundo que se torna cada vez mais técnico, falar de dignidade das coisas torna-se algo cada vez mais incompreensível. Elas estão desaparecendo, e somente o poeta ainda lhes resguarda uma última fidelidade. Mas o fato de ainda se poder falar de uma linguagem das coisas nos lembra que, na verdade, as coisas não são um material que se usa e consome, não são um instrumento que se utiliza e coloca de lado, mas algo que tem consistência em si e que “é impelido para o nada” (Heidegger). O arbítrio da vontade manipuladora do homem é que desconsidera seu ser próprio, interior. Esse ser é como uma linguagem que se deve ouvir. A expressão “a linguagem das coisas” não é portanto uma verdade mitológico-poética, apenas verificável pelo mago Merlin ou o iniciado no espírito dos contos. O que se evoca nessa expressão é a recordação, latente em todos nós, do ser próprio das coisas, que podem sempre ainda ser o que são. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.
Não é nenhum exagero afirmar que, bem mais do que o progresso das ciências da natureza, foi a racionalização de seu emprego técnico-científico que produziu essa nova fase da revolução industrial em que nos encontramos. Creio que o que caracteriza o perfil de nossa época não é o crescimento exagerado do domínio da natureza, mas o desenvolvimento de métodos científicos de controle para a vida da sociedade. É só assim que a marcha vitoriosa da ciência moderna, iniciada no século XIX, passou a ser um fator social predominante. Só agora o pensamento científico, à base de nossa civilização, apoderou-se de todos os âmbitos da práxis social. A investigação científica do mercado, a condução científica da guerra, a ciência da política externa, o controle científico da natalidade, a ciência para a condução da vida humana etc. conferem ao especialista em economia e sociedade um lugar central. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
Assim, as possibilidades de domínio da natureza têm um significado e uma amplitude bem diferentes quando se está ainda longe de dominar as forças da natureza, sendo ainda necessário lutar constantemente contra a necessidade física, a pobreza e a doença. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
É verdade que a ciência moderna, desde o século XVII, suscitou um novo mundo, renunciando radicalmente ao conhecimento das substâncias e limitando-se ao projeto matemático da natureza [252] e ao emprego metodológico da medição e dos experimentos, para assim abrir a via construtiva para o domínio da natureza. Foi isso que impulsionou a expansão planetária da civilização técnica. Mas só em nosso século foi se acirrando cada vez mais, junto com os crescentes êxitos, a tensão entre nossa consciência do progresso científico e nossa consciência sociopolítica. Mesmo assim, o conflito entre esses saberes é um problema muito antigo. Custou a vida a Sócrates, quando pôs em evidência a ignorância do saber técnico e dos artesãos com relação ao verdadeiro saber, o bem. Isso se repetiu no portrait socrático que faz Platão. Platão empunha a bandeira da dialética, a arte de dialogar, não somente contra o saber limitado e especializado dos técnicos, mas até contra o mais elevado paradigma de toda ciência, a matemática, embora considere o domínio da matemática um pressuposto indispensável para quem quiser dedicar-se às últimas questões “dialéticas” sobre o verdadeiro ser e o bem supremo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Tornamo-nos mais ou menos cegos para essa tarefa por causa da ciência moderna e sua generalização filosófica. No Fédon de Platão, Sócrates coloca a exigência de compreender a estrutura cósmica e o acontecimento natural do mesmo modo que ele compreende o motivo por que está encarcerado e não aceitou a oferta de fuga, a saber, porque considerou bom para ele aceitar inclusive uma sentença injusta. Compreender a natureza como Sócrates se compreende a si mesmo aqui é uma exigência que a física aristotélica realizou a seu modo. Mas essa exigência não é compatível com o que representa a ciência desde o século XVII e com o que possibilitaram a ciência da natureza e do domínio da natureza sustentado por aquela. É exatamente essa a razão por que a hermenêutica e suas consequências metodológicas aprenderam muito menos da teoria da ciência moderna do que de outras tradições mais antigas que convém recordar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.