Gadamer (VM): condições da compreensão

Já assinalamos antes que a pertença à tradição é uma das condições da compreensão espiritual-científica. Agora podemos tirar a prova, examinando como aparece esse momento estrutural da compreensão no caso da hermenêutica teológica e da hermenêutica jurídica. Evidentemente não se trata de uma condição restritiva da compreensão, mas, antes, de uma das condições que a tornam possível. A pertença do intérprete ao seu texto é como a do ponto de vista na perspectiva que se dá num quadro. Tampouco se trata de que esse ponto de vista tenha de ser procurado como um determinado lugar para nele se colocar, mas que aquele que compreende não elege arbitrariamente um ponto de vista, mas que seu lugar lhe é dado com anterioridade. Assim para a possibilidade de uma hermenêutica jurídica é essencial que a lei vincule por igual todos os membros da comunidade jurídica. Quando não é este o caso, como no caso do absolutismo, onde a vontade do senhor absoluto está acima da lei, já não é possível hermenêutica alguma, “pois um senhor superior pode explicar suas próprias palavras, até contra as regras da interpretação comum”. Neste caso nem sequer se coloca a tarefa de interpretar a lei, de modo que o caso concreto se decida com justiça dentro do sentido jurídico da lei. A vontade do monarca, não sujeito à lei, pode sempre impor o que lhe parece justo, sem atender à lei, isto é, sem o esforço da interpretação. A tarefa de compreender e de interpretar só ocorre onde se põe algo de tal modo que, como tal, é vinculante e não abolível. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso é algo que a interpretação nunca deve perder de vista. Mesmo na interpretação científica do teólogo, tem-se de manter a convicção de que a Sagrada Escritura é a mensagem divina da salvação. Portanto, sua compreensão não pode ser somente a investigação científica de seu sentido. Em certa ocasião, Bultmann escreveu que “a interpretação dos escritos bíblicos não está submetida a condições diferentes das da compreensão de qualquer outra literatura”. Não obstante, o sentido dessa frase é ambíguo. Do que se trata é de se saber se toda literatura não está submetida a bem outras condições da compreensão das que, de maneira puramente formal e geral, devem ser satisfeitas face a qualquer texto. O próprio Bultmann destaca que — toda compreensão pressupõe uma relação vital do intérprete com o texto, assim como uma relação prévia com o tema mediado pelo texto. A essa pressuposição hermenêutica é que dá o nome de pré-compreensão, porque evidentemente não é produto do procedimento compreensivo, já que é anterior a ele. Hofmann, a quem Bultmann cita ocasio [337] ocasionalmente, escreve que uma hermenêutica bíblica pressupõe sempre uma relação com o conteúdo da Bíblia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A meu ver, o programa aristotélico de uma ciência prática é o único modelo de teoria da ciência a partir donde se pode conceber as ciências “da compreensão”. A reflexão hermenêutica sobre as condições da compreensão põe de manifesto que suas possibilidades se articulam em uma reflexão formulada dentro da linguagem, que [500] nunca começa do zero e não pode ser esgotada. Aristóteles mostra que a razão prática e o conhecimento prático não podem ser ensinados como a ciência. Eles só são possíveis na praxis, o que significa, na vinculação interna ao ethos. Convém não esquecer esse ponto. O modelo da filosofia prática deve ocupar o lugar dessa theoria, cuja legitimação ontológica só poderia ser encontrada em um intellectus infinitus, do qual nossa experiência existencial nada sabe sem apoio numa revelação. Esse modelo também deve ser contraposto a todos aqueles que subordinam a racionalidade humana à ideia metodológica da ciência “anônima”. Frente ao aperfeiçoamento da autocompreensão lógica da ciência, essa parece-me ser a verdadeira tarefa da filosofia, inclusive e justamente frente à significação prática da ciência para nossa vida e sobrevivência. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.