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Gadamer (VM): compreensão e interpretação

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Uma reflexão sobre o que é verdade nas ciências do espírito não deve ver-se refletida a partir de uma tradição, cuja vinculação lhe tenha escapado. Por isso, para a sua própria forma de trabalho, terá de apresentar a exigência de adquirir tanta autotransparência histórica quanto lhe for possível. Esforçando-se para entender o universo da compreensão, melhor do que parece possível sob o conceito de conhecimento da ciência moderna, a reflexão terá de procurar também um novo relacionamento com os conceitos que ela mesma utiliza. Terá de se conscientizar de que sua própria compreensão e interpretação não é nenhuma construção a partir de princípios, mas o aperfeiçoamento   de um acontecimento que lhe vem de longe. Os conceitos de que se utiliza não poderão, por isso, ser reclamados sem questionamentos; terá, porém, de ser aceito o que lhe for trazido de herança do originário conteúdo significante de seus conceitos. VERDADE E MÉTODO Introdução

A crítica da Bíblia, que conseguiu se impor amplamente no século XVIII, como mostra essa indicação a Spinoza  , possui, em caráter absoluto, um fundamento dogmático na fé na razão do Aufklärung, e, de um modo semelhante, existe toda uma outra série de precursores que preparam o pensamento histórico, entre os quais há, no século XVIII, nomes esquecidos há muito tempo, que procuram oferecer diretivas para a compreensão e interpretação de livros históricos. Entre eles se encontra particularmente Chladenius, apresentado como um precursor da hermenêutica romântica, e de fato nele se descobre o interessante conceito do "ponto de vista" como fundamento do "por que conhecemos uma coisa desse e não de outro modo". É um conceito procedente da ótica e que o autor toma expressamente de Leibniz  . VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Lendo um testemunho como este, pode-se medir como teria de ser forte o passo que deveria conduzir da hermenêutica de Schleiermacher   a uma compreensão universal das ciências históricas do espírito. Por mais universal que fosse a hermenêutica desenvolvida por Schleiermacher, tratava-se de uma universalidade limitada por uma barreira muito sensível. Sua hermenêutica tinha em mente, na verdade, textos cuja autoridade estava firme. Representa obviamente um passo importante [201] no desenvolvimento da consciência histórica o fato de que, com isso, a compreensão e interpretação tanto da Bíblia como da literatura da antiguidade clássica foram liberadas inteiramente do interesse   dogmático. Nem a verdade salvadora da Escritura Sagrada, nem o caráter modelar dos clássicos deviam influenciar o procedimento que era capaz de compreender a expressão de vida de todo texto, deixando de lado a verdade do que diz. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Porém, a fusão interna da compreensão e da interpretação trouxe como consequência a completa desconexão do terceiro momento da problemática da hermenêutica, o da aplicação, do contexto da hermenêutica. Aplicação edificante que se dispensava, por exemplo, à Sagrada Escritura no apostolado e sermões cristãos, parecia ser algo completamente distinto da compreensão histórica e teológica da mesma. Nisso, nossas considerações nos forçam a admitir que, na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido, à situação atual do intérprete. Nesse sentido nos vemos obrigados a dar um passo mais além da hermenêutica romântica, considerando como um processo unitário não somente a compreensão e interpretação, mas também a aplicação. Não significa isso voltar à distinção tradicional das três subtilitatae de que falava o pietismo, pois pensamos, pelo contrário, que a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante como a compreensão e a interpretação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A unidade interna de linguagem e pensamento é também a premissa de que parte a linguística. Somente assim pôde se converter em ciência. Pois somente porque existe essa unidade vale a pena, para o investigador, realizar a abstração, pela qual, em cada caso, converte em seu objeto a linguagem como tal. Somente rompendo com os preconceitos convencionalistas da teologia e do racionalismo, Herder e Humboldt   aprenderam a ver as línguas como maneiras de ver o mundo. Ao reconhecer a unidade de pensamento e fala, tiveram acesso à tarefa de comparar as diversas maneiras de dar forma a essa unidade como tal. Nós partiremos da mesma concepção, mas faremos [407] um caminho no sentido inverso. Apesar de toda diversidade de maneiras de falar, procuramos reter a unidade indissolúvel de pensamento e linguagem tal como a encontramos no fenômeno hermenêutico, como unidade de compreensão e interpretação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Assim como as coisas — essas unidades de nossa experiência do mundo, constituídas de apropriação e significação — alcançam a palavra, também a tradição, que a nós chega, é trazida novamente à linguagem na nossa compreensão e interpretação dela. A linguisticidade desse vir à palavra é a mesma que a da experiência humana do mundo em geral. E isso o que levou a nossa análise do fenômeno hermenêutico, finalmente, à explicação da relação entre linguagem e mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A unidade interna de compreensão e interpretação se confirma precisamente no fato de que a interpretação, que desenvolve as implicações de sentido de um texto e as torna expressas linguisticamente, face ao texto dado, parece uma criação nova, mas não afirma uma existência própria ao lado da compreensão. Já apontamos mais acima que os conceitos da interpretação acabam por se suspender, quando a compreensão se realizou, porque estavam destinados a desaparecer. Isso quer dizer que não são meios arbitrários, de que se lança mão e em seguida deixa-se de lado, mas formam parte da articulação interna da coisa (que é sentido). Pode-se dizer também da palavra interpretadora, como de qualquer outra palavra em que se realiza o pensar, que não é objetiva enquanto tal. Como realização da compreensão ela é a atualidade da consciência da história efeitual, e como tal é verdadeiramente especulativa: é inacessível no seu próprio ser e, no entanto, devolve a imagem que se lhe oferece. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Creio que algo semelhante se deixa aplicar também no trato com os textos e com isso também na compreensão do anúncio conservado na Sagrada Escritura. A vida da tradição e principalmente a do anúncio consiste nesse jogo da compreensão. Enquanto um texto permanecer mudo, sua compreensão ainda não começou. Um texto pode, no entanto, começar a falar (não estamos falando das condições necessárias para que isso ocorra). Nesse momento o texto não se limita a dizer sua palavra, sempre a mesma, numa rigidez inerte, mas dá novas respostas a quem lhe faz perguntas, apresentando sempre novas perguntas a quem lhe propõe respostas. Compreender textos significa manter com eles uma espécie de diálogo. Isso se confirma pelo fato de que no trato concreto com um texto a compreensão só se dá por completo quando o que se diz no texto pode ser traduzido para a própria linguagem do intérprete. A interpretação pertence à unidade essencial da compreensão. O que se diz a alguém deve ser acolhido dentro de si mesmo, de modo a falar e encontrar respostas nas próprias palavras de sua própria linguagem. Isso se aplica perfeitamente ao texto do anúncio evangélico, uma vez que este só pode ser compreendido verdadeiramente quando aparece como o que se diz a si mesmo. É só na pregação que a compreensão e interpretação do texto alcança sua realidade plena. O que está a serviço imediato do anúncio não é o comentário explicativo nem o trabalho exegético do teólogo, mas a pregação. E isso porque a pregação não se limita a transmitir a compreensão do que diz a Sagrada Escritura à comunidade, mas deve ela mesma testemunhá-la. A plenitude própria da compreensão não se encontra na pregação como tal, mas no modo de acolher a pregação como chamado que se dirige a todos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.