Se retivermos isso, já não poderemos continuar confundindo a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem com a objetividade (Objektivität) da ciência. A distância inerente à relação linguística para com o mundo não proporciona, por si mesma, e enquanto tal, esse outro gênero de objetividade que produzem as ciências naturais, eliminando os elementos subjetivos do conhecer. A distância e a objetividade da linguagem é também, evidentemente, um verdadeiro produto que não se faz por si. Já sabemos quanto contribui ao domínio de uma experiência o apreendê-la em linguagem. Com eia parece como se se pusesse distância à sua imediatez ameaçadora fulminante, como se fosse reduzida às devidas proporções, se tornasse comunicável e domesticada. No entanto, essa maneira de dominar a experiência é claramente diferente de sua elaboração pela ciência, que a objetiva e a torna disponível para fins de seu desígnio. Quando o cientista reconheceu as leis de um processo da natureza, ele recebeu algo em suas mãos e pode tentar ver se pode reconstruí-lo. Na experiência natural do mundo, tal como é cunhada linguisticamente, não há nada disso. Falar não significa, de maneira alguma, tornar coisas disponíveis e calculáveis. E não somente porque o enunciado e o juízo representam uma mera forma especial, dentro da multiplicidade do comportamento linguístico, mas porque essa experiência permanece, ela mesma, entrelaçada no comportamento vital. A ciência objetivadora considera, por isso, a conformação linguística da experiência natural do mundo como uma fonte de preconceitos. Como ensina o exemplo de Bacon, a nova ciência, com seus métodos de medição matemática, teria que abrir um espaço para seus próprios planos construtivos de investigação, precisamente contra o preconceito da linguagem e sua ingênua teleología. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Decerto, precisamos aprender a ler Dilthey contra sua própria [30] concepção de método. Aparentemente, os trabalhos de Dilthey partilhavam o mesmo ponto de partida que questionamento epistemológico neokantiano. Também ele procurou ajudar as ciências do espírito a encontrar uma fundamentação autônoma, filosófica, demonstrando seus princípios próprios. Concebeu a base de todas as ciências do espírito numa psicologia descritiva e analítica. Num trabalho clássico de 1892, intitulado Ideias para uma psicologia descritiva e analítica, Dilthey supera a metodologia das ciências naturais, no âmbito da psicologia, fornecendo assim às ciências do espírito sua própria consciência metodológica. Desta forma, ele também parece estar dominado pelo questionamento epistemológico, que pergunta pela possibilidade da ciência, e não pelo que é a história. Na verdade, porém, Dilthey não se restringe a refletir a respeito de nosso saber sobre a história, como acontece na ciência da história, mas pensa sobre o ser humano, que determina pelo seu próprio saber sobre sua história. Ele caracteriza o caráter fundamental da existência humana como “vida”. Esta é para ele a realidade originária “nuclear”, na qual também radica todo conhecimento histórico. Tudo que há de objetivo na vida humana repousa no trabalho da vida, formador de pensamento, e não num sujeito epistemológico. Arte, Estado, sociedade, religião, todos os valores, bens e normas incondicionais, que encontram sua consistência nesta esfera, provêm em última instância do trabalho da vida, formador de pensamento. Se estas realidades objetivas reivindicam uma validade incondicional, isso só pode ser esclarecido pela “limitação do horizonte do tempo”, isto quer dizer, pela falta de um horizonte histórico. Aquele que conhece história sabe, por exemplo, que o homicídio não é incondicionalmente um delito maior do que o roubo. Ele sabe que o antigo direito germânico punia o roubo de modo mais severo do que o homicídio, por ser, aquele, covarde e pouco viril. Somente quem não sabe disto é que pode acreditar numa hierarquia absoluta das coisas. O Iluminismo histórico leva à ideia da condicionalidade do incondicional, à ideia da relatividade histórica. Nem por isso, Dilthey torna-se o representante de um relativismo histórico, pois o seu pensamento não se ocupa da relatividade, mas da realidade “nuclear” da vida, que serve de fundamento para toda relatividade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenômeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan e P. Ricoeur. O alcance da analogia entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social “positivista” que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do “sentido”. Apesar de Nietzsche, buscar “sentido” na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Para lembrar sumariamente qual o conteúdo que a reflexão filosófica sobre a história considerou no passado como essencial e que problemas assumiu como fundamentais, vou considerar a filosofia da história desenvolvida no sudoeste da Alemanha, ou seja, na escola neokantiana de Heidelberg (se é que se pode chamar de filosofia da história à teoria do conhecimento das ciências históricas) e a filosofia da história de Dilthey (se é que se pode chamar de filosofia da história à dissolução da metafísica em história). A reflexão epistemológica que o neokantismo de Heidelberg, em ultrapassando Kant, expandiu até a ciência historiográfica aborda a seguinte questão: O que distingue um objeto da investigação histórica e o modo de doação que constitui o objeto de investigação das ciências naturais. O que transforma um fato em fato histórico? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.
Não compreendo essas considerações. A diferença entre a linguagem dos especialistas e a linguagem corrente existe desde séculos. Será que a matemática é algo novo? E o que sempre definiu o especialista, o Xamã e o médico não foi o fato de que eles nunca lançaram mão de recursos de entendimento que não fossem compreensíveis para todos? O que podemos ver como um problema moderno extremado é que o especialista já não considera ser tarefa sua traduzir seu saber para a linguagem comum corrente, de modo que essa tarefa de integração hermenêutica seria uma tarefa particular. Mas com isso a tarefa hermenêutica como tal não se modifica em nada. Ou será que com isso Habermas quer dizer apenas que poderíamos “compreender” construções teóricas, como por exemplo no campo da matemática e da ciência natural matemática atual, sem os recursos da linguagem corrente? Isso é indiscutível. Seria absurdo afirmar que toda nossa experiência de mundo não seria nada mais que um processo de linguagem, e que por exemplo o desenvolvimento de nosso senso para as cores consistiria apenas na diferenciação no uso das palavras referidas à cor. E mesmo conhecimentos genéticos, como por exemplo os de Piaget, aos quais se refere Habermas e que tornam provável a existência de um uso de categorias operacionais prévias à linguagem, mas também todas as formas de comunicação desprovidas de linguagem, a cerca das quais chamaram a atenção sobretudo Helmuth Plessner, Michael Polanyi e Hans Kunz, desqualificam qualquer tese que queira negar outras formas de compreensão fora do âmbito da linguagem apelando para uma universalidade da linguagem. Falar é, ao contrário, sua existência comunicada. Mas mesmo na comunicabilidade da compreensão encontra-se embutido o tema da hermenêutica, como reconhece corretamente Habermas (p. 77). Se quisermos evitar uma disputa por palavras, devemos renunciar a muitos rodeios e não supor que os sistemas de signos artificiais devam ser “compreendidos” no mesmo sentido em que nossa interpretação de mundo feita na linguagem é uma interpretação compreensiva. Tampouco se poderá dizer que as ciências naturais formulam seus enunciados sobre “as coisas” sem “observar-se no espelho dos discursos humanos”. Quais são as “coisas” que a ciência natural conhece? A pretensão da hermenêutica é e continua sendo integrar na unidade da interpretação de mundo feita na linguagem o que aparece como incompreensível ou como não “compreensível” para todos, mas apenas para “iniciados”. O fato de a ciência moderna ter desenvolvido suas próprias linguagens, específicas e técnicas, e sistemas artificiais de símbolos, procedendo dentro dos mesmos “monologicamente”, isto é, alcançando a “compreensão” e o “entendimento” à margem de toda comunicação do linguajar corrente, não pode ser levado a sério como uma objeção contra essa pretensão. O próprio Habermas, que faz tal objeção, sabe muito bem que essa “compreensão” e especialização, que constitui também o pathos do engenheiro social moderno e dos especialistas, carece da reflexão que lhe permitiria alcançar responsabilidade social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Seguindo essa temática universal, aberta por Schleiermacher e sobretudo sua contribuição mais própria, a introdução da interpretação “psicológica”, destinada a complementar a interpretação “gramatical” tradicional, a hermenêutica evoluiu no século XIX para uma metodologia. Seu novo objeto são os “textos”, uma entidade anônima, que o investigador deve enfrentar. Na linha de Schleiermacher, Wilhelm Dilthey levou a cabo a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, estabelecendo as bases para sua equiparação com as ciências naturais e ampliando o acento que Schleiermacher dera à interpretação psicológica. Segundo Dilthey, o verdadeiro triunfo da hermenêutica estaria na interpretação das obras de arte, que traz à consciência uma produção genial inconsciente. Frente à obra-de-arte, todos os métodos psicológicos tradicionais — gramatical, histórico, estético e psicológico — , só representam uma suprema realização do ideal da compreensão na medida em que todos esses recursos e métodos se põem a serviço da compreensão da obra concreta. Aqui, e sobretudo no campo da crítica literária, o aperfeiçoamento da hermenêutica romântica deixa um legado que denuncia sua origem remota, mesmo no uso da linguagem: o de ser crítica. Crítica significa preservar a obra individual em sua validade e conteúdo e diferenciá-la de tudo que não satisfaz seu critério. O esforço de Dilthey serviu para estender o conceito metodológico da ciência moderna também à “crítica” e desdobrar cientificamente a “expressão” poética partindo de uma psicologia compreensiva. Foi tomando o caminho que passa pela “história da literatura” que ele inaugurou o termo “ciência da literatura”. Reflete o ocaso de uma consciência da tradição na época 314] do positivismo científico do século XIX, que no espaço da língua alemã elevou a equiparação com o ideal da ciência natural moderna a ponto de modificar o nome. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
Isso não significa que se menospreze ou se limite o rigor metodológico da ciência moderna. As denominadas “ciências hermenêuticas” ou “ciências do espírito” estão sujeitas aos mesmos critérios [318] de racionalidade crítica que caracteriza o método de todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. Mas podem apelar com razão sobretudo para o paradigma da filosofia prática, que em Aristóteles poderia ser chamada também de “política”. Aristóteles classificou essa ciência como “a ciência mais arquitetônica”, uma vez que reunia em si todas as ciências e artes do saber antigo. A própria retórica pertencia a ela. A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos, sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas possibilidades. Mas se a “política”, enquanto filosofia prática, é algo mais que uma técnica suprema, o mesmo podemos dizer da hermenêutica. Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá-lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. Uma vez que inclui a contribuição das ciências nessa relação de consenso que nos liga com a tradição legada a nós numa unidade vital, a própria a hermenêutica não é um simples método nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. Nesse período, a hermenêutica se converteu em teoria metodológica das ciências filológicas. A hermenêutica é antes filosofia. Não se limita a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata igualmente das questões prévias à aplicação de qualquer ciência — como a retórica, tematizada por Platão. Trata-se das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
É evidente que essas ciências se ajustam em boa medida ao conceito moderno de ciência. Mas continuaram mantendo também a antiga tradição do saber humano que marcou desde a Antiguidade a história cultural do Ocidente. Todavia John Stuart Mili, o famoso autor da Lógica indutiva — essa obra fundamental para explicar o surto científico dos séculos XIX e XX — , designou as ciências do espírito com o termo moral sciences, com o nome antigo, portanto. Mas ele comparou seu caráter científico — e isso não é nenhuma piada — com a meteorologia: o grau de confiabilidade dos enunciados das ciências do espírito se assemelha ao prognóstico do tempo, a longo prazo. Isso segue-se evidentemente da extrapolação do conceito de ciência empírica que se impôs com o triunfo das ciências naturais na época moderna. A partir de então uma das tarefas da filosofia tem sido defender a validade autônoma das “ciências humanas”, as humaniora. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
O problema não se limita às ciências do espírito. E evidente que também nas ciências da natureza é somente a teoria que deve confirmar e definir uma autêntica aquisição cognitiva de uma constatação factual. A mera acumulação de fatos não é nenhuma experiência, e menos ainda o fundamento da ciência empírica. Também nesse campo, a relação “hermenêutica” entre fato e teoria é o decisivo. Aquelas tentativas epistemológicas, empreendidas pela escola de Viena, de trabalhar com a proposição protocolaria como indubitavelmente certa pela simultaneidade que se dá entre o observador e o observado, e para construir as ciências naturais sobre essa base, foram refutadas com acerto, a meu ver, já na fase inicial do círculo de Viena (1934) por Mirtz Schlick. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Embora elas não queiram dar-se conta disso, o que julgo válido para nossas ciências do espírito é esse ideal da filosofia prática. Não é por acaso que são chamadas de moral sciences. Com isso não estamos indicando um determinado âmbito de objetos, mas o sumo daquilo em que se objetiva a humanidade: seus feitos e sofrimentos, e suas criações duradouras. A universalidade prática, implícita no conceito de racionalidade (e na falta dessa), abarca a todos nós, e de modo total. Por isso pode ser a instância suprema de responsabilidade para o saber teórico, que como tal não conhece limites nas ciências naturais e nas ciências sociais. Essa é a doutrina da filosofia prática de Aristóteles, também chamada por ele de “política”. A correta aplicação de nosso saber e de nosso poder exige a razão. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Convém lembrar esta pré-história de nossa problemática atual. A consciência metodológica das ciências históricas, que aflora desde o romantismo, e a pressão que exerceu o modelo triunfante das ciências naturais fizeram com que a reflexão filosófica reduzisse a generalidade da experiência hermenêutica a sua forma científica. Nem em Wilhelm Dilthey, que buscou na continuação das ideias de Friedrich Schleiermacher e de seus amigos românticos a fundamentação das ciências do espírito em sua historicidade, nem entre [331] os neokantianos, que perseguiram uma justificação epistemológica das ciências do espírito em forma de filosofia transcendental da cultura e dos valores, estava ainda presente toda a amplitude da experiência hermenêutica fundamental. Talvez esse fato tenha se produzido com maior intensidade no país de Kant e do idealismo transcendental do que em países nos quais les lettres revestem certa importância na vida pública. No entanto, a reflexão filosófica acabou tomando uma direção similar em todas as partes. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Compreende-se assim a importância que foi ganhando o conceito de interpretação. Essa palavra expressava originalmente a relação mediadora, a função do intérprete entre pessoas que falavam idiomas diferentes, a função de tradutor. Daí, ela passou a exercer a função de deciframento de textos de difícil compreensão. No momento em que o mundo intermediário da linguagem se apresenta à consciência filosófica em sua significação predeterminante, a interpretação foi obrigada a ocupar também na filosofia uma espécie de posição-chave. A ascensão triunfal dessa palavra começou com Nietzsche e passou de certo modo a representar um desafio para qualquer tipo de positivismo. Existirá uma realidade que permita buscar com segurança o conhecimento do universal, da lei, da regra, e que encontre aí sua realização? Não é a própria realidade o resultado de uma interpretação? A interpretação é o que oferece a mediação nunca acabada e pronta entre homem e mundo, e nesse sentido a única imediatez verdadeira e o único dado real é o fato de compreendermos algo como algo. A crença nas proposições protocolares como fundamento de todo conhecimento não durou muito inclusive no Círculo de Viena. Mesmo no âmbito das ciências naturais, a fundamentação do conhecimento não pode evitar a consequência hermenêutica de que a realidade “dada” é inseparável da interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Se quisermos atribuir um sentido à linguagem da metafísica, devemos pensar aqui mais detalhadamente. Não me refiro à linguagem em que se desenvolveu antigamente a metafísica, a linguagem filosófica dos gregos. Quero dizer, antes, que as línguas vivas das comunidades de linguagem atuais contêm certos caracteres conceituais que procedem dessa linguagem originária da metafísica. No âmbito científico e filosófico, dizemos que esse é um papel atribuído à terminologia. Mas se nas ciências naturais matemáticas — sobretudo nas experimentais — a adoção de denominações é um ato convencional que serve para designar todos os fenômenos acessíveis e não estabelece nenhuma relação semântica entre o termo adotado internacionalmente e os usos de linguagem dos idiomas nacionais (quem se lembra do grande investigador Volta quando ouve a palavra “volts”?), no caso da filosofia não ocorre o mesmo. Aqui não há uma região de experiência acessível a todos, controlável, designada por termos acordados. Os termos conceituais cunhados no campo da filosofia articulam-se sempre na língua falada da qual procedem. Também nesse caso, a conceituação supõe a restrição da possível multiplicidade de significados de uma palavra, para poder dar-lhe um significado preciso; mas essas palavras conceituais nunca se desligam totalmente do campo semântico no qual possuem todo seu significado. Desligar totalmente uma palavra de seu contexto para inseri-la (horismos) num conteúdo preciso, que a converte em palavra conceitual, corre o risco de esvaziar de sentido seu uso. Assim, a formação de um conceito metafísico fundamental como o de ousia nunca é plenamente realizável sem [366] ter presente também o sentido da palavra grega em sua plena acepção. Por isso, o fato de sabermos que a palavra ousia significou primariamente o sítio rural, e que daí deriva o sentido conceitual de “ser” como presença ou o presente, contribuiu sobremaneira para a compreensão do conceito grego de ser. Esse exemplo mostra que não existe uma linguagem da metafísica. Existe apenas a cunhagem de termos conceituais pensados metafisicamente e extraídos da linguagem viva. Essa cunhagem conceitual pode criar uma forte tradição, como é o caso da lógica e da ontologia de Aristóteles, gerando consequentemente uma alienação que já começa cedo com a cultura escolar helenística e progride na transposição para o latim. Mais tarde acaba formando novamente uma linguagem escolar com a acolhida da versão latina nos idiomas nacionais modernos. Trata-se de uma linguagem em que o conceito vai perdendo cada vez mais o sentido original derivado da experiência do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.
Meu pai era um pesquisador das ciências naturais e pouco amigo dos conhecimentos livrescos, embora soubesse de cor versos de Horácio. Por isso, durante minha infância tentou de muitas maneiras despertar meu interesse pelas ciências naturais e ficou muito decepcionado com seu fracasso. Isso porque soube desde o começo de meus estudos universitários que eu simpatizava com os “professores charlatães”. Ele não impediu, mas durante toda sua vida esteve decepcionado comigo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Mesmo no campo da filosofia já não era viável para nós, os jovens, prosseguir simplesmente o que havia sido criado pela geração anterior. O neokantismo que gozava de uma verdadeira vigência mundial, embora contestada, havia desmoronado nas frentes de batalha junto com a orgulhosa consciência cultural da época liberal, com sua fé no progresso da ciência. Nós, na época jovens, buscávamos uma nova orientação em um mundo desorientado. Nessa [480] situação, vimo-nos reduzidos praticamente ao cenário alemão, onde a amargura e o afã de renovação, a pobreza, a desesperança e a vontade inquebrantável de viver da juventude combatiam entre si. Sua expressão cultural foi inequívoca. O expressionismo na vida e na arte passou a ser a força dominante. Com o prosseguimento do predomínio das ciências naturais, chamando a atenção sobretudo com a teoria da relatividade de Einstein, imperava um verdadeiro sentimento catastrofista nos setores ideológicos da literatura e da ciência, sentimento que induzia a recolher-se em si mesmo, propiciando a ruptura com as antigas tradições. A derrocada do idealismo alemão (como dizia um livro muito citado de Paul Ernst) era só a variante acadêmica da nova consciência histórica. A outra vertente, muito mais ampla, encontrou sua expressão no êxito sensacional da obra A decadência do Ocidente de Oswald Spengler, esse romance sobre a história mundial, entre ciência e fantasia, “tão admirado quanto censurado”… e que acabou sendo o fator decisivo da precipitação de um sentimento histórico como uma incitação própria a questionar a fé moderna no progresso e seus orgulhosos ideais de produtividade. Nessa situação surgiu mais um escrito, de segunda categoria, que teve um efeito revolucionário para mim. Foi o livro de Theodor Lessing (que em um período posterior, muito mais confuso, caiu vítima de um atentado nazista), Europa und Asien, que questionava todo o pensamento produtivo europeu desde a perspectiva da sabedoria do Oriente. Pela primeira vez, vi como se relativizava todo o horizonte que a tradição, a educação, a escola e o entorno haviam formado ao meu redor. Iniciou-se algo que talvez se pudesse chamar de pensamento. Certos escritores importantes me deram alguma orientação. Recordo a grande impressão que, já no primeiro ano de curso de instituto, o escrito de Thomas Mann Betrachtungen eines Unpolitischen (Considerações de um apolítico) produziu em mim. A contraposição fanática entre arte e vida expressada em Tonio Kroger me afetou, e o tom melancólico das primeiras novelas de Hermam Hesse me encantava. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
A segunda parte do trabalho Platos Staat der Erziehung (O Estado como educador em Platão) foi também uma espécie de pretexto. Foi durante a guerra. Um professor da Escola Técnica Superior de Hannover, apelidado Osenberg, havia convencido a Hitler do papel decisivo que desempenha a ciência na guerra, influenciando assim na promoção das ciências naturais e sobretudo na ajuda às novas gerações de investigadores. O que acabou sendo chamado de “ação Osenberg” salvou a vida de muitos jovens investigadores. Isso incitou a inveja dos que se dedicavam às ciências do espírito, até que um membro astuto do partido nazista chegou à feliz ideia de uma “ação paralela” digna do engenho de Musil. Foi a “entrada das ciências do espírito na guerra”. Foi na realidade o início da guerra para as ciências do espírito e nada mais que isso. Para evitar a colaboração no setor filosófico, onde apareciam temas tão belos como Os judeus e a filosofia ou O alemão na filosofia, passei ao setor de filologia clássica. Ali imperava a polidez, e sob a proteção de Helmut Berve surgiu uma interessante obra coletiva, Das Erbe der Antike (0 legado da Antiguidade), que alcançou uma segunda edição, sem modificação alguma, após a guerra. Meu trabalho Platos Staat der Erziehung prolongou o estudo sobre Plato und Dichter e indicou a direção de meus estudos posteriores em suas últimas palavras “o número e o ser”. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Mas isso não expressava toda a dimensão do problema. Também as ciências naturais comportam de certo modo uma problemática hermenêutica. Seu caminho tampouco é o do progresso metodológico, como demonstrou posteriormente Thomas Kuhn. Este pensamento de Kuhn coincidia na verdade com as ideias sugeridas sobretudo por Heidegger em Die Zeit des Weltbildes (A época da imagem de mundo) e em sua interpretação da física de Aristóteles. O “paradigma” é decisivo para o emprego e a interpretação da investigação metodológica e não é evidentemente o simples resultado da mesma. O próprio Galileu já havia expressado essa ideia com o mote mente concipiom. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.
Isso eu não o sabia desde o princípio. Pouco a pouco cheguei à convicção de que aquele Aristóteles tão próximo, cuja precisão conceitual estava insuspeitavelmente unida à intuição, à experiência e ao contato com a realidade, simplesmente não fora o pioneiro a expressar o novo pensamento. Heidegger seguiu, antes, o princípio do Sofista platônico de fortalecer o adversário, e parecia ser quase um Aristóteles redivivas que o atraía globalmente com toda a força da intuição e a audácia de seus conceitos originais. Mas essa identificação a que nos induziam as interpretações de Heidegger era para mim um enorme desafio. Dei-me conta de que meus estudos anteriores, que me levaram por muitos terrenos, sobretudo a ciência da literatura e a história da arte, no campo da filosofia antiga não serviam para nada, campo que servira de base para minha dissertação. Comecei assim um novo estudo planificado da filologia clássica (sob a condução de Paul Friedländer), dando preferência, além dos filósofos gregos, sobretudo a Píndaro, iluminado pelo pensamento de Hölderlin, à época já acessível… Estudei também retórica, cuja função complementar da filosofia pressenti então, e que me acompanhou até a elaboração de minha hermenêutica filosófica. Devo a esses estudos, definitivamente, minha resistência ao forte apelo de identificar-me com o pensamento de Heidegger. Permanecer próximo dos gregos, embora sabendo de sua heterogeneidade, descobrir em sua diferença verdades que estavam esquecidas e talvez continuassem exercendo sua influência de maneira inadvertida, foi para mim o Leitmotiv mais ou menos expresso de todos os meus estudos. Isso porque a interpretação dos gregos por Heidegger implicava um problema que jamais me abandonou, sobretudo depois de Ser e tempo. Por aquela época, para o objetivo a que Heidegger se propunha, era possível, sem dúvida, opor ao conceito existencial da “pre-sença” o puro “ser simplesmente dado” como conceito contrário e derivado extremo, sem distinguir entre a ideia grega do ser e o “objeto dos conceitos das ciências naturais”. Mas isso continha uma provocação, e eu me deixei [487] levar por ela e, sob o estímulo de Heidegger, acabei aprofundando-me na física aristotélica e na gênesis da ciência moderna, sobretudo em Galileu. É possível que publique ainda fragmentos de um comentário incompleto sobre a Física. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.