Isso virá a ser bastante palpável num segundo testemunho, em que Dilthey se refere à independência dos métodos das ciências do espírito e fundamenta-os levando em consideração o seu objeto. Uma tal referência soa, de início, bem aristotélica e poderia gerar uma genuína substituição do modelo das ciências da natureza. No entanto, no que diz respeito a essa independência dos métodos das ciências do espírito, Dilthey continua vinculando-a ao antigo “Natura parendo vincitur” de Bacon — um postulado que faz saltar aos olhos a herança clássico-romântica, que Dilthey queria administrar. Pode-se assim dizer que, mesmo Dilthey, cuja formação histórica forma sua superioridade em face do neokantianismo de sua época, apesar de seus esforços lógicos, no fundo não conseguiu ir além das simples constatações que Helmholtz fez. Pode até ser que Dilthey tenha batalhado muito a favor da independência teorético-cognitiva das ciências do espírito — o que se denomina método na ciência moderna é algo único e o mesmo por toda parte e só especialmente nas ciências da natureza cunha-se como modelar. Não existe nenhum método específico para as ciências do espírito. Mas certamente pode-se indagar, como Helmholtz, quanto significa aqui o método, e se as outras condições, sob as quais se encontram as ciências do espírito, não serão, para sua forma de trabalhar, quem sabe muito mais importantes do que a lógica indutiva. Helmholtz o havia indicado corretamente, quando ele, para satisfazer as exigências das ciências do espírito, salientou a memória e a AUTORIDADE e falou do tato psicológico, que aqui entraria no lugar do concluir (Schliessen) consiste esse tato? Como podemos adquiri-lo? Será que, ao cabo, o que há de científico nas ciências do espírito depende mais do tato do que de sua metodologia? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Disso segue-se — o que a hermenêutica não deveria esquecer nunca — que o artista que cria uma configuração não é o intérprete vocacionado para ela. Como intérprete não tem nenhuma primazia básica de AUTORIDADE face ao que meramente a recebe. No momento em que ele próprio reflete, converte-se em seu próprio leitor. Sua opinião, como produto dessa reflexão, não é padronizadora. O único padrão de interpretação é o conteúdo de sentido da sua criação, aquilo que esta “tem em mente”. A teoria da produção genial realiza, assim, um importante desempenho teórico ao extinguir a diferença entre o intérprete e o autor. Ela legitima a equiparação de ambos, na medida em que o que tem de ser compreendido não é, obviamente, a auto-interpretação reflexiva, mas a intenção inconsciente do autor. E não foi outra coisa que Schleiermacher quis dizer com a sua fórmula paradoxal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Lendo um testemunho como este, pode-se medir como teria de ser forte o passo que deveria conduzir da hermenêutica de Schleiermacher a uma compreensão universal das ciências históricas do espírito. Por mais universal que fosse a hermenêutica desenvolvida por Schleiermacher, tratava-se de uma universalidade limitada por uma barreira muito sensível. Sua hermenêutica tinha em mente, na verdade, textos cuja AUTORIDADE estava firme. Representa obviamente um passo importante (201) no desenvolvimento da consciência histórica o fato de que, com isso, a compreensão e interpretação tanto da Bíblia como da literatura da antiguidade clássica foram liberadas inteiramente do interesse dogmático. Nem a verdade salvadora da Escritura Sagrada, nem o caráter modelar dos clássicos deviam influenciar o procedimento que era capaz de compreender a expressão de vida de todo texto, deixando de lado a verdade do que diz. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Essa ambiguidade tem seu fundamento último na falta de unidade interna de seu pensamento, no resíduo do cartesianismo, donde ele parte. Suas reflexões epistemológicas sobre a fundamentação das ciências do espírito não se coadunam bem com seu ponto de partida na filosofia da vida. Nas suas anotações mais tardias encontra-se um testemunho eloquente. Ali, Dilthey exigirá a toda fundamentação filosófica que se estenda a todo o campo em que “a consciência já tenha sacudido toda AUTORIDADE e procure chegar a um saber válido do ponto de (242) vista da reflexão e da dúvida”. Essa frase parece uma afirmação inocente sobre a essência da ciência e da filosofia da época moderna como tal. Não há como não perceber uma ressonância cartesiana. Na verdade, porém, essa frase encontra sua aplicação em um sentido totalmente diferente, quando Dilthey continua: “Por toda parte a vida conduz a reflexões sobre o que está colocado nela, a reflexão quanto à dúvida, e somente se a vida quiser se firmar frente a esta, então e somente então pode o pensamento acabar sendo um saber válido”. Aqui já não mais existem preconceitos filosóficos que têm de ser superados por uma fundamentação epistemológica ao estilo de Descartes, já que se trata de realidades da vida, de tradições dos costumes, da religião e do direito positivo, que são desintegrados pela reflexão e necessitam de uma nova ordem. Quando Dilthey fala aqui do saber e da reflexão, não está querendo aludir à imanência geral do saber na vida, mas a um movimento dirigido contra a vida. Ao contrário, a tradição dos costumes, da religião e do direito repousa, de sua parte, sobre um saber da vida a partir de si mesma. Inclusive já vimos que na entrega à tradição, na qual certamente está envolvido algum saber, realiza-se a ascensão do indivíduo ao espírito objetivo. Terá de se concordar prazerosamente com Dilthey que a influência do pensamento sobre a vida “procede da necessidade interna de estabelecer algo fixo em meio à mudança inconstante das percepções sensoriais, dos desejos e sentimentos, algo fixo e estável que torne possível um modo de vida continuado e unitário”. Mas esse desempenho do pensamento é imanente à própria vida e se realiza nas objetivações do espírito que, como costumes, direito e religião sustentam o indivíduo, na medida em que este se entrega à objetividade da sociedade. O fato de que, para isso, tenha-se de adotar “o ponto de vista da reflexão e da dúvida” e que esse trabalho se realize “em todas as formas de reflexão e científica (e não fora disso), não se coaduna, em absoluto, com as ideias da filosofia da vida de Dilthey. Antes, aqui se descreve o ideal específico do Aufklärung científico, que bem pouco concorda com a reflexão imanente da vida, justamente ao modo como foi o “intelectualismo” do Aufklärung, contra o qual se orienta a fundamentação de Dilthey no fato da filosofia da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Seguindo a teoria dos preconceitos desenvolvida no Aufklärung, pode-se encontrar a seguinte divisão básica dos mesmos: é preciso distinguir os preconceitos gerados pelo respeito humano, dos preconceitos por precipitação. Essa divisão tem seu fundamento na origem dos preconceitos, na perspectiva das pessoas que os cultivam. O que nos induz a erros é o respeito pelos outros, por sua AUTORIDADE, ou a precipitação que existe em nós mesmos. O fato de que a AUTORIDADE seja uma fonte de preconceitos coincide com o conhecido princípio fundamental do Aufklärung, tal como o formula Kant: tenha coragem de te servir de teu próprio entendimento. Embora a decisão, citada acima, não se restrinja somente ao papel que os preconceitos desempenham na compreensão dos textos, ela encontra seu campo de aplicação preferencial também no âmbito hermenêutico. Pois a crítica do Aufklärung se dirige, em primeiro lugar, contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada Escritura. Enquanto que esta é compreendida como um documento histórico, a crítica bíblica põe em perigo sua pretensão dogmática. Nisso se apoia a radicalidade peculiar do Aufklärung moderno, face a todos os outros movimentos do Aufklärung: que ele tem de se impor frente à Sagrada Escritura e sua interpretação dogmática. Por isso lhe é particularmente central o problema hermenêutico. Procura compreender a tradição corretamente, isto é, isenta de todo preconceito e racionalmente. Mas isso traz uma dificuldade muito especial, pelo mero fato de que a fixação por escrito contém em si própria um momento de AUTORIDADE de peso (277) determinante. Não é fácil consumar a possibilidade de que o escrito não seja verdade. O escrito tem a palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória. Torna-se necessário um esforço crítico especial para que nos liberemos do preconceito cultivado a favor do escrito e distinguir, tanto aqui, como em qualquer afirmação oral, entre opinião e verdade . Seja como for, a tendência geral do Aufklärung é não deixar valer AUTORIDADE alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer por si mesmas. Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe concede. A fonte última de toda AUTORIDADE já não é a tradição mas a razão. O que está escrito não precisa ser verdade. Nós podemos sabê-lo melhor. Essa é a máxima geral com a qual o Aufklärung moderno enfrenta a tradição, e em virtude da qual acaba ele mesmo convertendo-se em investigação histórica. Torna a tradição objeto da crítica, tal qual o faz a ciência da natureza com os testemunhos da aparência dos sentidos. Isso não significa que o “preconceito contra os preconceitos” deva ser levado em tudo às consequências do espiritualismo livre e do ateísmo, como na Inglaterra e na França. O Aufklärung alemão reconheceu de modo absoluto “os preconceitos verdadeiros” da religião cristã. Dado que a razão humana seria demasiado débil para passar sem preconceitos, teria sido uma sorte se tivesse sido educada nos preconceitos verdadeiros. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
a) A reabilitação de AUTORIDADE e tradição VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Para nos aproximarmos deste problema procuraremos agora desenvolver, numa forma positiva, a teoria acima apresentada dos preconceitos que o Aufklärung elaborou a partir de um propósito crítico. No que se refere imediatamente à divisão dos preconceitos em preconceitos de AUTORIDADE e por precipitação, é claro que na base dessa distinção encontra-se a premissa fundamental do Aufklärung, segundo a qual um uso metódico e disciplinado da razão é suficiente para nos proteger de qualquer erro. Esta é a ideia cartesiana do método. A precipitação é a verdadeira fonte de equívocos que induz ao erro no uso da própria razão. A AUTORIDADE, pelo contrário, é a culpada de que nós não façamos uso da própria razão. A distinção se baseia, portanto, numa oposição excludente de AUTORIDADE e razão. O que é digno de se combater é a falsa e prévia aceitação do antigo, das autoridades. O Aufklärung considera, por exemplo, que o grande feito reformador de Lutero consiste em que “o preconceito do respeito humano, especialmente o filosófico (referindo-se a Aristóteles) e o respeito ao papado romano, ficou profundamente debilitado…” A reforma proporciona, assim, o florescimento da hermenêutica que deve ensinar a usar corretamente a razão na compreensão da tradição. Nem a AUTORIDADE do magistério papal nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a atividade hermenêutica, cuja tarefa é defender o sentido razoável do texto contra toda imposição. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
As consequências de uma tal hermenêutica não necessitam ser uma crítica religiosa tão radical como a que se encontra, por exemplo, em Spinoza. Antes, permanece sempre aberta a possibilidade de uma verdade sobrenatural. Nesse sentido, e sobretudo no âmbito da filosofia popular alemã, o Aufklärung limitou, com frequência, as pretensões da razão, reconhecendo a AUTORIDADE da Bíblia e da Igreja. Em Walch, por exemplo, pode-se ler que ele distingue entre as duas classes de preconceitos — AUTORIDADE e precipitação — , neles, porém, ele vê dois extremos, entre os quais é necessário encontrar o correto caminho do meio: a mediação entre a razão e a AUTORIDADE bíblica. A isso corresponde a sua compreensão do preconceito da precipitação, como preconceito a favor do novo, como um tomar de antemão, que leva a descartar precipitadamente as verdades sem outro motivo que o de serem antigas e o de serem atestadas por autoridades. Desse modo, enfrenta os livre-pensadores ingleses (como Collins e outros) e defende a fé histórica contra a norma da razão. O preconceito de precipitação volta a ser reinterpretado aqui, evidentemente, num sentido conservador. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
(283) No entanto, não há dúvida de que a verdadeira consequência do Aufklärung é outra, ou seja, a submissão de toda AUTORIDADE à razão. O preconceito da precipitação deve ser entendido, por consequência, mais ao modo de Descartes, como fonte de todo erro no uso da, razão. Concorda com isso o fato de que a velha divisão retorna com um sentido alterado, após a vitória do Aufklärung, quando a hermenêutica se liberta de todo vínculo dogmático. Assim, por exemplo, lemos em Schleiermacher, que como causas dos mal-entendidos ele divisa a sujeição e a precipitação. Junto aos preconceitos constantes, que procedem das sujeições a que estamos submetidos, aparecem os juízos equivocados momentâneos, devidos à precipitação. Mas a quem trata do método científico só interessam realmente os primeiros. Não chega sequer a ocorrer a Schleiermacher, que entre os preconceitos que afetavam a quem se encontra sujeito a autoridades, também podem haver os que contenham verdade, o que desde sempre estava incluído no conceito mesmo de AUTORIDADE. Sua reformulação da divisão tradicional dos preconceitos testemunha a consumação do Aufklärung. A sujeição só se refere ainda a uma barreira individual da compreensão: “a preferência unilateral por aquilo que se encontra próximo ao círculo de ideias particulares”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Se existem também preconceitos justificados e que possam ser produtivos para o conhecimento, o problema da AUTORIDADE volta a nos ser colocado. Assim, as consequências radicais do Aufklärung, que se encontram ainda na fé metódica de Schleiermacher, não são sustentáveis. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A reivindicação da oposição entre a fé na AUTORIDADE e o uso da própria razão, instaurada pelo Aufklärung, tem sua razão de ser. Na medida em que a validez passa a ser, de fato, uma fonte de preconceitos. Mas com isso não está excluído o fato de que ela pode ser também uma fonte de verdade, o que o Aufklärung ignorou em sua pura e simples difamação generalizada contra a AUTORIDADE. Para nos certificarmos disso podemos nos reportar a um dos maiores precursores do Aufklärung europeu, Descartes. Apesar de toda a radicalidade de seu pensamento metódico, é conhecido que Descartes excluiu as coisas da moral da pretensão de uma reconstrução completa de todas as verdades a partir da razão. Este era o sentido de sua moral provisória. Parece-me de um significado sintomático, o fato de que ele não tenha desenvolvido realmente sua moral definitiva, e que os seus fundamentos, pelo que se pode observar nas suas cartas a Elisabete, mal e mal contêm algo novo. É evidentemente impensável querer esperar da ciência moderna (284) e seus progressos a fundamentação de uma nova moral. De fato, não é só a difamação de toda AUTORIDADE que se converte num preconceito consolidado pelo Aufklärung. Ele levou também a uma grave deformação do próprio conceito de AUTORIDADE. Sobre a base de um esclarecedor conceito de razão e liberdade, o conceito de AUTORIDADE pôde se converter simplesmente no contrário de razão e liberdade, no conceito da obediência cega. Este é o significado que conhecemos a partir do uso linguístico da crítica às modernas ditaduras. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Todavia, não é isso a essência da AUTORIDADE. Na verdade, a AUTORIDADE é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas. Mas a AUTORIDADE das pessoas não tem seu fundamento último num ato de submissão e de abdicação da razão, mas num ato de reconhecimento e de conhecimento: reconhece-se que o outro está acima de nós em juízo e perspectiva e que, por consequência, seu juízo precede, ou seja, tem primazia em relação ao nosso próprio. Junto a isso dá-se que a AUTORIDADE não se outorga, adquire-se, e tem de ser adquirida se a ela se quer apelar. Repousa sobre o reconhecimento e, portanto, sobre uma ação da própria razão que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui a outro uma perspectiva mais acertada. Este sentido retamente entendido de AUTORIDADE não tem nada a ver com obediência cega de comando. Na realidade, AUTORIDADE não tem nada a ver com obediência, mas com conhecimento. (Parece-me que a tendência ao reconhecimento da AUTORIDADE, tal como aparece no livro Vor der Warheit de K. Jasper, p. 766s e no livro Freiheit und Weltverwaltung de Gerhard Krüger, p. 231s, ressente-se de um fundamento evidente, até que esse postulado seja reconhecido.) Sem dúvida que poder dar ordens e encontrar obediência é parte integrante da AUTORIDADE. Mas isso somente provém da AUTORIDADE que alguém tem. Inclusive a AUTORIDADE anônima e impessoal do superior, que deriva das ordens, não procede, em última instância, dessas ordens, mas torna-as possíveis. Seu verdadeiro fundamento é, também aqui, um ato da liberdade e da razão, que concede AUTORIDADE ao superior basicamente porque possui uma visão mais ampla ou é mais consagrado, ou seja, porque sabe melhor. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
(285) É assim que o reconhecimento da AUTORIDADE está sempre ligado à ideia de que o que a AUTORIDADE diz não é uma arbitrariedade irracional, mas algo que pode ser inspecionado principalmente. é nisso que consiste a essência da AUTORIDADE que exige o educador, o superior, o especialista. Sem dúvida que os preconceitos que implantam encontram-se legitimados pela pessoa. Sua validez requer predisposição para com a pessoa que os representa. Mas é exatamente assim que se convertem em preconceitos objetivos, pois operam a mesma predisposição para com uma coisa, que pode ser produzida por outros caminhos, por exemplo, por bons motivos que a razão torna válidos. Nesse sentido a essência da AUTORIDADE pertence ao contexto de uma teoria de preconceitos que tem de ser libertada dos extremismos do Aufklärung. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Para isso podemos nos apoiar na crítica romântica ao Aufklärung. Pois existe uma forma de AUTORIDADE que foi particularmente defendida pelo romantismo: a tradição. O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma AUTORIDADE que se tornou anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a AUTORIDADE do que foi transmitido, e nao somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre essa base, e, mesmo no caso em que, na educação, a “tutela” perde a sua função com o amadurecimento da maioridade, momento em que as próprias perspectivas e decisões assumem finalmente a posição que detinha a AUTORIDADE do educador, esta chegada da maturidade vital-histórica não implica, de modo algum, que nos tornemos senhores de nós mesmos no sentido de nos havermos libertado de toda herança histórica e de toda tradição. A realidade dos costumes, p. ex., é e continua sendo, em âmbitos bem vastos, algo válido a partir da herança histórica e da tradição. Os costumes são adotados livremente, mas não criados por livre inspiração nem sua validez nela se fundamenta. é isso, precisamente, que denominamos tradição: o fundamento de sua validez. E nossa dívida para com o romantismo é justamente essa correção do Aufklärung, no sentido de reconhecer que, à margem dos fundamentos da razão, a tradição conserva algum direito e determina amplamente as nossas instituições e comportamentos. A superioridade da ética antiga sobre a filosofia moral da idade moderna se caracteriza precisamente pelo fato de que, com base no caráter indispensável da tradição, ela fundamenta a passagem da ética à “política”, a arte da legislação correta. Em comparação a isso, o Aufklärung moderno é abstrato e revolucionário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Entretanto, nem por isso o conceito da tradição se tornou menos ambíguo do que o conceito da AUTORIDADE, e pelo mesmo motivo, pois o que determina a compreensão romântica da tradição é a oposição abstrata ao princípio do Aufklärung. O romantismo entende a tradição como o contrário da liberdade (286) racional, e nela vê um dado histórico ao modo da natureza. E, quer se queira combatê-la revolucionariamente, quer se pretenda conservá-la, a tradição se lhe mostra em ambos os casos como a contrapartida abstrata da livre autodeterminação, já que sua validez não necessita fundamentos racionais, pois nos determina de modo inquestionável. Obviamente que o caso da crítica romântica ao Aufklärung não é um exemplo de domínio espontâneo da tradição, no qual o que é transmitido se conserva sem rupturas, a despeito das dúvidas e das críticas. É, antes, uma reflexão crítica própria, que aqui se volta de novo para a verdade da tradição, procurando renová-la, e que poderá receber o nome de tradicionalismo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Vejamos agora o caso da hermenêutica teológica tal como (336) foi desenvolvido pela teologia protestante, na perspectiva de nosso problema. Aqui se pode apreciar claramente uma autêntica correspondência com a hermenêutica jurídica, já que também aqui a dogmática não reveste nenhum caráter de primazia. A verdadeira concreção da proclamação tem lugar na prédica, assim como a do ordenamento legal tem lugar no juízo. Mas aqui há uma importante diferença. Ao inverso do que ocorre no juízo jurídico, a prédica não é uma complementação produtiva do texto que interpreta. A mensagem da salvação não experimenta, em virtude da prédica, nenhum incremento de conteúdo que se possa comparar com a capacidade complementadora do direito que convém à sentença do juiz. Nem sequer se pode dizer que a mensagem de salvação só obtenha uma determinação precisa a partir da ideia do pregador. Ao contrário do que ocorre com o juiz, o pregador não fala ante a comunidade com AUTORIDADE dogmática. É verdade que na prédica se trata de interpretar uma verdade vigente. Mas esta verdade é anúncio, e o que se consegue não depende da ideia do pregador, mas da força da própria palavra, que pode chamar à conversão inclusive através de uma má prédica. O anúncio não pode ser separado de sua realização. Toda fixação dogmática da doutrina pura é secundária. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus e isso significa que a Escritura mantém uma primazia absoluta face à doutrina dos que a interpretam. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Aquele que enfrenta, em toda sua problematicidade reflexiva, essa reflexão que acompanha a verdade das ciências do espírito haverá de preferir invocar uma testemunha insuspeita, sobretudo se fizer parte de um círculo de investigadores da natureza e de leigos que permitem que seu universo de ideias seja determinado pela ciência da natureza: O grande físico Hermann Helmholtz, há cerca de cem anos, falou sobre a diferença entre as ciências da natureza e as ciências do espírito. A justiça e a imparcialidade perspicaz com que ele elaborou o caráter peculiar das ciências do espírito merecem respeito ainda hoje. É verdade que também ele dimensionou o modo de trabalho das ciências do espírito segundo os métodos das ciências da natureza, descrevendo-o a partir destas. Com isso, ficou fácil compreender por que as deduções apreensivas e rápidas com que as ciências alcançam seus resultados não poderiam satisfazer à sua necessidade lógica. Ele percebeu, no entanto, que é este o modo em que as ciências do espírito alcançam a verdade e que são necessárias condições humanas de outra espécie quando se pretende que essas deduções rápidas realmente concluam alguma coisa. Tudo o que pertence aos âmbitos da memória, da fantasia, do tato, da sensibilidade musical e da experiência de mundo tem um caráter diferente dos aparatos de que se serve o investigador da natureza. Elas, sem dúvida, incluem um instrumentado, que no entanto não pode ser feito, mas se desenvolve quando alguém se empenha em trilhar os caminhos da grande tradição da história da humanidade. Por isso, aqui não vale apenas a máxima do Iluminismo: Tem a coragem de servir-te de teu entendimento. Também o contrário tem validade aqui, ou seja, a AUTORIDADE. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 3.
Precisamos pensar bem o que isso significa. A AUTORIDADE não é a superioridade de um poder que exige obediência cega, proibindo de se pensar. A verdadeira natureza da obediência consiste, antes, no fato de não se tratar de um ato desprovido de razão, mas de um próprio mandamento da razão, pressupondo um saber superior (40) no outro, um saber que ultrapassa o próprio saber. Obedecer à AUTORIDADE significa perceber que o outro — assim como a outra voz, que fala a partir da tradição e do passado — pode ver alguma coisa melhor do que nós mesmos. Todo aquele que procurou se iniciar e trilhar o caminho das ciências do espírito sabe disso por experiência. Eu mesmo me recordo que numa ocasião, quando estudante, discutia com um erudito experiente sobre uma questão científica em que eu pensava dominar. De súbito ele me surpreendeu com algo que eu não sabia, e eu perguntei contrariado como ele sabia isto. E sua resposta foi: Quando você tiver a minha idade, saberá por si mesmo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 3.
Mas também o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, não atinge o cerne do problema. O objetivo de todo entendimento e compreensão é o acordo quanto à coisa. Dessa forma, a hermenêutica teve, desde sempre, a tarefa de suprir a falta de acordo ou de restabelecer o acordo, quando perturbado. A história da hermenêutica comprova isso. Por exemplo, quando Santo Agostinho afirma que o Antigo Testamento deve ser mediado pela mensagem cristã, ou quando o protestantismo primitivo se via colocado diante do mesmo problema, ou finalmente na época do Iluminismo, onde, na vontade de alcançar a “compreensão plena” de um texto somente pelas vias da interpretação histórica, tinha-se quase que renunciar ao acordo. Trata-se, pois, de algo qualitativamente novo, quando o romantismo e Schleiermacher, criando uma consciência histórica com alcance universal, já não dão mais valor à figura vinculante da tradição, da qual procedem e na qual estão postados, como uma base sólida para todo esforço hermenêutico. Um dos precursores imediatos de Schleiermacher, o filólogo Friedrich Ast, compreendeu o conteúdo fundamental da tarefa hermenêutica, ao reivindicar para ela o restabelecimento do acordo entre Antiguidade e Cristianismo, entre uma verdadeira antiguidade, vista de modo novo, e a tradição cristã. Frente ao Iluminismo, isso é algo totalmente novo, à medida que agora já não se trata mais de uma mediação entre a AUTORIDADE da tradição, por um lado, e a razão natural, por outro, mas da mediação de dois elementos da tradição, ambos vindos à consciência pelo Iluminismo, que impõe a tarefa de sua reconciliação. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 5.
Essa pergunta é possivelmente uma afronta para a fé que nossa época deposita na ciência. Devemos, porém, considerar essa questão a partir de outra questão ainda mais abrangente, colocada com o surgimento da ciência moderna desde o século XVII e que até não foi solucionada. Toda reflexão sobre as possibilidades de ordenação de nosso mundo deve partir da profunda tensão existente entre a AUTORIDADE da ciência, de um lado, e as formas de vida dos povos, cunhadas pela religião, usos e costumes da tradição, de outro. Conhecemos essa tensão, por exemplo, pelos contactos estabelecidos entre antigas culturas da Ásia ou formas de vida dos assim chamados países subdesenvolvidos com a civilização europeia. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.
Para solucionar esse problema deve-se ter em mente que a ciência se caracteriza justamente por possibilitar a independência com respeito à formação de opinião pública e à política e por ensinar a formação do juízo a partir de uma visão livre. Em seu âmbito mais próprio, essa pode ser a característica mais apropriada de ciência. Mas será que a ciência tem influência sobre o âmbito público por sua própria força? Por mais que a ciência se empenhe intencionalmente em evitar todas as manipulações, a enorme estima (191) pública de que goza se lhe contrapõe. Essa estima limita constantemente a liberdade crítica que ela admira no investigador, invocando a AUTORIDADE da ciência, quando na verdade se trata de lutas políticas de poder. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.
Por que será que, na atual discussão filosófica, o problema da linguagem alcançou uma posição tão central quanto alcançara, há 150 anos, o conceito do pensamento ou do pensamento que pensa a si mesmo? Essa questão serve como resposta à pergunta que se caracteriza como a questão central da modernidade, como nos foi legada pela existência da ciência moderna. Trata-se da seguinte questão: como se relaciona nossa imagem natural de mundo, a experiência de mundo que temos como seres humanos, enquanto estamos vivendo nossa história de vida e nosso destino, com aquela AUTORIDADE intocável e anônima representada pela voz da ciência. Desde o século XVII, a verdadeira tarefa da filosofia consiste em conciliar essa nova investida do saber-fazer e do poder-fazer com o todo de nossa experiência humana de vida. Isso se manifesta em muitos fenômenos, atingindo inclusive a tentativa da geração atual de colocar no ponto central da filosofia o tema da linguagem. A linguagem constitui-se no modo fundamental de realização de nosso ser-no-mundo, a forma de constituição de mundo que tudo envolve. Essa definição nos remete sempre aos enunciados da ciência, congelados em signos destituídos de linguagem, e à tarefa de reconduzir nosso mundo atual, colocado à nossa disposição e arbítrio pela ciência, esse mundo que chamamos de técnica, às ordenações fundamentais de nosso ser. Essas já não são ordenações arbitrárias, que possamos manipular. Devemos apenas honrá-las. VERDADE E METODO II OUTROS 17.
O que é hermenêutica? Gostaria de partir de duas experiências de estranhamento que encontramos no âmbito de significações que atingem nossa existência. Refiro-me à experiência de (220) estranhamento da consciência estética e da consciência histórica. O que quero dizer com isso pode ser expresso com poucas palavras: A consciência estética realiza a possibilidade, cujo valor não podemos negar nem minimizar, de relacionar-nos com a qualidade de uma obra de arte de forma crítica ou afirmativa. Mas isso significa que o que decide sobre a força enunciativa e a validade do que assim julgamos é, em última instância, nosso próprio juízo. Aquilo que recusamos não tem nada a nos dizer ou então recusamo-lo justo porque não tem nada a nos dizer. É isso que caracteriza nossa relação com a arte, no sentido amplo da palavra. Como mostrou Hegel, a arte também abarca todo o mundo religioso greco-pagão, enquanto arte-religião, como modo de experimentar o divino na resposta artística do homem. Quando esse mundo da experiência no seu todo se aliena como objeto de um julgamento estético, acaba perdendo sua AUTORIDADE originária e inquestionável. Nesse sentido, é preciso reconhecer que o mundo da tradição artística, a extraordinária simultaneidade com tantos mundos humanos proporcionada pela arte, é para nós bem mais que um mero objeto de aceitação ou rejeição livre. Ao contrário, o que se apodera de nós como obra de arte já não nos dá liberdade de distanciá-lo, de aceitá-lo ou recusá-lo a partir de nós mesmos. Será também que essas criações do engenho artístico humano, atravessando os milênios, foram feitas para prestar-se a essa aceitação ou recusa estética? Todo artista das culturas religiosas do passado expunha sua obra de arte com o único objetivo de ser aceita no que ela diz e representa e como pertencente ao mundo da convivência humana. A consciência da arte, a consciência estética é sempre uma consciência secundária. É secundária frente à imediata pretensão de verdade que provém da obra de arte. Nesse sentido, quando julgamos algo a partir do ponto de vista de sua qualidade estética, estamos deixando de lado alguma outra coisa que nos atinge muito mais intimamente. Essa alienação ao juízo estético instala-se sempre que alguém se subtrai negligentemente, quando não atende o apelo imediato do que o atinge. É por isso que um dos pontos de partida de minhas reflexões afirma que a soberania estética instalada no âmbito de experiência da arte representa uma alienação frente à verdadeira realidade da experiência que encontramos nas configurações onde se enuncia a arte. VERDADE E METODO II OUTROS 17.
Isso tem consequências no que Heidegger ensinou sobre a produtividade do círculo hermenêutico. Eu próprio formulei esse princípio afirmando que, mais que nossos conceitos, são nossos preconceitos que perfazem nosso ser. Isso é uma formulação provocativa, uma vez que busca restituir o direito ao conceito positivo do preconceito que o Iluminismo francês e inglês expulsou do uso da linguagem. Pode-se mostrar que originalmente o conceito de preconceito ultrapassa o sentido que lhe damos à primeira vista. Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações de nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo. De certo, isso não significa que estejamos cercados por um muro de preconceitos, e que somente permitiríamos o acesso a quem mostrasse seu passaporte, contendo a seguinte inscrição: aqui não se diz nada de novo. Ao contrário, é bem-vindo o hóspede que promete nos trazer algo novo para nossa curiosidade. Mas como vamos reconhecer o hóspede, admitido na nossa companhia, que vai dizer-nos algo novo? Também nossa expectativa e (225) nossa disposição para ouvir o novo não são trazidas necessariamente pelo antigo, onde nos encontramos? A comparação deve servir como uma espécie de legitimação para justificar por que o conceito de preconceito, que contém uma relação interna profunda com o conceito de AUTORIDADE, necessita de uma reabilitação hermenêutica. Como toda comparação, também essa é caolha. A experiência hermenêutica não consiste em que algo esteja fora e cioso para entrar. Ao contrário, somos tomados por algo, e, em virtude disso que nos toma, sentimo-nos abertos para o novo, o outro, o verdadeiro. É o que nos mostra Platão com a bela comparação entre a comida para o corpo e o alimento espiritual: enquanto podemos recusar o primeiro, por exemplo, pelo conselho do médico, o segundo é sempre assimilado. VERDADE E METODO II OUTROS 17.
Mas isso significa que só compreendemos quando vislumbramos os subterfúgios e desmascaramos as falsas presunções? Essa parece ser a pressuposição de Habermas. Pelo menos é o que ele acredita. O poder da reflexão se mostraria somente nesse caso, e sua impotência se mostraria quando ficamos presos à teia da linguagem e continuamos a nela tecer. Ele pressupõe que a reflexão das ciências hermenêuticas “sacode o dogmatismo da práxis vital”. Por outro lado, afirmar que a ação de tornar transparentes os preconceitos que estão na base da estrutura do compreender poderia desembocar no reconhecimento da AUTORIDADE parece-lhe uma afirmação infundada e que comprometeria o legado do Iluminismo — uma violência dogmática! Pode ser também que o conservadorismo (não de um Burke, mas de uma geração que tem atrás de si três grandes convulsões sociais da história alemã, sem jamais ter chegado a uma revolução que abalasse a ordem social vigente) favoreça a visão de uma verdade que facilmente se oculta. Ao desvincular AUTORIDADE e razão da antítese abstrata do Iluminismo emancipatório, afirmando sua relação essencialmente ambivalente, não fiz outra coisa que afirmar algo de evidente, e não se trata de uma “convicção fundamental” (174). VERDADE E METODO II OUTROS 18.
A antítese abstrata do Iluminismo parece-me ignorar algo de (244) verdadeiro, e isto tem consequências funestas. Isso talvez ocorra porque se atribui um falso poder à reflexão, ignorando por motivos ideológicos as verdadeiras dependências. Supondo-se, é claro, que a AUTORIDADE exerça um poder dogmático seguindo uma infinidade de formas de domínio, desde as instituições de ensino, passando pelos comandos do exército e do governo até a hierarquia do poder político ou das autoridades religiosas. Mas essa imagem de obediência que se presta à AUTORIDADE jamais poderá mostrar por que motivo todas essas instituições são ordens e não a desordem de um despotismo do poder. Creio serem razões indubitáveis que me levam a afirmar que é importante reconhecer as verdadeiras relações de AUTORIDADE. Podemos perguntar: em que se baseia esse reconhecimento? De certo, essa AUTORIDADE poderia, muitas vezes, também expressar uma real submissão impotente frente ao poder. Mas isso não é reconhecimento nem se baseia na AUTORIDADE. Basta estudarmos casos de perda e decadência da AUTORIDADE (e o contrário disso) para ver o que é e de que vive. Não vive do poder dogmático, mas do reconhecimento dogmático. E o reconhecimento dogmático não é nada mais que atribuir à AUTORIDADE uma superioridade no conhecimento, acreditando por conseguinte que ela tenha razão. E seu único “fundamento”. Ela domina, portanto, porque é “livremente” reconhecida. A obediência que se lhe tributa não é cega. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
É inadmissível, porém, a suposição de que eu estaria afirmando não haver perda de AUTORIDADE e crítica emancipatória. Se a perda de AUTORIDADE é resultado da crítica emancipatória exercida pela reflexão ou se essa perda se manifesta na crítica e na emancipação, é algo que não interessa abordarmos aqui, e talvez nem se trate de uma verdadeira alternativa. A questão a ser debatida é simplesmente se a reflexão sempre dissolve as relações substanciais ou se pode também assumi-las na consciência. É estranho que Habermas conceba de modo unilateral o processo de aprendizagem e educação que emprego (na perspectiva da ética de Aristóteles). A afirmação de que a tradição deveria ser e continuar sendo a única base para justificar preconceitos, como me atribui Habermas, contradiz minha tese de que a AUTORIDADE repousa no reconhecimento. Quem alcançou a maioridade pode — mas não é obrigado a — acatar, pelo saber, o que aceitava pela obediência. A tradição não representa nenhuma garantia, não, pelo menos, onde a reflexão exige uma garantia. Mas essa é a questão: Onde é que o exige? Em tudo? A isso contraponho a finitude da existência humana e o particularismo essencial da reflexão. Trata-se de saber se devemos estabelecer a função da reflexão do lado da conscientização, que confronta o vigente com outras possibilidades, rechaçando o estabelecido em favor dessas outras possibilidades, mas podendo também assumir conscientemente o que oferece de fato a tradição, ou se a conscientização sempre e somente dissolve o vigente. Quando Habermas (245) afirma (176) que se pode “retirar da AUTORIDADE aquilo que nela era mera dominação (interpreto: o que não era AUTORIDADE), podendo ser dissolvido de forma não violenta pelo saber e pela decisão racional”, já não sei por que estamos ainda discutindo. Sobretudo para saber se as ciências sociais (em virtude de que progressos?!) podem ou não ditar a “decisão racional” a alguém. Mas sobre isso falarei mais adiante. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
A partir do ponto de vista da metafísica, o critério de verdade que deriva a ideia do verdadeiro da ideia do bem e o ser do conceito de inteligência “pura” parece-me bem familiar. O conceito de inteligência pura procede da teoria medieval de inteligência e ganha corpo na figura do anjo que tem o privilégio de ver a Deus em sua essência. Nesse aspecto, parece-me difícil eximir Habermas de uma autocompreensão ontológica falsa, como me pareceu ser o caso da superação do ser natural na racionalidade. Mas Habermas me acusa de falsa ontologização, por exemplo, porque não vejo uma oposição excludente entre AUTORIDADE e Iluminismo. Segundo ele, a falsidade consistiria em pressupor que o reconhecimento legitimador se produz sem violência e sem o acordo que fundamenta a AUTORIDADE (267). Mas não se deveria fazer essa pressuposição. Realmente não? O próprio Habermas não faz essa pressuposição quando reconhece que deveria haver essa concordância livre como a ideia diretriz de uma vida social livre de violência e dominação? Eu mesmo jamais tive em mente essas relações “ideais”. Sempre me referi antes a todos os casos de experiência concreta, nos quais falamos de uma AUTORIDADE natural e do seguimento que essa encontra. Falar sempre de uma comunicação coercitiva, por exemplo, na afirmação de que o amor, a escolha de um modelo ou a submissão voluntária servem sempre de alicerce para estabilizar um superior e um subordinado, parece-me ser um preconceito dogmático em relação ao que significa a “razão” entre os homens. Assim, não consigo ver como no âmbito social a competência comunicativa e seu domínio teórico possam derrubar as barreiras que há entre os grupos, que numa crítica mútua acusam o caráter coercitivo do acordo existente no outro. Nesse caso, parece ser indispensável “a violência suave da iniciativa” (Giegel, 249) e com ela o postulado de uma competência totalmente diferente, ou seja, a da ação política, com o objetivo de possibilitar a comunicação onde ela não existe. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
E claro que isso não se dá sem distinções críticas. Eu diria até que a única crítica real é a que “decide” nessa relação prática. Uma (269) crítica que objeta contra o outro ou contra os preconceitos sociais vigentes seu caráter geral coercitivo, e pretende por outro lado dissolver pela comunicação esse estado de cegueira, creio, com Giegel, que está falsamente situada. Passa por alto certas diferenças fundamentais. No caso da psicanálise, o sofrimento e o desejo de cura constituem a base sólida para uma intervenção terapêutica do médico, que impõe sua AUTORIDADE e se empenha livremente em esclarecer as motivações reprimidas. A base sólida para isso é a livre subordinação de um para com o outro. Na vida social, ao contrário, a resistência do adversário e a resistência ao adversário é uma pressuposição comum a todos. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Isso me parece tão evidente que fico assombrado que meus críticos, tanto Giegel quanto no fundo o próprio Habermas, repitam que, insistindo em minha hermenêutica, pretendo contestar a legitimidade da consciência revolucionária e da vontade de mudança. Quando afirmo frente a Habermas que a relação médico-paciente não é suficiente para o diálogo social, formulando a pergunta: “Frente a qual auto-interpretação da consciência social — e todo costume é uma tal auto-interpretação — posiciona-se a indagação e a sondagem, será que na vontade de mudança revolucionária, e frente qual não?”, estou contrapondo essa pergunta à analogia afirmada por Habermas. No caso da psicanálise, sua resposta se dá mediante a AUTORIDADE do médico bem informado. Mas no âmbito social e político falta uma base específica para a análise comunicativa, cujo tratamento o doente aceita livremente porque conhece sua doença. Por isso, parece-me que essas perguntas não podem ser respondidas do ponto de vista da hermenêutica. Apoiam-se em convicções sociopolíticas. Mas isso não significa que por causa disso a vontade de mudança revolucionária, a diferença de uma confirmação da tradição, não seja suscetível de legitimação. Nem uma nem a outra convicção são suscetíveis nem estão necessitadas de uma legitimação teórica pela hermenêutica. A teoria da hermenêutica nem sequer pode decidir por si se é correta ou não a pressuposição de que a sociedade está dominada pela luta de classes e de que não há nenhuma base para o diálogo entre as classes. Não há dúvidas de que meus críticos ignoram a pretensão de validade que há na reflexão sobre a experiência hermenêutica. De outro modo não poderiam chocar-se com o fato de que toda possibilidade de entendimento pressupõe a solidariedade. Eles partem desse mesmo pressuposto. Nada pode justificar a suposição de que eu lançaria mão, imparcialmente, do “consenso básico” como solidariedade conservadora e não como solidariedade revolucionária. É a ideia da própria razão que não pode renunciar à ideia do consenso geral. Essa é a solidariedade que une a todos. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Outro exemplo da influência da compreensão prévia na investigação da história da hermenêutica é a distinção introduzida por L. Geldsetzer entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética. Com a ajuda dessa distinção entre uma interpretação ligada aos dogmas e apoiada pelas instituições e sua AUTORIDADE, que busca sempre a defesa consequente das normas dogmáticas, e uma interpretação de textos adogmática, aberta, heurística, que leva às vezes a um non liquet, a história da hermenêutica adota uma figura que denuncia a compreensão prévia cunhada pela teoria da ciência moderna. Nessa perspectiva aparece a hermenêutica recente, na medida em que apoia interesses teológico-dogmáticos, numa inquietante proximidade com uma hermenêutica jurídica que se compreende, de forma muito dogmática, como imposição da ordem estabelecida pelas leis. Quando no trabalho de busca jurídica ignoramos o elemento cético na exposição da lei e consideramos a essência da hermenêutica jurídica como uma mera subsunção do caso particular sob a lei geral dada, devemos perguntar se não estamos deformando o conhecimento da hermenêutica jurídica. As ideias mais recentes sobre a relação dialética entre lei e caso particular, com os recursos decisivos que oferece Hegel, parecem modificar nossa compreensão prévia da hermenêutica jurídica. O papel da jurisprudência sempre restringiu o modelo da subsunção. Na verdade, a jurisprudência está a serviço da interpretação correta da lei (e não somente de sua aplicação correta). Algo parecido vale, e com mais razão ainda, para a interpretação da Bíblia, à margem de toda tarefa prática, ou, mutatis mutandis, para a interpretação dos clássicos. Se nesse caso a “analogia da fé” não representa nenhum dado dogmático fixo para a interpretação da Bíblia, a linguagem que permite o acesso do leitor a um texto clássico tampouco pode ser concebida adequadamente se nos orientarmos pelo conceito (279) científico da objetividade e mantivermos o caráter de exemplaridade desse texto para um estreitamento dogmático da compreensão. Creio que a própria distinção entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética é dogmática e deveria desaparecer na análise hermenêutica. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Numa análise mais precisa, vemos que aqui se esgrimem as metáforas conceituais clássicas da retórica contra a submissão dogmática da Escritura sob a AUTORIDADE magisterial da Igreja. Flacius apresenta o scopus como a cabeça ou o rosto do texto que se (287) manifesta às vezes já no título, mas que aflora sobretudo nas linhas-mestras da exposição do pensamento. Desse modo assume e elabora a antiga perspectiva retórica da dispositio. Há que se olhar com cuidado onde, para usar essa imagem, está a cabeça, o peito, as mãos ou os pés, e como os distintos membros e partes se conjugam com o todo. Flacius chega a falar de uma “anatomia” do texto. Aqui está o Platão mais autêntico. Em lugar da mera justaposição de palavras e frases, cada discurso deve organizar-se como um ser vivo, deve ter seu próprio corpo, de modo que não lhes faltem a cabeça nem os pés, mas que os membros centrais e as extremidades se relacionem entre si em boa harmonia e remetam à totalidade. É isso o que diz o Fedro (264 c). Também Aristóteles segue esse esquema conceitual retórico quando em sua Poética descreve a construção de uma tragédia: hosper zoon hen holon. A expressão “isso não tem pés nem cabeça” pertence a essa mesma tradição. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Parece-me um erro considerar essa orientação lógica da hermenêutica como a verdadeira realização da ideia de hermenêutica, como faz H. Haeger. O próprio Dannhauer, um teólogo de Estrasburgo dos inícios do século XVII, professa-se seguidor do Organon de Aristóteles, que o teria libertado das confusões da dialética de sua época. Mas, desconsiderando essa orientação teórico-científica e examinando o conteúdo, vemos que compartilha quase plenamente com a hermenêutica protestante. E, se esquece sua relação com a retórica, ele o faz por referência imediata a Flacius, que teria dedicado suficiente atenção a esse aspecto. Mas, enquanto teólogo protestante, compartilha expressamente do reconhecimento da relevância da retórica. Em sua Hermenêutica sacrae scripturae cita largamente Agostinho para demonstrar que na Sagrada Escritura não existe uma mera ausência de arte (como poderia parecer desde o ideal ciceroniano da retórica), mas um gênero especial de eloquência próprio (289) a homens de AUTORIDADE suprema e a homens quase divinos. Vê-se como o cânon estilístico da retórica humanista continuava vigente no século XVII, uma vez que o teólogo cristão só podia precaver-se apelando para o fato de que ele, com Agostinho, defendia o aspecto retórico da Bíblia. A novidade de sua reorientação racionalista em relação à proposta metodológica da hermenêutica, quanto ao conteúdo, não atinge a substância desta, tal como havia sido inaugurado pelo princípio bíblico da Reforma. O próprio Dannhauer refere-se constantemente às questões teológicas controversas e insiste, como todos os outros luteranos, que a capacidade hermenêutica e a possibilidade de compreender a Sagrada Escritura é comum a todos os homens. Ele também considera a formação hermenêutica um bom instrumento para rebater os papistas. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
A concepção da filosofia prática baseia-se de fato na crítica aristotélica à ideia do bem de Platão. Mas uma análise mais atenta, como tentei demonstrar numa investigação já concluída, irá descobrir que a questão do bem se coloca como se fosse a realização suprema daquela mesma ideia do saber que perseguem as technai e as ciências em suas esferas respectivas. Mas essa questão não se materializa realmente numa ciência suprema que se possa aprender. Esse objeto supremo de aprendizagem que é o bem (to agathon) aparece sempre no elencos socrático com uma função negativa de demonstração. Sócrates nega que as technai constituam um verdadeiro saber. Seu saber específico é a docta ignorantia e se chama, não por acaso, dialética. Só sabe realmente aquele que consegue ir até o fim do discurso e da resposta. Assim também quanto à retórica, esta só poderá ser techne ou ciência na medida em que se tornar dialética. Só pode falar realmente com AUTORIDADE aquele que conheceu como bom e justo aquilo que ele deve comunicar de modo convincente, podendo portanto responsabilizar-se por isso. Mas esse saber do bem e essa capacidade retórica não designam um saber geral “do bem”, mas o saber daquilo que deve ser aqui e agora objeto de persuasão. Mas deve saber igualmente o modo de fazer isso e frente a quem deve fazê-lo. É só quando se conhece a situação concreta exigida pelo saber a respeito do bem que se pode compreender por que a arte de escrever discursos desempenha essa função na argumentação mais ampla. Escrever discursos (307) também pode ser uma arte. É o que reconhece expressamente Platão com sua virada conciliadora rumo a Isócrates. Mas alguém só poderá adquirir essa arte se, além da debilidade da palavra falada, conhecer também a debilidade de todo escrito, podendo assim vir em seu auxílio, como o dialético que sustenta o discurso socorre a debilidade de todo discurso. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
No mais, indiretamente, Strauss deu uma ampla e importante contribuição para a teoria hermenêutica através de sua investigação sobre um problema específico: saber até que ponto se deve levar em conta a tergiversação consciente da verdadeira opinião na compreensão de textos, quando se está sob a violência de ameaças de perseguição da AUTORIDADE ou da Igreja. Foram estudos sobre Maimônides, Halevy e Spinoza, sobretudo, que deram impulso e esse modo de consideração. Não quero pôr em dúvida as (421) interpretações de Strauss, pois parecem amplamente evidentes. Mesmo assim, gostaria de apresentar uma consideração oposta, cuja razão pode ser duvidosa nesses casos, mas que se justifica plenamente em outros casos, como em Platão. A dissimulação consciente, a tergiversação e o fato de esconder a própria opinião não são na verdade o caso extremo, raro de acontecer, de uma situação normal e corriqueira? Do mesmo modo, a perseguição (autoritária ou eclesial, inquisição etc.) não passa de um caso extremo, em comparação com a pressão, deliberada ou não, que a sociedade e a publicidade exercem sobre o pensamento humano. Quando tivermos plena consciência de que um e outro lado não se diferenciam a não ser por uma diferença de grau, então poderemos sentir a dificuldade hermenêutica do problema proposto por Strauss. E como poderemos chegar a uma constatação inequívoca da dissimulação? Desse modo, quando encontramos proposições contraditórias em um autor, não faz sentido tomar as proposições escondidas e ocasionais como expressão de sua verdadeira opinião, como pensa Strauss. Existe também um conformismo inconsciente no espírito humano que tende a tomar por realmente verdadeiro tudo que no geral se mostra como evidente. Existe, por outro lado, também uma tendência inconsciente de experimentar possibilidades extremas, mesmo que nem sempre se deixem conjugar com um todo coerente. O extremismo experimental de Nietzsche é um testemunho irrefutável. O caráter de contraditoriedade pode até ser um critério de verdade privilegiado, mas infelizmente não representa critério algum dentro da atividade hermenêutica. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.
Aquilo que se pode submeter à reflexão é sempre limitado frente àquilo que vem determinado por uma cunhagem prévia. É a cegueira frente a esse fato da finitude humana que conduz ao lema do Iluminismo e à anatematização de toda AUTORIDADE. Mas afirmar que o reconhecimento desse fato já representa um posicionamento político de defesa do vigente é um mal-entendido muito grave. Na verdade, tanto o discurso sobre progresso ou revolução quanto o discurso sobre conservação não passaria de uma simples declamação, se reivindicasse um saber salvador, prévio e abstrato. Pode ser que em circunstâncias revolucionárias encontre aplausos o surgimento dos Robespierres, dos moralistas abstratos, que querem reconstruir o mundo segundo sua própria razão. Mas também é certo que a sua hora vai chegar. Parece-me que vincular o caráter dialético de toda reflexão, sua referência ao previamente dado, com o ideal de um esclarecimento total não passa de uma estranha confusão dos espíritos. Creio que isso é tão errôneo como o ideal de uma total autoclarificação racional do indivíduo, capaz de viver seus impulsos e motivações com controle e consciência plenos. VERDADE E METODO II ANEXOS 29.