Gadamer (VM): aparência

Para o conteúdo da palavra “formação”, que nos é familiar, a primeira importante constatação é a de que o antigo conceito de uma “formação natural”, que se refere à aparência externa (a formação dos membros, uma figura bem formada), e sobretudo à configuração produzida pela natureza (p. ex., “formação de montanha”), foi naquela época quase inteiramente desvinculado do novo conceito. Formação integra agora, estreitamente, o conceito de cultura, e designa, antes de tudo, especificamente, a maneira humana de aperfeiçoar suas aptidões e faculdades. Através de Kant e de Hegel completa-se o cunho que Herder deu ao nosso conceito. Kant ainda não utiliza a palavra “formação” nesse contexto. Ele fala da “cultura” da faculdade (ou da “aptidão natural”), que, como tal, é um ato de liberdade do sujeito atuante. É por isso que, entre os deveres para consigo mesmo, cita o de não deixar enferrujar seus talentos, sem, nesse caso, utilizar a palavra “formação”. Hegel, ao contrário, já fala de formar-se e de formação ao acolher o mesmo pensamento kantiano do dever para consigo mesmo, e Wilhelm von Humboldt, com a capacidade auditiva que o celebriza, já percebe perfeitamente uma diferença de significado entre cultura e formação: “Quando nós, porém, em nosso idioma dizemos formação, estamos com isso nos referindo a algo ao mesmo tempo mais íntimo, ou seja, à índole que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e moral, a se derramar harmonicamente na sensibilidade e no caráter”. Aqui, formação não significa mais cultura, isto é, aperfeiçoamento de faculdades e de talentos. A ascensão da palavra formação desperta, mais do que isso, a antiga tradição mística, segundo a qual o homem traz em sua alma a imagem de Deus segundo a qual ele foi criado, e tem de desenvolvê-la em si mesmo. O equivalente latino para formação é formatio e corresponde noutros idiomas, p. ex., no inglês (em Shaftesbury) a form e formation. Também no alemão existem as correspondentes derivações do conceito de forma, p. ex., Formierung e Formation, há muito tempo em concorrência com a palavra Bildung (formação). Forma vem sendo inteiramente desvinculada de seu significado técnico desde o aristotelismo da Renascença, sendo interpretada de uma maneira puramente dinâmica e natural. Da mesma forma, o triunfo da palavra formação sobre forma não parece só acaso. Porque em “formação” (Bildung) encontra-se a palavra “imagem” (Bild). O conceito da forma fica recolhido por trás da misteriosa duplicidade, com a qual a palavra “imagem” (Bild) abrange ao mesmo tempo “cópia” (Nachbild) e “modelo” (Vorbild). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A doutrina do ideal da beleza alicerça-se sobre a diferença entre a ideia normal e a ideia racional ou ideal da beleza. A ideia normal estética encontra-se em todos os gêneros da natureza. Como deve ser a aparência de um belo animal (p. ex., uma vaca: Myron), isso depende de um padrão de julgamento do exemplar individual. Essa ideia normal é, portanto, uma concepção da força de imaginação, como “imagem do gênero que paira entre todos os indivíduos singulares”. Mas a representação de uma tal ideia normal não agrada através da beleza, mas, só “porque não contradiz nenhuma condição sob a qual, unicamente, uma coisa desse gênero pode ser bela”. Ela não é a imagem originária da beleza, mas, somente da exatidão. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Não pode ser negado que a doutrina das ideias estéticas, através de cuja representação o artista amplia infinitamente o conceito dado e reaviva o livre jogo das forças do ânimo (Gemutskrafte), para o leitor hodierno, tem uma feição infeliz. Tem-se a impressão de que essas ideias poderiam ser adicionadas ao conceito que já as guia, como os atributos de uma divindade à sua figura. A primazia tradicional do conceito racional sobre a representação estética não passível de exposição é tão forte, que até mesmo em Kant surge a falsa aparência de uma antecedência do conceito frente à ideia estética, onde não é de forma alguma a compreensão que conduz, mas a força de imaginação no jogo das capacidades. O teórico da arte encontrará, no mais, suficientes testemunhos, segundo os quais ficaria difícil, para Kant, manter sua ideia-guia da inconcebibilidade do belo, que assegura ao mesmo tempo sua vinculabilidade, sem se ocupar, sem querer, da primazia do conceito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Mesmo pesquisadores interessados na história das palavras, muitas vezes não prestam suficientemente atenção ao fato de que a contradição artística entre alegoria e símbolo, que nos parece auto-evidente, é apenas o resultado do desenvolvimento filosófico dos últimos dois séculos e de cujo início se deve esperar tão pouco que, antes, tem-se de fazer a pergunta pelo modo como, afinal, se chegou à necessidade de uma tal diferenciação e antagonismo. Não se pode deixar passar despercebido que Winkelmann, cuja influência sobre a estética e a filosofia da história foi determinante na sua época, utilizou ambos os conceitos como sinônimos, o qual vale para o todo da literatura estética do século XVIII. Ambos os significados da palavra têm realmente, desde sua origem, algo comum: Em ambas as palavras encontra-se algo caracterizado, que não está na sua aparência visual, no seu aspecto, ou no som da palavra, mas num significado situado para além disso. Que algo esteja, dessa maneira, representando algo diferente é o que faz a comunhão de ambas. Esse relacionamento significativo, através do qual o que não tem sentido ganha sentido, encontra-se tanto no campo da poesia e das artes plásticas, como também no âmbito do religioso-sacramental. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Isso teve consequências de longo alcance. Porque, a partir daí, a arte, como bela aparência, opor-se-á à realidade prática e passará a ser entendida do ponto de vista desse antagonismo. No lugar da relação de uma complementação positiva, que desde os mais antigos tempos havia determinado o relacionamento da arte e da natureza, surge agora a antinomia entre aparência e realidade. Tradicionalmente é a determinação da “arte”, que abrange também toda transformação consciente da natureza para o uso dos homens, o de, no âmbito dos espaços dados e liberados pela natureza, levar a termo sua atividade complementar e preenchedora. Também as “belas artes”, enquanto vistas nesse horizonte, são um aperfeiçoamento da realidade e não um aparente mascaramento, dissimulação ou transfiguração. Quando, porém, o antagonismo da realidade e da aparência cunha o conceito da arte, despedaça-se a moldura abrangente que a natureza forma. A arte torna-se um ponto de vista próprio e alicerça uma reivindicação de predomínio próprio e autônomo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

No fundo, temos de agradecer, antes de mais nada, à crítica fenomenológica aplicada à psicologia e à teoria do conhecimento do século XIX a liberação dos conceitos que impediam uma adequada compreensão do ser estético. Foi isso que demonstrou que nos enganamos em todas as tentativas de se pensar o modo de ser do estético, a partir do ponto de vista da experiência da realidade e de entendê-lo como uma modificação da mesma. Todos esses conceitos, como imitação, aparência, desrealização, ilusão, magia, sonho pressupõem uma relação com um ser verdadeiro, do qual se diferencia o ser estético. No entanto, o retorno fenomenológico à experiência estética ensina que esta não pensa, de forma alguma, com base nessa relação, mas, antes, naquilo que ela experimenta, vê a genuína verdade. A isso corresponde o fato de que a experiência estética, por sua natureza, não pode ser enganada por uma experiência genuína da realidade. Ao contrário disso, o que caracteriza todas as modificações da experiência da realidade, citadas acima, é que a estas corresponde, por necessidade de sua natureza, uma experiência de engano. O que era aparente, se desvenda, o que foi desbalizado, torna-se real, o que era magia, perde sua magia, o que era ilusão, abre-se à vista, o que era sonho, disso nós despertamos. Se a estética fosse aparência, nesse sentido, sua validade poderia então — tal como os horrores do sonho — somente exercer seu domínio enquanto não se duvidasse da realidade do fenômeno, já que iria perder sua verdade ao despertarmos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O deslocamento da determinação ontológica do estético para o conceito da aparência estética tem pois seu fundamento teórico no fato de que o predomínio do modelo de conhecimento das ciências da natureza conduz ao desacreditamento de todas as possibilidades do conhecimento, que se encontram fora dessa nova metodologia. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Voltemo-nos agora para o conceito da diferenciação estética, cuja configuração formativa já descrevemos, e desenvolvemos as dificuldades teóricas que se encontram, no conceito do estético. A abstração ao “estético puro” suspende claramente a si mesma. Isso me parece tornar-se nítido na mais consequente tentativa de desenvolver ao final das diferenciações kantianas uma estética sistemática, o que devemos agradecer a Richard Hamann. Essa tentativa de Hamann notabiliza-se pelo fato de que ele realmente se reporta à intenção transcendental de Kant, demolindo assim o padrão unívoco da arte vivencial. Na medida em que elabora regularmente o momento estético onde quer que o encontre, surgem também formas especiais vinculadas a um fim, como a arte monumental ou a arte do cartaz, a reclamar seu direito estético. Mas também aqui, Hamann apega-se à sua tarefa da diferenciação estética. Pois nela diferencia o estético das relações extra-estéticas, nas quais a situação é a mesma, como a que nós podemos dizer também fora da experiência da arte, que alguém se comporta esteticamente. Portanto, restituir-se-á ao problema da estética sua inteira abrangência e restabelecer-se-á o questionamento transcendental que fora abandonado pelo ponto de partida da arte e pela sua separação entre a bela aparência e a rude realidade. À vivência estética é indiferente se o seu objetivo é ou não real, se a cena é o palco ou a vida. A consciência estética possui uma soberania ilimitada sobre tudo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

De imediato, também aqui se percebe com nitidez, como o ponto de partida da subjetividade extravia a questão. O que não há mais, por um lado, são os jogadores (atores), sendo que o dramaturgo ou o compositor entram na mesma conta dos jogadores (atores). Nenhum deles tem um ser-para-si próprio, que eles afirmam, no sentido de que seu jogo significaria que “só estão jogando”. Se descrevermos do ponto de vista do jogador o que vem a ser o seu jogo, torna-se claro que não se trata de transformação, mas de disfarce. Quem está disfarçado não quer ser reconhecido, mas aparecer como se fosse um outro e ser tido por ele. Aos olhos dos outros gostaria de não ser mais ele mesmo, mas tomado por alguém. Não quer pois que o adivinhemos ou reconheçamos. Faz o papel de outro, mas da mesma forma como nós desempenhamos (spielen) algo na lida prática, isto é, meramente fingindo, simulando e dando a aparência de. Segundo as aparências, quem joga o jogo dessa forma nega, é verdade, a continuidade consigo mesmo e só sonega aos outros, para os quais ele desempenha um papel. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Isso pode ser esclarecido através de uma análise mais exata, na qual pode-se ter em vista, de início, a antiga primazia do que é vivo, o zoon, e especialmente a da pessoa. Pertence à [143] essência da cópia, não ter nenhuma outra tarefa, a não ser a de se igualar ao quadro original na cópia. Isso significa que sua determinação é a de suspender o seu próprio ser-para-si, e passar a servir, inteiramente, à intermediação do que foi copiado. Nesse sentido, a reprodução ideal seria a imagem do espelho, pois ela tem realmente um ser que desaparece; existe somente para quem olha para o espelho, e para além de sua pura aparição ela é um nada. Na verdade, não é, absolutamente, um quadro ou uma cópia, pois não possui nenhum ser-para-si. O espelho reflete de volta a imagem, isto é, o espelho somente torna visível a alguém o que ele espelha, na medida em que se olha para o espelho e se enxerga a sua própria imagem ou seja lá o que for que ali se espelhe. Não é por acaso que, apesar disso, falamos de imagem e não de cópia ou de ação de copiar. Pois na imagem do espelho aparece o próprio ente em imagem, de forma que eu o tenho a ele mesmo na imagem do espelho. A cópia, ao contrário, quer ser vista sempre somente em relação com o que se quer significar com ele. É a cópia que nada mais quer ser do que a reprodução de algo e tem sua única função na identificação do mesmo (p. ex., como foto para um passaporte ou como reprodução em um catálogo de artigos à venda). A cópia anula-se a si mesma, no sentido de que funciona como um meio e que, como todos os meios, perde sua função quando alcançado seu fim. É para si, a fim de que, assim, se anule. Essa auto-anulação da cópia é um momento intencional no ser da própria cópia. Havendo alteração da intenção, p. ex., quando se quer comparar uma cópia com o quadro original, julgando-a quanto à sua semelhança, diferenciando-a, dessa maneira, do quadro original, arroga-se a imposição de sua própria aparência, como qualquer outro meio ou ferramenta que não é utilizada, mas posta à prova. Mas sua função verdadeira não se encontra na reflexão sobre a comparação e a diferenciação, mas na medida em que, sob o fundamento de sua semelhança, remete para o copiado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Aqui então, também a função-guia da imagem do espelho perde sua validade. A imagem do espelho é propriamente mera aparência, isto é, não possui um ser real e, na sua efêmera existência, dá a entender que é dependente da reflexão. Mas é claro que, no sentido estético da palavra, o quadro possui um ser próprio. Esse seu ser como representação, ou seja, justamente aquilo em que não é a mesma coisa com relação ao reproduzido, dá-lhe, em face da mera cópia, a caracterização positiva de ser um quadro. Mesmo as técnicas mecânicas da imagem de nossos dias podem ser utilizadas artisticamente, na [145] medida em que extraem do reproduzido algo que, a um mero olhar, como tal não se encontra ali. Um tal quadro não é uma cópia, pois está representando algo, que sem ele não se representaria assim. Diz algo sobre o quadro original. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Entretanto, já em Husserl se verifica um momento que de [253] fato ameaça despedaçar essa moldura. Sua posição é, na verdade, bem mais do que uma radicalização do idealismo transcendental, e para esse “mais” é característica a função que nele alcança o conceito “vida”. “Vida” não é meramente o “ir vivendo” da atitude natural. “Vida” é também e não menos a subjetividade transcendentalmente reduzida, que é a fonte de todas as objetivações. Assim, sob o título “vida” encontra-se o que Husserl destaca como sua contribuição própria à crítica da ingenuidade objetivista de toda a filosofia precedente. Aos seus olhos, ela consiste em haver revelado o caráter de aparência da controvérsia epistemológica habitual entre idealismo e realismo e, em seu lugar, em haver tematizado a atribuição interna de subjetividade e objetividade. É assim que se esclarece a formulação: “vida produtiva”. “A consideração radical do mundo é pura e sistemática consideração interior da subjetividade que se exterioriza a si mesma no ‘fora’. É como na unidade de um organismo vivo, o qual se pode observar e analisar de fora, mas que somente se pode compreender quando se retrocede até suas raízes ocultas…” Também o comportamento mundano do sujeito, deste modo, não é compreensível nas vivências conscientes e em sua intencionalidade, mas nos “desempenhos” anônimos da vida. A comparação do organismo, que Husserl aqui utiliza, é mais do que uma comparação. Como ele diz expressamente, quer ser tomado ao pé da letra. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seguindo a teoria dos preconceitos desenvolvida no Aufklärung, pode-se encontrar a seguinte divisão básica dos mesmos: é preciso distinguir os preconceitos gerados pelo respeito humano, dos preconceitos por precipitação. Essa divisão tem seu fundamento na origem dos preconceitos, na perspectiva das pessoas que os cultivam. O que nos induz a erros é o respeito pelos outros, por sua autoridade, ou a precipitação que existe em nós mesmos. O fato de que a autoridade seja uma fonte de preconceitos coincide com o conhecido princípio fundamental do Aufklärung, tal como o formula Kant: tenha coragem de te servir de teu próprio entendimento. Embora a decisão, citada acima, não se restrinja somente ao papel que os preconceitos desempenham na compreensão dos textos, ela encontra seu campo de aplicação preferencial também no âmbito hermenêutico. Pois a crítica do Aufklärung se dirige, em primeiro lugar, contra a tradição religiosa do cristianismo, portanto, a Sagrada Escritura. Enquanto que esta é compreendida como um documento histórico, a crítica bíblica põe em perigo sua pretensão dogmática. Nisso se apoia a radicalidade peculiar do Aufklärung moderno, face a todos os outros movimentos do Aufklärung: que ele tem de se impor frente à Sagrada Escritura e sua interpretação dogmática. Por isso lhe é particularmente central o problema hermenêutico. Procura compreender a tradição corretamente, isto é, isenta de todo preconceito e racionalmente. Mas isso traz uma dificuldade muito especial, pelo mero fato de que a fixação por escrito contém em si própria um momento de autoridade de peso [277] determinante. Não é fácil consumar a possibilidade de que o escrito não seja verdade. O escrito tem a palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória. Torna-se necessário um esforço crítico especial para que nos liberemos do preconceito cultivado a favor do escrito e distinguir, tanto aqui, como em qualquer afirmação oral, entre opinião e verdade . Seja como for, a tendência geral do Aufklärung é não deixar valer autoridade alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer por si mesmas. Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe concede. A fonte última de toda autoridade já não é a tradição mas a razão. O que está escrito não precisa ser verdade. Nós podemos sabê-lo melhor. Essa é a máxima geral com a qual o Aufklärung moderno enfrenta a tradição, e em virtude da qual acaba ele mesmo convertendo-se em investigação histórica. Torna a tradição objeto da crítica, tal qual o faz a ciência da natureza com os testemunhos da aparência dos sentidos. Isso não significa que o “preconceito contra os preconceitos” deva ser levado em tudo às consequências do espiritualismo livre e do ateísmo, como na Inglaterra e na França. O Aufklärung alemão reconheceu de modo absoluto “os preconceitos verdadeiros” da religião cristã. Dado que a razão humana seria demasiado débil para passar sem preconceitos, teria sido uma sorte se tivesse sido educada nos preconceitos verdadeiros. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E assim, surge a questão de se saber até que ponto a superioridade dialética da filosofia da reflexão corresponde a uma verdade pautada na coisa ou até que ponto gera tão-somente uma aparência formal. Pois a argumentação da filosofia da reflexão não pode acabar ocultando que a crítica contra o pensamento especulativo, que é exercida do ponto de vista da limitada consciência humana, contém algo de verdade. Isso se mostra muito particularmente nas formas epigônicas do idealismo, por exemplo, na crítica neokantiana da filosofia da vida e da filosofia existencial. Em 1920, Heinrich Rickert, argumentando fundamentalmente a “filosofia da vida”, não conseguiu alcançar o efeito de Nietzsche e de Dilthey, que então começava a exercer sua grande influência. Mesmo que se mostre claramente a contraditoriedade interna de qualquer relativismo, as coisas não deixam de ser como as descreve Heidegger: todas essas argumentações triunfais têm sempre algo de uma tentativa de ataque de surpresa. Por mais convincentes que pareçam, passam ao largo face ao verdadeiro núcleo das coisas. Servindo-se delas se tem razão, e, no entanto, não expressam nenhuma evidência superior, que fosse fecunda. É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime. Mas, o que se consegue com isso? O argumento da reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia contra aquele que o emprega, na medida èm que torna suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se alcança através dessa argumentação não é a realidade do ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do argumentar formal em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O modelo original da argumentação vazia é a pergunta sofística de como se pode perguntar algo que não se conhece. Essa objeção sofística formulada por Platão no Menon, não é superada, neste caso, por uma refutação argumentativamente superior, coisa digna de nota, mas é superada pelo apelo ao mito da preexistência da alma. É um apelo bastante irônico, pois o mito da preexistência e da anamnesis, destinado a resolver o enigma do perguntar e do buscar, não coloca em jogo, na realidade, uma certeza do conhecimento, e que se impõe face à vacuidade das argumentações formais. De outra parte, é uma caracterização clara da debilidade que Platão reconhece no logos o fato de que a crítica à argumentação sofística é fundamentada por ele, não lógica mas míticamente. Tal como a opinião verdadeira é um favor e um dom divino, a busca e o conhecimento do logos verdadeiro não é uma autopossessão do espírito. Mais tarde reconheceremos que a legitimação mítica que Platão dá, aqui, à dialética socrática possui um significado fundamental. Se o sofisma ficasse sem refutação — e argumentativamente não é refutável — esse argumento levaria à resignação. É o argumento da “razão preguiçosa” e possui um alcance verdadeiramente simbólico, na medida em que a reflexão vazia conduz, apesar de sua aparência triunfal, ao descrédito de qualquer reflexão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O próprio Bacon dá ao método que ele forja o título de experimental. Mas convém recordar que em Bacon o termo experimento não se refere sempre somente à organização técnica do investigador naturalista, que acrescenta artificialmente e torna mensuráveis determinados processos sob condições de isolamento. Experimento é também e sobretudo um hábil direcionamento do nosso espírito que é impedido de abandonar-se a generalizações prematuras, que aprende a variar conscientemente as observações que ele impõe à natureza, aprende a confrontar conscientemente os casos mais distantes, na aparência, menos relacionados, e desse modo ir ascendendo gradual e continuamente até os axiomas, pelo caminho de um procedimento de exclusão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Uma segunda maneira de experimentar e compreender o tu consiste em que este é reconhecido como pessoa, mas, apesar de incluir a pessoa na experiência do tu, a compreensão deste continua sendo um modo da referência a si mesmo. Esta auto-referência procede da aparência dialética que a dialética da relação-eu-tu leva consigo. A relação entre o eu e o tu não é imediata, mas reflexiva. A toda pretensão se lhe impõe uma contrapretensão. Assim surge a possibilidade de que cada parte da relação salte reflexivamente por sobre a outra. Ele pretende conhecer por si mesmo a pretensão do outro e inclusive de entendê-lo melhor que ele mesmo se entende. Com isso o tu perde a imediatez com que orienta suas pretensões a respeito de alguém. É compreendido, mas no sentido de que é antecipado e aprendido reflexivamente a partir da posição do outro. Na medida em que esta é uma relação recíproca, perfaz também a realidade da relação-eu-tu. A historicidade interna de todas as relações vitais entre os homens consiste em que, consequentemente, se está lutando pelo reconhecimento recíproco. Este pode adotar graus muito diversos de tensão, até chegar inclusive ao completo domínio de um eu por outro eu. Mas inclusive as formas mais extremas de domínio e servidão são uma autêntica relação dialética da estrutura elaborada por Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

No terreno hermenêutico o correlato dessa experiência do tu é o que se costuma chamar a consciência histórica. A consciência histórica tem notícia da alteridade do outro e do passado em sua alteridade, tal como a compreensão do tu tem notícia do mesmo como pessoal. No outro do passado não busca o caso de uma regularidade geral, mas algo historicamente único. Mas, na medida em que nesse reconhecimento procura elevar-se por inteiro acima de seu próprio condicionamento, fica aprisionado na aparência dialética, pois o que realmente procura é tornar-se ao mesmo tempo senhor do passado. Isto não precisa acontecer nos moldes da pretensão especulativa de uma filosofia da história universal — pode também rebrilhar como o ideal do esclarecimento consumado, que ilumina o caminho de experiência das ciências históricas, como vimos, por exemplo, em Dilthey. Já revelamos a aparência dialética que a consciência histórica produz, e que é correlata da aparência dialética da experiência consumada no saber, quando na nossa análise da consciência hermenêutica descobrimos que o ideal . do esclarecimento histórico é algo irrealizável. Aquele que se crê seguro na sua falta de preconceitos, porque se apoia na objetividade de seu procedimento e nega seu próprio condicionamento histórico, experimenta o poder dos preconceitos que o dominam incontroladamente como uma vis a tergo. Aquele que não quer conscientizar-se dos preconceitos que o dominam acaba considerando erroneamente o que vem a se mostrar sob eles. É como na relação entre o eu e o tu. Aquele que sai reflexivamente da reciprocidade de uma tal relação altera-a e destrói sua vinculatividade moral. Da mesma maneira, aquele que sai reflexivamente da relação vital para com a tradição destrói o verdadeiro sentido desta. A consciência histórica que quer compreender a tradição não pode abandonar-se à forma metódico-crítica de trabalho com que se aproxima das fontes, como se ela fosse suficiente para proteger contra a intromissão dos seus próprios juízos e preconceitos. Verdadeiramente tem que pensar também a própria historicidade. Estar na tradição não [367] restringe a liberdade do conhecer, mas a faz possível, como já o formulamos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

[370] Isso se torna tanto mais claro naqueles questionamentos falsos em que falamos de perguntas tortuosas, tão frequentes na vida prática. Também a uma pergunta tortuosa não pode haver resposta, porque somente na aparência, e não realmente, conduz a essa situação aberta de suspensão, na qual se dá decisão. Não dizemos que a pergunta seja falsa, mas tortuosa, porque, seja como for, nela sempre há uma pergunta, isto é, há a intenção de algo aberto, mas isso não se encontra na direção iniciada pela colocação da pergunta. Tortuoso é o que se perdeu da orientação. O tortuoso de uma pergunta consiste em que esta não contém uma real orientação de sentido e que, por isso, não possibilita resposta. Dizemos o mesmo de afirmações que não são completamente falsas mas tampouco completamente corretas. Também estas determinam-se a partir de seu sentido, isto é, a partir de sua relação com a pergunta: não as podemos chamar falsas porque nelas se percebe algo de verdade, mas tampouco as podemos chamar corretas, porque não correspondem a nenhuma pergunta com sentido e, por isso, não têm verdadeiro sentido, se não as reconduzirmos ao seu verdadeiro lugar. Sentido do que é correto tem que corresponder à orientação traçada por uma pergunta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Tal é a razão pela qual todo compreender é sempre algo mais que um simples reproduzir uma opinião alheia. Quando se pergunta, deixam-se abertas possibilidades de sentido, de maneira que aquilo que tenha sentido possa ser introduzido na própria opinião. Só em sentido inautêntico podemos compreender também perguntas que nós mesmos não fazemos, por exemplo, as que consideramos ou superadas ou sem objeto. Isto significa então que compreendemos como foram colocadas determinadas perguntas sob certas condições históricas. Este compreender perguntas é, na realidade, compreender os pressupostos cuja inconsistência tornou inconsistente, em cada caso, a correspondente pergunta. Pense-se, por exemplo, no perpetuum mobile. O horizonte de sentido dessa classe de perguntas somente está aberto na aparência. Já não são compreendidos como perguntas; pois o que realmente se compreende em tais casos é que neles não há nenhuma pergunta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É sabido que Platão considerava o desamparo da escrita como uma debilidade muito maior do que a que afeta os discursos (to asthenes to logon); não obstante, quando requer ajuda dialética para compensar essa debilidade dos discursos, na medida em que o caso da escrita lhe parece não ter saída, isso não é evidentemente senão um exagero irônico, através do qual procura ocultar sua própria obra literária e sua própria arte. Na realidade, com a escrita ocorre o mesmo que com a fala. Assim como naquela, correspondem-se mutuamente uma arte da aparência e uma arte do pensar verdadeiro, sofística e dialética, existe também, evidentemente, uma dupla arte de escrever, de maneira que uma serve a um pensamento e a outra a outro. Verdadeiramente existe também uma arte da escrita capaz de vir em ajuda do pensar, e a ela deve subordinar-se a arte da compreensão, que proporciona ao escrito idêntico auxílio. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A pergunta que nos guia é, pois, a da conceitualidade de toda compreensão. Somente na aparência se trata de um questionamento secundário. Já vimos que a interpretação conceitual é a maneira de se realizar a própria experiência hermenêutica. Esta é a razão pela qual o problema que nos colocamos agora é tão difícil. O intérprete não sabe que em sua interpretação traz consigo a si mesmo, com seus próprios conceitos. A formulação linguística é tão inerente à opinião do intérprete, que não se torna objetiva para ele em nenhum caso. Por isso, é compreensível que esse aspecto da realização hermenêutica fique completamente despercebido. Mas a isso se acrescenta, de modo especial, que esse conjunto de fatos tenha sido desvirtuado amplamente por teorias linguísticas inadequadas. É claro que uma teoria instrumentalista dos signos, que entenda as palavras e os conceitos como instrumentos disponíveis ou que se tem de pôr à disposição, fica aquém do fenômeno hermenêutico. Se nos ativermos ao que ocorre na palavra e na fala e sobretudo em qualquer conversação com a tradição, levada a cabo pelas ciências do espírito, teremos que reconhecer que em tudo isso se produz uma continuada formação de conceitos. Isto não quer dizer que o intérprete faça uso de palavras novas ou insólitas. Mas o uso das palavras habituais não tem sua origem num ato de subsunção lógica pelo fato de que algo individual é submetido à generalidade do conceito. Recordaremos, pelo contrário, que a compreensão traz em si sempre um momento de aplicação e leva a cabo, desse modo, um constante e progressivo desenvolvimento da formação dos conceitos. E algo que temos de ter presente também agora, se quisermos que a linguisticidade própria da compreensão se liberte do domínio da chamada filosofia da linguagem. O intérprete não se serve das palavras e dos conceitos como o artesão que apanha e deixa de lado suas ferramentas. É forçoso reconhecer, antes, que toda compreensão está intimamente penetrada pelo conceitual e rechaçar qualquer teoria que se negue a aceitar a unidade interna de palavra e coisa. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Isso pode ser reconhecido, e, todavia, sempre iremos perder alguma coisa: é claro que Platão retrocede ante a verdadeira relação entre palavra e coisa. Nesse ponto considerava que a pergunta de como se pode conhecer o ente é na realidade demasiado ampla, e onde fala dela, onde portanto descreve a verdadeira essência da dialética, como ocorre no excurso da sétima carta, a linguisticidade somente aparece como um momento externo de uma não univocidade cambaleante. Faz parte dos pretextos (proteinomena) que procuram se nos impor e que o verdadeiro dialético deve deixar para trás, tal como a aparência sensível das coisas. O puro pensar as ideias, a dia-noia, é, em sua qualidade de diálogo da alma consigo mesma, mudo (aneu phones). O logos é a corrente que, partindo desse pensar, flui ressoando através da boca (reuma dia tou stomatos meta phthoggou): é claro que a sensorialização fônica não pode pretender para si nenhum significado de verdade próprio. Indubitavelmente, Platão não reflete sobre o fato de que a realização do pensamento, concebida como diálogo da alma, implica, por sua vez, uma vinculação, à linguagem. E se na sétima carta se expressa ainda algo disso, essa referência se dá, no entanto, no contexto da dialética do conhecimento, isto é, da orientação de todo o movimento do conhecer na direção do uno (auto). Ainda que aqui se reconheça fundamentalmente a vinculação linguística, esta não aparece, todavia, no seu verdadeiro significado: só é um dos momentos do conhecimento, e todos eles se manifestam em sua provisoriedade dialética [412], a partir da própria coisa, para a qual se dirige o conhecimento. Tem de se concluir, pois, que o descobrimento das ideias por Platão oculta a essência da linguagem ainda mais do que o fizeram os teóricos sofísticos, que desenvolveram sua própria arte (techne) no uso e abuso da linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Resumindo agora o que nos pode ser de utilidade na teologia do verbo, podemos reter, em primeiro lugar, um ponto de vista que mal se tornou expresso na análise precedente, e que tampouco chega a sê-lo apenas no pensamento escolástico, não obstante ser de uma importância decisiva para o fenômeno hermenêutico que a nós interessa. A unidade interna de pensar e dizer-se, que corresponde ao mistério trinitário da encarnação, encerra em si que a palavra interior do espírito não se forma por um ato reflexivo. Aquele que pensa algo, isto é, diz-se algo, refere-se com isso ao que pensa, à coisa. Quando forma a palavra não está voltado, pois, para o seu próprio pensar. A palavra é realmente o produto do trabalho de seu espírito. Este a forma em si, na medida em que produz o pensamento, e o pensa até o final. Mas, à diferença de outros produtos, a palavra permanece inteiramente no espiritual. Este é o motivo da aparência de que se trate de um comportamento voltado para si mesmo, e de que o dizer-se seja uma reflexão. Na realidade não o é. Mas nessa estrutura do pensamento tem seu fundamento o fato de o pensar poder voltar-se reflexivamente para si mesmo e tornar-se presente. A interioridade da palavra, que perfaz a unidade íntima de pensar e falar, é a causa de que se ignore tão facilmente o caráter direto e irreflexivo da “palavra”. Aquele que pensa não passa de um a outro, do pensar ao dizer-se. A palavra não surge num âmbito do espírito, livre, ainda, do pensamento (in aliquo sui nudo). Daqui procede a aparência de que a formação da palavra tem sua origem num voltar-se-para-si-mesmo do espírito. Na realidade, na formação da palavra não opera reflexão alguma. A palavra não expressa o espírito, mas a coisa a que se refere. O ponto de partida da formação da palavra é a própria conjuntura, (a species) que enche o espírito. O pensamento que busca sua expressão não está referido ao espírito mas à coisa. Por isso a palavra não é expressão do espírito, mas se dirige à similitudo rei. A conjuntura pensada (a species) e a palavra são as que estão mais intimamente unidas. Sua unidade é tão estreita, que a palavra não ocupa um lugar no espírito, como um segundo elemento junto à species, mas é aquilo em que se leva a termo o conhecimento, onde a species é pensada por inteiro. Tomás alude a que, no conhecimento, a palavra é como a luz, na qual somente se faz visível a cor. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Tampouco a explicação copernicana do cosmo conseguiu, introduzindo-se no nosso saber, fazer que para nós o sol deixe de se pôr. Não existe nenhuma incompatibilidade entre a sustentação de certas aparências e a compreensão racional de que no mundo as coisas são invertidas. E não é, na realidade, a linguagem o que intervém, promovendo e conciliando, nessa estratificada compreensão da vida? Nossa maneira de falar do pôr-do-sol não é certamente arbitrária, mas expressa uma [453] aparência real. É a aparência que se oferece àquele que não se move. E o sol que nos alcança e nos abandona com seus raios. Nesse sentido, o pôr-do-sol é, para a nossa contemplação, uma realidade (é “relativo ao nosso estar aí”). Em virtude do pensamento, podemos nos livrar dessa evidência da contemplação, construindo um modelo diferente, e, porque podemos fazê-lo, podemos também concordar com a acepção racional que a teoria copernicana oferece. Não obstante, com os olhos dessa “razão” científica, não podemos nem cancelar nem refutar a aparência natural. Isso não somente seria absurdo, porque a dita aparência é para nós uma verdadeira realidade, mas também porque a verdade que nos narra a ciência é, por sua vez, relativa a um determinado comportamento face ao mundo, e não pode pretender ser o todo. Todavia, é a linguagem que põe a descoberto o todo do nosso comportamento com respeito ao mundo, e nesse todo da linguagem, a aparência guarda sua legitimação, tal como a ciência encontra a sua. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Esse conceito do ser em si, como se vê, só se corresponde na aparência com o conceito grego do kath auto. Este último se refere basicamente à diferença ontológica entre o que é um ente, segundo sua substância e sua essência, e aquilo que nele pode ser e que é cambiante. O que pertence à essência permanente de um ente é conhecível também num sentido pregnante, isto é, detém sempre uma correspondência prévia com o espírito humano. Por outro lado, o que é “em si”, no sentido da ciência moderna, não tem nada a ver com essa diferença ontológica entre essencial e inessencial, mas se determina como conhecimento assegurado, que permite a possessão da coisa. As realidades asseguradas são como objeto e a resistência, com a qual se tem de contar. Portanto, e como particularmente Max Scheler mostrou, o que é em si é relativo a um determinado modo de querer e saber. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Quando empregamos a palavra “especulativo”, como a cunhou a filosofia por volta do ano de 1800, isto é, dizendo de alguém que é uma cabeça especulativa ou percebendo que uma ideia pareça muito especulativa, a esse uso da palavra subjaz a ideia do espelhamento. O especulativo é o contrário do dogmatismo da experiência cotidiana. É especulativo quem não se entrega direta e imediatamente à solidez dos fenômenos ou à determinação fixa do que se opina, mas que sabe refletir — hegelianamente falando, que reconhece o “em si” como um “para mim”. E uma ideia é especulativa, quando a relação que nela é enunciada não se deixa pensar como a atribuição inequívoca de uma determinação a um sujeito, de uma propriedade à coisa dada, mas que tem de ser pensada como uma relação especular, na qual o próprio espelhar não é nada mais do que a pura aparência do refletido, tal como o um é o um do outro e o outro é o outro do um. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ninguém poderá pensar, certamente, em querer tornar retroativo esse desenvolvimento e procurar recompor, por exemplo, a categoria metafísica do belo, como a encontramos na filosofia grega, renovando a última reformulação dessa tradição, a estética da perfeição do século XVIII. Por mais insatisfatório que nos tenha parecido o caminho que Kant traçou rumo ao subjetivismo na nova estética, não obstante, Kant conseguiu demonstrar de maneira convincente até que ponto é insustentável o racionalismo estético. Só que não é correto fundamentar a metafísica do belo unicamente sobre a ontologia da medida e da ordem teleológica do ser, a que apela, em última instância, a aparência classicista da estética da regra do racionalismo. De fato, a metafísica do belo não é a mesma coisa que essa aplicação do racionalismo estético. Ao contrário, o retorno a Platão permite reconhecer no fenômeno do belo um aspecto completamente diferente, justamente o que nos vai interessar agora para o nosso questionamento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A “reluzir” não é, portanto, somente uma das propriedades do que é belo, mas perfaz a sua verdadeira essência. A característica do belo, de atrair imediatamente o desejo da alma humana, está fundamentada em seu próprio modo de ser. É o caráter de medida do ente, que não o deixa ser somente o que é, mas que o faz aparecer também como um todo medido em si mesmo e harmonioso. Esta é a abertura (aletheia), de que Platão fala no Filebo e que faz parte da essência do belo. A beleza não é somente simetria, mas é a própria aparência que repousa sobre ela. Ela tem o modo do “aparecer”. Mas aparecer significa aparecer em algo, e, assim, alcançar o aparecimento, por si mesmo, naquilo que recebe sua aparência. A beleza tem o modo de ser da luz. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Procuramos separar novamente essa frase de sua conexão metafísica com a teoria da forma, apoiando-nos outra vez em Platão. Ele foi o primeiro que mostrou como momento essencial doijelo a aletheia, e é muito claro o que queria dizer com isso: o belo, o modo como aparece o bom, manifesta-se a si mesmo no seu ser, representa-se. O que se representa assim não se torna distinto de si mesmo, na medida em que se representou. Não é uma coisa para si, e outra distinta para os demais. Nem sequer se encontra noutra coisa. Não é o resplendor despejado sobre uma forma, e que chega a ela a partir de fora. Ao contrário, a constituição ontológica, própria dessa forma, é brilhar assim, é representar-se assim. Disso resulta que, em relação com o ser belo, o belo tem de ser compreendido ontologicamente sempre como “imagem”. E não há nenhuma diferença entre o fato de que apareça “ele mesmo” ou sua imagem. Já havíamos visto que a característica metafísica do belo era justamente a ruptura do hiato entre ideia e aparência. Com toda segurança, é “ideia”, ou seja, pertence a uma ordenação de ser que se destaca sobre a corrente dos fenômenos como algo consistente em si mesmo. Mas igualmente certo é que aparece por si mesmo. Como vimos, isso não significa, de modo algum, uma instância contra a doutrina das ideias, mas uma exemplificação concentrada de sua problemática. Aí onde Platão invoca a evidência do belo, não necessita reter a oposição entre “ele mesmo” e imagem. É o belo o que simultaneamente põe e supera essa oposição. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A partir desta perspectiva, a teoria de Dilthey descobre um novo aspecto. De imediato pode-se perguntar o que se entende propriamente por liberdade da compreensão. Não será uma mera aparência? Dilthey acredita ser possível liberar a compreensão do conhecimento que se dá por meio de conceitos. Mas será que com isso ele não se referia aos conceitos de uma metafísica desacreditada? Toda nossa compreensão não permanece guiada por conceitos? A compreensão histórica vangloria-se de não ter preconceitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Ao recuperar o sentido da palavra grega que designa a verdade, Heidegger possibilitou em nossa geração um conhecimento promissor. Não foi Heidegger o primeiro a descobrir que Aletheia, significa propriamente desocultação (Unverborgenheit). Heidegger nos ensinou o que significa para o pensamento do ser o fato de a verdade precisar ser arrebatada da ocultação (Verborgenheit) e do velamento (Verhohlenheit) das coisas como um roubo. A ocultação e o velamento pertencem ao mesmo fenômeno. As coisas mantêm-se por si próprias em estado de ocultação; “a natureza ama esconder-se”, teria dito Heráclito. Mas também o velamento pertence à ação e ao falar próprios dos seres humanos, pois o discurso humano não transmite apenas a verdade, mas conhece também a aparência, o engano e a simulação. Há um nexo originário, portanto, entre ser verdadeiro e discurso verdadeiro. A desocultação do ente vem à fala no desvelamento da proposição. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Como objeto de análise, expomos a seguir duas expressões, que aparentemente significam o mesmo, com a intenção de tornar patente uma convergência da coisa (sachliche) que domina a filosofia de hoje, apesar de toda diversidade dos pontos de partida e dos ideais metodológicos. À medida que indicamos a tensão de um problema naquilo que tem a aparência de ser o mesmo, surge imediatamente a força de atuação do mesmo impulso naquilo que se reconhece em sua diferença. Isso não se deixa entrever de imediato no uso da linguagem, já que parece testemunhar a possibilidade de uma completa permuta dessas duas expressões. Dizemos, por exemplo: “isto está na natureza da coisa (Sache)”, mas dizemos também “as coisas (Dinge) falam por si próprias” ou “as coisas falam uma linguagem inequívoca”. Em ambos os casos, trata-se de uma espécie de fórmula de asseveração, que não fornece as razões porque consideramos algo como verdadeiro, pretendendo, ao contrário, descartar a necessidade de uma fundamentação ulterior. Mesmo os dois conceitos utilizados nessas expressões — coisa (Sache) e coisa (Ding) — parecem dizer o mesmo. Ambos os termos parecem referir-se a algo indeterminado. Assim, quando falamos de “natureza” da coisa (Sache) ou de “linguagem” das coisas, também essas expressões têm algo em comum, a saber: negam de modo polêmico tanto a arbitrariedade agressiva no trato com as coisas, quanto em especial o simples ter em mente, as suposições ou afirmações inconsequentes sobre a coisa (Sache), a arbitrariedade das negações ou a obstinação nas opiniões pessoais. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Olhando, porém, mais de perto e adentrando as diferenças secretas do uso da linguagem, desfaz-se a aparência de total permutabilidade. O conceito da coisa (Sache) caracteriza-se sobretudo pelo conceito oposto de pessoa. O sentido dessa contradição entre coisa (Sache) e pessoa reside originariamente na clara precedência da pessoa sobre a coisa (Sache). A pessoa aparece como algo que se deve honrar em seu próprio ser, a coisa (Sache), pelo contrário, [67] como o que é útil, como algo que está inteiramente ao nosso dispor. Deparando-nos agora com a expressão “a natureza da coisa” (Sache), o ponto central é que também isto que nos é útil e está ao nosso dispor, na verdade, tem em si próprio um ser, em virtude do qual pode opor resistência, a partir de sua própria natureza, ao uso impróprio. Dito positivamente: prescreve um comportamento determinado em conformidade com a coisa (Sache). Com isso, porém, inverte-se a precedência da pessoa frente à coisa (Sache). Contrariamente à flexibilidade com que as pessoas adaptam-se umas às outras, a natureza da coisa (Sache) apresenta-se como um dado inalterável, que se deve levar em conta. Dessa forma, o conceito da coisa (Sache) recebe uma ênfase própria, exigindo uma dedicação sem reservas e até mesmo que se deixe de lado toda e qualquer consideração para com as pessoas. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na ideia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua [74] autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a ideia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa ideia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de “convenção”, Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

Já demonstrei em outro lugar que a forma em que se realiza todo diálogo pode ser descrita a partir do conceito de jogo. Para isso é necessário livrar-se de um hábito de pensar que define a essência do jogo a partir da consciência do jogador. Essa definição do jogador popularizada por Schiller apreende a verdadeira estrutura do jogo apenas em sua aparência subjetiva. Jogo é, na verdade, um processo dinâmico (cinético) que abarca os jogadores ou o jogador. Quando falamos de jogo do navio ou de jogo cênico ou do livre jogo das articulações, não se trata de uma mera metáfora. Pelo contrário, a fascinação do jogo para a consciência que joga repousa justamente nessa saída extática de si próprio para um nexo dinâmico que desenvolve sua própria dinâmica. Dá-se jogo quando o jogador individual leva a sério o jogo, isto é, quando entra seriamente no jogo, sem considerar-se apenas um jogador. As pessoas que não conseguem isso, dizemos que não conseguem jogar. Penso que a estrutura fundamental do jogo de estar impregnado de seu espírito — espírito de leveza, de liberdade, do prazer do logro — e nisso impregnar o jogador é aparentada com a estrutura do diálogo, onde se dá a linguagem real. A vontade de o indivíduo reservar-se ou abrir-se já não é determinante para o modo de entrarmos em diálogo mútuo e de sermos levados por ele. O determinante é a lei da coisa que está em questão (Sache) no diálogo, que provoca a fala e a réplica e acaba conjugando a ambas. Assim, quando se dá o diálogo sentimo-nos plenos. O jogo da fala e da réplica prolonga-se para um diálogo interior da alma consigo mesma, como Platão já havia tão bem qualificado o pensamento. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.

Tudo isso já aconteceu no passado. Quem conhece os diálogos platônicos sabe que à época do iluminismo sofista a ideia de um saber objetivo desempenhou uma função universal parecida. Os gregos chamavam-na de Tékhne, o saber a respeito do que é passível de ser produzido e feito, capaz de alcançar sua própria perfeição. O modo e a aparência do objeto a ser confeccionado conformam a perspectiva de todo processo. A escolha dos recursos corretos e do material apropriado, a sucessão artesanalmente correta das diversas fases do trabalho podem ser elevadas a um grau de perfeição ideal que fica contestada a frase citada por Aristóteles: “A tékhne ama a tukhné e a tukhné ama a tékhne”. “A arte ama a sorte e a sorte ama a arte.” Quem domina sua arte não precisa de sorte? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Apesar disso, uma característica essencial de toda técnica é não existir em vista de si mesma, nem por causa de um objeto a ser produzido que tivesse seu fim em si mesmo. O modo e a aparência do objeto a ser produzido dependem do uso a que se destina. O saber fazer de quem produz o objeto de uso não lhe dá nenhum poder, seja para garantir que a coisa produzida seja utilizada convenientemente e nem tampouco que seja utilizada para algo justo. Deveria [161] haver, portanto, um novo saber objetivo que cuidasse do uso correto das coisas, isto é, do emprego dos meios para os fins corretos. E, uma vez que nosso mundo de usos nada mais é que uma trama hierárquica dessas estruturas de meios e fins, surge naturalmente a ideia de uma tékhne superior, de um saber específico que conhece o emprego correto de todo saber específico, uma espécie de saber específico régio: A tékhne política. Tem sentido semelhante ideia? O político, como o especialista dos especialistas? A arte da política, como o maior de todos os conhecimentos objetivos? É certo que Estado nesse caso significa a polis grega e não o mundo. Mas uma vez que o pensamento grego sobre a polis refere-se sempre só à ordem interna da polis e não propriamente ao que chamamos de a grande política das relações internacionais, a questão é simplesmente de escala ou parâmetro. O mundo administrado de maneira perfeita corresponderia exatamente ao ideal da polis. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Creio que o mérito da análise semântica tenha sido o de ter trazido à consciência a estrutura total da linguagem e de ter relacionado a essa estrutura os falsos ideais da unicidade dos signos ou símbolos e da formalização lógica da expressão de linguagem. O grande valor da análise semântica das estruturas da linguagem não consiste apenas em dissolver a aparência de igualdade produzida pelo signo verbal isolado, trazendo à consciência seus sinônimos. Na verdade, a análise semântica dissolve essa aparência mostrando algo ainda mais significativo, a saber, que, em sua singularidade, a palavra-expressão é uma estrutura intransferível e insubstituível. Considero essa segunda contribuição mais significativa porque refere-se a algo que está aquém de toda sinonímia. Na perspectiva da simples designação ou nomeação, a maioria das expressões empregadas para o mesmo pensamento ou das palavras usadas para exprimir a mesma coisa pode admitir distinção, articulação e [175] diferenciação. Todavia, quanto menos os signos verbais singulares forem isolados, tanto mais se individualiza o significado da expressão. O conceito de sinonímia dilui-se cada vez mais. Por fim, resta um ideal semântico, que dentro de um contexto determinado só reconhece ainda uma única expressão e nenhuma outra como a correta, como a palavra acertada. O ápice dessa tendência poderia ser o uso poético da palavra; dentro dele parece intensificar-se essa individualização, que partindo do uso verbal épico e passando pelo dramático chega à configuração lírica poética do poema. Isso se mostra no fato de o poema lírico ser amplamente intraduzível. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Assim, os aspectos retórico e hermenêutico da estrutura da linguagem humana encontram-se perfeitamente compenetrados. Não haveria oradores nem retórica se o entendimento e o consenso não sustentassem as relações humanas; não haveria nenhuma tarefa hermenêutica se não fosse rompido o consenso daqueles que “são um diálogo” e não se precisasse buscar o entendimento. A combinação com a retórica, portanto, possibilita dissolver a aparência de que a hermenêutica estaria restrita à tradição estético-humanista, como se a filosofia hermenêutica estivesse às voltas com um mundo do “sentido” contraposto ao mundo do “real”, que está se ampliando na “tradição cultural”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

É só assim que a palavra adquire sua autopresença no texto literário. Não se limita a tornar presente o que é dito, mas se apresenta a si mesma em sua realidade sonora. Como o estilo é um fator determinante para constituir um texto de qualidade, sem impor-se como mero estilismo, assim também a realidade sonora das palavras e do discurso está intimamente unida com a comunicação de sentido. Mas se o discurso se determina pela busca de sentido e além de sua aparência escutamos e lemos o sentido que ele nos comunica, no texto literário a auto-aparição de cada palavra em sua sonoridade e a melodia do discurso também são relevantes para o conteúdo. Nasce uma tensão peculiar entre o sentido do discurso e [353] a auto-apresentação de sua figura. Cada membro do discurso, cada palavra que se insere na unidade da frase representa uma unidade de sentido ao evocar algo com sua significação. Ao mover-se dentro de sua própria unidade e na medida em que não atua como mero meio para decifrar o sentido do discurso, permite o desenvolvimento da diversidade de sentidos de sua própria força de nomeação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

E certo que o nexo que se cria em forma de linguagem para entender-se está substancialmente recheado de palavrórios, aparência de discurso, que na verdade pode também fazer da conversação um intercâmbio de palavras vazias. Lacan disse com razão que a [365] palavra que não se dirige ao outro é uma palavra vazia. É o que constitui o primado da conversação, que se desenvolve entre pergunta e resposta e constrói assim a linguagem comum. Conhecemos a experiência que se faz na conversa entre pessoas que falam idiomas distintos, mas podem entender-se medianamente: sobre essa base não se pode sustentar uma conversação. No entanto, após diversas tentativas, ambos terminam por falar uma das duas línguas, embora um deles fale bastante mal. Trata-se de uma experiência que qualquer um pode fazer. Esse fenômeno contém um importante ensinamento. Não se dá apenas entre interlocutores de idiomas diferentes, mas também na adaptação recíproca das partes em toda e qualquer conversação na mesma língua. É só a resposta, real ou possível, que faz com que uma palavra seja uma palavra. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Se na atitude de deixar em aberto vemos intenções políticas, como faz Carl Schmitt quando fala do tabu da rainha, então, passamos ao largo do real significado do jogo, ou seja, o colocar-se em jogo testando e experimentando possibilidades. O desenrolar-se do jogo não está empatriado num mundo fechado da aparência estética. Realiza-se como uma constante investida e posicionamento no tempo. A pluralidade produtiva que constitui a essência da obra de arte é uma outra expressão para a determinação da essência do jogo, a saber, o de tornar-se cada vez um evento novo. Nesse sentido fundamental, a compreensão das ciências do espírito concorda plenamente com a experiência imediata da obra de arte. A própria compreensão produzida pela ciência permite o desenvolvimento da dimensão de sentido da tradição e consiste, ela própria, na experimentação e comprovação dessa dimensão de sentido. É justamente !81] por isso que também ela se constitui em acontecimento, como foi mostrado no decorrer desta investigação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO II

Ao contrário, a formulação da hermenêutica filológica, segundo a qual temos de compreender um autor melhor do que ele próprio se compreendeu, como já demonstrei, provém da estética do gênio; originalmente, porém, não passa de uma simples formulação do ideal do Iluminismo buscando explicitar ideias confusas através da análise conceitual. Sua aplicação à consciência histórica é secundária e dá asas à falsa aparência de uma superioridade insuperável do intérprete atual, o que Strauss critica com razão. Quando Strauss argumenta, porém, que mesmo para compreender melhor temos que compreender primeiramente um autor como ele próprio se compreendeu, creio que está subestimando as dificuldades de toda compreensão, porque ignora aquilo que se pode chamar de dialética da proposição. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Quero lembrar que em Helmholtz, no conhecido trecho de que partimos, aquele momento diferente, que distingue o trabalho das ciências do espírito em face das ciências da natureza, não soube caracterizar melhor do que através do adjetivo “artístico”. A essa relação teórica, corresponde positivamente o que podemos denominar de consciência estética. É-nos dado através do ponto de “vista da arte”, que Schiller foi o primeiro a fundamentar. Pois tal qual a arte da “bela aparência” se opõe à realidade — é uma figuração de “espírito alheado”, enquanto aquilo em que Hegel reconheceu a formação. Poder comportar-se esteticamente é um momento da consciência formada. Pois que na consciência estética encontramos as feições que caracterizam a consciência formada: elevação à universalidade, distanciamento da particularidade da aceitação ou rejeição imediata, deixar e fazer valer aquilo que não corresponde à própria expectativa ou à própria preferência. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.