Já dessa segunda frase infere-se que Oetinger associa de antemão o significado humanista-político da palavra, com o conceito peripatético do sensus communis. Em parte, a definição acima soa (immediato tactu et intuitu) à maneira da doutrina aristotélica do nous; a questão aristotélica da dynamis comum, que reúne ver, ouvir etc., é por ele assumida e serve-lhe para a confirmação do verdadeiro segredo divino da vida. O segredo divino da vida é sua simplicidade. Caso o homem a tenha perdido através do pecado original, poderá ainda reencontrar a unidade e a simplicidade através do desígnio da graça de Deus operatio “logou”s. praesentia Dei simplificai diversa in unum (162). A presença de Deus manifesta-se simplesmente na própria vida, nesse “sentido comum”, que diferencia tudo o que é vivo do que é morto — (o pólipo e a estrela do mar que, apesar de toda retaliação, voltam a se regenerar em um novo indivíduo, não são citados por Oetinger casualmente). No homem atua a mesma força de Deus como instinto e excitação interna, a fim de perceber indícios de Deus, e para reconhecer aquilo que tem o maior parentesco com a felicidade e a vida humana. Oetinger diferencia expressamente a suscetibilidade para as verdades comuns, que são úteis aos homens em todos os tempos e em todos os lugares, enquanto verdades “dos sentidos”, das racionais. O sentido comum é um complexo de instintos, isto é, um impulso natural sobre o qual repousa a verdadeira felicidade da vida, sendo, desse ponto de vista, um efeito da presença de Deus. De acordo com Leibniz, os instintos não devem ser compreendidos como afetos, isto é, como confusae repraesentationes. Isso porque não são efêmeros, mas tendências enraizadas e possuem um poder ditatorial, divino e irresistível. O sensus communis, que se apoia neles, é de especial significação para o nosso conhecimento, justamente porque são uma dádiva de Deus. Oetinger escreve: “A ratio rege-se por leis, muitas vezes até mesmo sem Deus, o sentido sempre se rege com Deus. Tal como a natureza se diferencia da arte, assim também se diferencia o sentido da ratio. Deus atua através da natureza num progresso de crescimento concomitante, que se expande regularmente pelo todo — a arte, ao contrário, inicia-se com uma parte determinada qualquer… O sentido imita a natureza, a ratio imita a arte (247). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A hermenêutica pietista fez frente a seu efeito negativo-iluminista conjugando estreitamente, desde A.H. Francke, a aplicação edificante com a interpretação de textos. Aqui desemboca a tradição da antiga retórica e de sua doutrina do papel dos afetos, sobretudo para a doutrina da pregação (sermo), que assumiu um papel decisivo e novo no culto protestante. A influente hermenêutica de J.J. Rambach colocou expressamente a subtilitas applicandi ao lado da subtilitas intelligendi e explicandi, o que corresponde certamente ao sentido da pregação. A expressão subtilitas (sutileza), tirada da reflexão humanista acerca da competição, sugere de forma elegante que a “metodologia” da interpretação — como toda aplicação de regras em geral — exige capacidade de julgamento, o que por sua vez não pode ser garantido por regras. Isso representaria uma constante restrição para a aplicação da teoria à praxis hermenêutica. Além disso, como disciplina teológica auxiliar, a hermenêutica busca, mesmo no final do século XVIII, estabelecer um constante equilíbrio com os interesses dogmáticos (p. ex., em Ernesti e Semler). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Preciso reconhecer assim o fato de que esse é o terreno que a hermenêutica tem em comum com a retórica: o terreno dos argumentos persuasivos (e não dos argumentos logicamente concludentes). Torna-se difícil defender a retórica na cultura científica moderna (o próprio Giegel, quando lança mão de Vico como ilustração, desconhece o caráter racional presente na retórica, ao pensar que algo tão abominável como o in utramque partem disputare deva ser deixado apenas aos demagogos de plantão, considerando Carneades como um desses). Quando a retórica, como se sabe desde antigamente, apela aos afetos, isso não significa que ela [274] abandona o âmbito do racional, e Vico reivindica com razão seu valor próprio: a copia, a riqueza dos pontos de vista. Por outro lado, uma afirmação como a de Habermas, segundo a qual a retórica conteria um caráter coercitivo, devendo ser deixada de lado em nome do diálogo racional livre de coerções, apresenta uma irrealidade espantosa. Se a retórica contém um momento coercitivo, o certo é que a práxis social — e também a práxis revolucionária — seria impensável sem esse momento. Parece-me muito significativo que a cultura científica de nossa época não tenha rebaixado o significado da retórica, mas antes o tenha incrementado, como vemos no caso dos meios de comunicação (ou também na análise acertada que faz Habermas da “opinião pública”). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Uma das teses do Platão mais autêntico (tese que Aristóteles comentou e buscou fundamentar) também é que a essência da retórica não se esgota nessas artes que se podem formular como regras técnicas. Aquilo que fazem os mestres de retórica, criticados por Platão no Fedro, é algo que está “aquém” da verdadeira arte. Pois a autêntica arte da retórica é inseparável do conhecimento da verdade e do conhecimento da “alma”. Platão refere-se ao estado anímico do ouvinte, cujos afetos e paixões o discurso deve despertar para poder persuadir. Esse é o ensinamento do Fedro, e toda a retórica segue assim o princípio do argumentum ad hominem no trato cotidiano com as pessoas até os nossos dias. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
O conjunto de nossas reflexões serve de base para depurar o conceito de expressão de sua nuance moderna subjetivista, voltando a referi-lo ao seu sentido originário que provém da gramática e da retórica. A palavra expressão (Ausdruck) corresponde ao latim expres-sio, exprimere, que designa a origem espiritual do discurso e da escrita (verbis exprimere). Mas na língua alemã o termo recebeu sua primeira cunhagem histórica no uso de linguagem da mística, remetendo à formação neoplatônica dos conceitos, que ainda devem ser investigados. Fora dos escritos místicos, a palavra só é retomada realmente no século XVIII. Ali, amplia seu significado, introduzindo-se ao mesmo tempo na teoria estética, onde acaba tomando o lugar que ocupava o conceito da imitação. Mas também a versão subjetivista, segundo a qual o termo expressão significa expressão do que está no interior, algo como a expressão de uma vivência, está muito longe disso. O que domina é o ponto de vista da comunicação e da comunicabilidade, ou seja, trata-se de encontrar a expressão. Isso significa, porém, encontrar uma expressão que tem por objetivo uma impressão, o que não significa, portanto, uma expressão no sentido de uma vivência. Isso vale sobretudo para a terminologia da música. A teoria musical dos afetos, do século XVIII, não quer referir que na música expressamos a nós mesmos, mas que a música expressa algo, propriamente, afetos, que por seu turno devem impressionar. Encontramos algo semelhante na estética de Sulzer (1765): A expressão não deve ser compreendida primordialmente como expressão das próprias sensações, mas expressão que provoca sensações. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS EXCURSO VI
Do ponto de vista tradicional, essa tem sido considerada uma mera questão de estilo, tendo-se relegado esses fenômenos ao âmbito da retórica, que trata da questão de como persuadir através do apelo aos afetos. Ou então pensa-se esta questão a partir do ponto de vista dos modernos conceitos de estética. Então a “autodoação” aparece como uma qualidade estética, que surge no caráter metafórico da linguagem. O que não se quer admitir é que isso implica um momento do conhecimento. Mas creio que a contraposição entre “lógico” e “estético” é duvidosa onde se trata de falar realmente e não da construção lógica artificial de uma ortolinguagem, como tinha em mente Lorenzen. Não me parece ser uma tarefa menos lógica levar em conta a interferência que há entre a linguagem usual e todos os elementos das linguagens específicas e suas expressões artificiais etc. Esta é a tarefa hermenêutica, em outras palavras, o pólo oposto para a determinação da adequação das palavras. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
Sinto que ainda não se reconheceu suficientemente o âmbito que a hermenêutica partilha com a retórica, a saber, o âmbito dos argumentos persuasivos (e não aquele que obriga a uma conclusão lógica). É o âmbito da práxis e da humanidade como tal, que não encontra sua tarefa onde vige a violência das “conclusões ferrenhas”, as quais exigem submissão incondicional, nem tampouco [467] onde a reflexão emancipatória está certa e segura de seu “entendimento contrafáctico”. Sua tarefa está, antes, onde as partes em conflito devem chegar a uma decisão pela reflexão racional. E aqui a morada da arte de falar e de argumentar (e a sua outra forma silenciosa, a deliberação que pondera consigo mesmo). O fato de a arte de falar dirigir-se também aos afetos, como se vem demonstrando desde antigamente, nem por isso precisa desviar-se do âmbito do racional. Vico acentua com razão um valor pessoal: a cópia, a riqueza dos pontos de vista. Parece-me espantosamente irreal querer atribuir à retórica — como faz Habermas — um caráter coercitivo, que deveria ser superado em favor de um diálogo racional livre de coerção. Com isso não apenas se subestima o perigo da manipulação e de perda da autonomia da razão pela persuasão, mas também a chance de um acordo persuasivo sobre o qual repousa a vida social. Toda práxis social — e verdadeiramente também a práxis revolucionária — não pode ser pensada sem a função da retórica. Isso pode ser ilustrado pela cultura científica de nossa época. Ela colocou na práxis do acordo entre os homens a tarefa gigantesca e crescente de integrar o respectivo âmbito particular do domínio científico das coisas com a práxis da razão social: Aqui entram em jogo os modernos meios de comunicação de massa. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.