O homem é assinalado pela ruptura com o imediato e o natural, o que lhe é exigido através do lado espiritual e racional de sua natureza. “Segundo esse lado ele não é, por natureza, o que deve ser”, razão pela qual tem necessidade da formação. O que Hegel denomina de natureza formal da formação, repousa na sua universalidade. Do conceito de uma elevação à universalidade Hegel consegue entender numa unidade o que sua época compreendia por formação. Elevação à universalidade não é, p. ex., ver-se restringido pela formação teórica e não significa, de forma alguma, apenas um comportamento teórico em oposição a um prático, mas cobre o todo da determinação da essência da racionalidade humana. É da essência universal da formação humana tornar-se um ser espiritual, no sentido universal. Quem se entrega à particularidade é inculto (ungebildet), p. ex., quem cede a uma ira cega, sem medida nem postura. Hegel demonstra que, no fundo, numa tal pessoa está faltando poder de abstração: não consegue deixar de se levar em consideração e ter em vista um sentido universal, pelo qual paute sua particularidade com medida e postura. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
À sua intenção transcendental corresponde, então, o fato de que a “Analítica do gosto” pode extrair exemplos de prazer estético, à vontade, das belezas artísticas naturais, do que seja decorativo, bem como da representação artística. O gênero de existência dos objetos, cuja representação agrada, não tem importância para a natureza do julgamento estético. A “crítica do juízo estético” não pretende ser uma filosofia da arte — por mais que a arte seja um objeto desse juízo. O conceito de “juízo de gosto estético puro” é uma abstração metódica, que está de viés para a diferença entre a natureza e a arte. Por isso, importa reconduzir ao seu padrão as interpretações artístico-filosóficas da estética de Kant, através de um exame mais exato, interpretações que se vinculam especialmente ao conceito de gênio. Para essa finalidade, consideramos a notável e muito controvertida doutrina de Kant sobre a beleza livre e dependente. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
A diferença entre belezas naturais e belezas artísticas, como mais tarde ele mesmo discute (parágrafo 48), não tem aqui significado algum. Mas quando, entre os exemplos de beleza livre, cita, além das flores, também os tapetes de arabesco e a música (“sem tema” ou mesmo “sem texto”), então vemos indiretamente circunscrito tudo o que representa um “objeto sob um determinado conceito”, e que por isso passa a ser uma beleza condicional e não-livre: todo o reino da poesia, das artes pictoriais e da arte da construção, da mesma forma que todas as coisas da natureza, que não vemos como tais somente por sua beleza, como as flores ornamentais. Em todos esses casos o juízo de gosto encontra-se turvado e restrito. O reconhecimento da arte parece impossível a partir da fundamentação da estética no “juízo de gosto puro” — a não ser que o padrão do gosto seja rebaixado a uma mera pré-condição. Pode-se compreender a introdução do conceito de gênio nos trechos mais tardios da “Crítica do juízo”, nesse sentido. Mas isso viria a significar um deslocamento posterior. De início nada se fala disso. Aqui (no parágrafo 16), ao que parece, o ponto de vista do gosto torna-se tampouco uma mera pré-condição, que reivindica, antes, a plenitude da essência do juízo estético e a sua proteção contra a limitação feita por meio dos padrões “intelectuais”. E quando também Kant percebe que pode ser o mesmo objeto que está sendo julgado sob os dois pontos de vista diversos da beleza livre e dependente, o juiz ideal do gosto parece ser aquele que julga segundo “o que ele tem diante dos sentidos” e não segundo “o que tem diante do pensamento”. A verdadeira beleza seria a das flores e dos ornamentos que, no nosso mundo dominado pelos fins, se apresentam de antemão e a partir de si como belezas e que por isso não se torna necessário que, de início, haja uma abstração consciente de um conceito ou finalidade. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
No entanto, mesmo nos primeiros trabalhos de Dilthey nota-se uma certa insegurança no significado da palavra vivência. Verifica-se isso bastante bem, principalmente num trecho em que Dilthey, nas edições posteriores, faz desaparecer a palavra vivência: “Em correspondência ao que ele vivenciou e, de acordo com a sua ignorância do mundo, ele co-fantasiou como vivência”. De novo volta-se a falar de Rousseau. Mas uma vivência co-fantasiada já não quer se adequar corretamente ao sentido originário da palavra “vivenciar” — nem mesmo quanto ao uso que Dilthey deu à sua própria linguagem científica mais tarde, onde vivência significa justamente o imediatamente dado, que é o último material para toda a configuração de uma fantasia. A cunhagem da palavra “vivência” lembra, claramente, a crítica ao racionalismo do Aufklärung, que, partindo de Rousseau, deu validade ao conceito da vida. Deve ter sido a influência de Rousseau sobre o classicismo alemão que deu vigor ao padrão do “ser vivenciado”, possibilitando assim a formação da palavra “vivência”. O conceito da vida forma, porém, também o pano de fundo metafísico, que sustenta o pensamento especulativo do idealismo alemão, e que desempenha um papel fundamental tanto para Fichte como para Hegel, mas também para Schleiermacher. Em face da abstração do entendimento, bem como em face da particularidade da percepção ou da representação, esse conceito implica a vinculação à totalidade, e ao infinito. Isso é o que se pode perceber nitidamente no tom da palavra vivenciada até os nossos dias. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Devemos nos conscientizar de que o aparecimento de tais indagações implica numa revisão fundamental dos conceitos básicos e estéticos. Isso porque, claramente, trata-se aqui de mais do que uma mudança reiterada do gosto e da avaliação estética. Mais do que isso, o conceito da consciência estética torna-se, ele mesmo, duvidoso — e com isso o ponto de vista da arte a que pertence. Será que, em face da obra de arte, o comportamento estético é uma atitude adequada? Ou será que o que denominamos “consciência estética” é uma abstração? A nova avaliação da alegoria, de que falamos, indica que, na verdade, também na consciência estética há um momento dogmático que firma sua validade. E causa diferença entre a consciência mítica e estética não deva ser absoluta, será que o conceito da arte não passará a ser, ele mesmo, questionável, por ser, como vimos, uma criação da consciência estética. Seja como for, não podemos duvidar de que as grandes épocas da história da arte foram aquelas em que a gente se acercava de configurações, sem qualquer consciência estética e sem o nosso conceito de “arte”, configurações, cuja função de vida, religiosa ou profana, era compreensível para todos e não era degustável para ninguém apenas esteticamente. Pode-se acaso aplicar a elas o conceito de consciência estética, como tal, sem restringir seu verdadeiro ser? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O que chamamos de obra de arte e vivenciamos esteticamente repousa, portanto, sobre um desempenho de abstração. Na medida em que não se leva em consideração tudo em que uma obra se enraíza, como seu contexto de vida originário, isto é, toda função religiosa ou profana em que se encontrava e em que possuía seu significado, é aí que se tornará visível a “pura obra de arte”. A abstração da consciência estética produz, nesse particular, um desempenho que é, para si mesma, positivo. Permite ver e ser para si próprio aquilo que é a pura obra de arte. Denomino esse seu desempenho a “diferenciação estética”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Com isso — diferenciando-se da diferenciação que exerce um gosto preenchido e determinado em selecionar e rejeitar — deve-se caracterizar a abstração, que, como tal, somente pratica uma seleção em relação à qualidade estética, como tal. Ela completa-se na autoconsciência da “vivência estética”. A que está dirigida a vivência estética, há de ser a obra verdadeira — aquilo de que ela prescinde, são os momentos extra-estéticos que lhe são aderentes: fim, função, significado de conteúdo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Esses momentos podem ser suficientemente significantes, na medida em que incorporam a obra ao seu mundo e só com isso determinam toda a abundância do significado, que lhe é próprio originariamente. Mas a natureza artística da obra tem de se diferenciar de tudo isso. E o que justamente define a consciência estética que realiza justo essa diferença entre o que está intencionado (Gemeinte) esteticamente e tudo que é extra-estético. Faz a abstração de todas as condições de acesso sob as quais uma obra se apresenta a nós. Uma tal diferenciação é pois, ela mesma, especificamente estética. Diferenciada a qualidade estética de uma obra, de todos os momentos que refiram conteúdo, que nos determinam a uma tomada de posição moral, religiosa e também quanto ao conteúdo. Da mesma forma, diferencia nas artes reprodutivas, o original (a poesia, a composição) de sua execução, e isso de tal maneira que tanto o original, em face da reprodução, como a reprodução em si, diferentemente do original ou de outras possíveis versões, pode ser o intencionado estético. O que perfaz a soberania da consciência estética, é poder realizar por toda parte uma tal diferenciação e poder ver tudo “esteticamente”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
1.3.2. Crítica da abstração da consciência estética VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Voltemo-nos agora para o conceito da diferenciação estética, cuja configuração formativa já descrevemos, e desenvolvemos as dificuldades teóricas que se encontram, no conceito do estético. A abstração ao “estético puro” suspende claramente a si mesma. Isso me parece tornar-se nítido na mais consequente tentativa de desenvolver ao final das diferenciações kantianas uma estética sistemática, o que devemos agradecer a Richard Hamann. Essa tentativa de Hamann notabiliza-se pelo fato de que ele realmente se reporta à intenção transcendental de Kant, demolindo assim o padrão unívoco da arte vivencial. Na medida em que elabora regularmente o momento estético onde quer que o encontre, surgem também formas especiais vinculadas a um fim, como a arte monumental ou a arte do cartaz, a reclamar seu direito estético. Mas também aqui, Hamann apega-se à sua tarefa da diferenciação estética. Pois nela diferencia o estético das relações extra-estéticas, nas quais a situação é a mesma, como a que nós podemos dizer também fora da experiência da arte, que alguém se comporta esteticamente. Portanto, restituir-se-á ao problema da estética sua inteira abrangência e restabelecer-se-á o questionamento transcendental que fora abandonado pelo ponto de partida da arte e pela sua separação entre a bela aparência e a rude realidade. À vivência estética é indiferente se o seu objetivo é ou não real, se a cena é o palco ou a vida. A consciência estética possui uma soberania ilimitada sobre tudo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
De fato, fazemos bem em nos lembrar de Aristóteles. Foi quem demonstrou que toda aisthesis se dirige a um universal, mesmo quando acontece que cada sentido tem seu campo específico e que nele o que é dado de imediato não é, enquanto tal, universal. Mas a percepção específica de uma situação dada dos sentidos é, como tal, uma abstração. Na verdade, vemos o que, sensorialmente, nos é dado perceber individualizadamente, sempre em relação a um universal. Reconhecemos, p. ex., um fenômeno branco como um ser humano. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Essa visão negativa significa positivamente: a arte é conhecimento e a experiência da obra de arte torna esse conhecimento partilhável. Com isso se coloca a pergunta de como se poderá fazer jus à verdade da experiência estética e de como suplantar a radical subjetivação do estético, que teve início com a “Crítica do juízo estético” de Kant. Já mostramos que foi uma abstração metódica, tendo por finalidade um trabalho de fundamentação bem determinado e transcendental, que levou Kant a vincular o juízo estético inteiramente ao estado do sujeito. Se, em seguida, essa abstração estética foi entendida do ponto de vista do conteúdo, e foi transformada na exigência de compreender a arte “meramente do ponto de vista estético”, vemos agora como essa exigência de abstração para a experiência real da arte depara-se com uma contradição insolúvel. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
O uso metafórico tem, como sempre, também aqui uma primazia metódica. Quando uma palavra é transposta para um campo de aplicação ao qual originariamente não pertence, então o significado originário e próprio surge como se tivesse sido realçado. Nesse caso, a linguagem antecipou uma abstração, que, em si, é tarefa da análise conceitual. Então o pensamento só precisa avaliar essa concessão antecipada. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A mesma coisa e de maneira semelhante vale para o espetáculo teatral em si e para aquilo que ele é enquanto poesia. A encenação de um espetáculo teatral não pode ser separada dele como algo que não pertence ao seu ser essencial, já que é tão subjetivo e fluente como as vivências estéticas, nas quais é experimentado. Antes, na execução e somente nela — o mais claro exemplo é o da música — encontra-se a obra, ela mesma, tal qual no culto encontra-se a divindade. Aqui se torna visível o proveito metódico que se obtém, partindo-se do conceito de jogo (espetáculo). A obra de arte não é simplesmente isolável da “contingência” das condições de acesso sob as quais se mostra, e onde essa isolação acaba ocorrendo, o resultado é uma abstração, que reduz o ser próprio da obra. O espetáculo só acontece onde está sendo representado, e música em plenitude deve soar. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Voltemos a nos lembrar da fórmula utilizada acima, da “transformação em configuração”. O jogo (espetáculo) é configuração — essa tese significa: a despeito de sua dependência do tornar-se-representado, é um todo significante, que como tal pode ser representado repetidas vezes e entendido em seu sentido. A configuração é, porém, também jogo (espetáculo), porque — a despeito dessa sua unidade ideal — somente alcança seu ser pleno a cada novo tornar-se-representada. É a mútua pertença de ambas as partes o que temos de acentuar contra a abstração da diferenciação estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Ela poderá apelar, especialmente, para aquilo que, segundo o uso da linguagem corrente, se chama um “quadro”. Sob essa designação, entendemos, sobretudo, o quadro de parede contemporâneo, que não está fixado em lugar determinado, e cercado pela moldura, a si mesmo se representa inteiramente — possibilitando, por isso mesmo, uma justaposição ao gosto de cada um, tal qual se vê na galeria moderna. Um tal quadro, ao que parece, não tem absolutamente nada em si da dependência objetiva de intermediação, que realçamos na obra literária e na música. Esse quadro, que é pintado exclusivamente para a exposição ou galeria, o que foi se tornando regra com o recuo da arte por encomenda, vem claramente ao encontro da exigência de abstração da consciência estética, bem como da teoria da inspiração, que foi formulada na estética do gênio. O quadro parece pois dar razão à imediaticidade da consciência estética. É como se fosse a principal testemunha com relação à sua exigência universal e não se trata, visivelmente, de nenhuma coincidência casual o fato de que a consciência estética, que desenvolve o conceito da arte e do artístico como forma de concepção de configurações tradicionais, e que, com isso, realiza a diferenciação estética, é simultânea com a criação de acervos que reúnem no museu tudo o que, nesse sentido, estamos vendo. Com isso, tornamos toda obra de arte ao mesmo tempo num quadro; ao livrá-la de todas as suas relações vitais e do que há de especial nas suas condições de acesso, como um quadro, colocamo-la cercada por uma moldura e penduramo-la igualmente na parede. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A questão pelo modo de ser do quadro, que colocamos aqui, indaga por algo que é comum a toda diversidade de modos de apresentação do quadro. Com isso, ela dedica-se a uma abstração. Mas essa abstração não é nenhuma arbitrariedade da reflexão filosófica, mas algo que ela encontra realizado pela consciência estética, para a qual tudo que se deixa subordinar à técnica de imagem da atualidade, no fundo, torna-se quadro. Nessa aplicação do conceito do quadro não se encontra, certamente, nenhuma verdade histórica. A atual pesquisa artístico-histórica poderá nos instruir de uma forma abundante, sobre o fato de que, isso a que chamamos quadro possui uma história diferenciada. No fundo, a plena “soberania do quadro” diz respeito somente ao conteúdo do quadro (Theodor Hetzer) da fase de desenvolvimento da pintura ocidental, alcançada pela alta renascença. Somente aqui passamos a ter quadros que se estabelecem por si mesmos e que, sem moldura e sem o emolduramento do ambiente, já são, a partir de si, configurações unitárias e fechadas. Podemos, por exemplo, na exigência da concinnitas, que L.B. Alberti impõe ao quadro, reconhecer uma boa expressão teórica do novo ideal de arte, que determina a configuração dó quadro na Renascença. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
De todas essas ponderações, justifica-se caracterizar o modo de ser da arte, no seu todo, através do conceito da representação, o qual abarca do mesmo modo jogo como quadro, comunhão como representação. A obra de arte será entendida, com isso, como um acontecimento do ser e desfaz-se sua abstração, na qual a diferenciação estética a coloca. Também o quadro é um acontecimento da representação. Sua relação com o quadro original é tampouco uma redução de sua autonomia de ser, que nós, ao contrário, tendo em vista o quadro, tivemos motivo para falar de um crescimento de seu ser. O emprego de conceitos jurídico-sacrais mostrou-se, a partir daí, como um mandato. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Em conjunto com as investigações lógicas sobre a essência da expressão e do significado, que foram realizadas nas últimas décadas, a estrutura da referência, que pertence a todas essas formas de representação, foi elaborada de uma maneira especialmente intensa. Lembremo-nos aqui dessas análises, embora com outra intenção. O que nos importa, de momento, não é o problema do significado, mas a essência do quadro. Queremos compreender sua peculiaridade, sem nos deixar enganar pela abstração exercida pela consciência estética. Por essa razão, importa passar em revista esses fenômenos da referência, para fixar o que lhes é comum e o que os difere. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A essência do quadro encontra-se ao mesmo tempo, no meio, entre dois extremos. Esses extremos de representação são o puro referir — a essência do sinal — e o puro fazer as vezes de outro (Vertretten) — a essência do símbolo. De ambos há alguma coisa na essência do quadro. Sua representação contém o momento da referência àquilo que nele é representado. Vimos que isso sobressai com maior nitidez em formas especiais como o portrait, para o qual é essencial a relação com o quadro original. Mesmo assim, um quadro não é um sinal. Pois um sinal não é nada mais do que aquilo que exige a sua função; e essa é a de referir de si para outra coisa. Para poder preencher essa função, é preciso que, de início, ele atraia a atenção para si. Tem de chamar a atenção, ou seja, tem de destacar-se nitidamente e apresentar-se no seu conteúdo referencial — como um cartaz. No entanto, nem um sinal e nem um cartaz são um quadro. Não irá atrair a si, a ponto que alguém se demore olhando-o, pois deve proporcionar apenas algo momentaneamente, que não está presente, e isso de tal modo, que apenas o não presente é aquilo a que se tem em mente. Não tem o direito, portanto, de nos convidar, através de seu próprio conteúdo de quadro, a nos demorarmos. A mesma coisa vale para todos os sinais, p. ex., para sinais de trânsito ou para sinais indicativos e similares. Também estes têm algo esquemático e abstrato, porque não querem mostrar-se a si mesmos, mas sim o não-presente, p. ex., a próxima curva ou a página até onde o livro já foi lido. (Mesmo com relação a sinais naturais, p. ex., prenúncios do temporal vale o fato de que só possuem a sua função de referência através da abstração. Quando nós, ao olharmos para o céu, nos sentimos tomados, por exemplo, pela beleza de um fenômeno celeste e nos demoramos admirando-o, experimentamos um deslocamento de intenção, que faz recuar o seu ser de sinal.) VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Ela não é tal, se apenas estiver de qualquer modo, em algum lugar qualquer, como um edifício que comprometesse a paisagem, mas somente o é quando representa a solução de uma “tarefa arquitetônica”. Por isso a também ciência da arte só considera os edifícios que contêm algo que mereça sua consideração, e chama-os de “monumentos arquitetônicos”. Quando um edifício é uma obra de arte, não representa somente a solução artística de uma tarefa arquitetônica, proposta pelo contexto de finalidade e de vida a que a obra pertence originariamente, senão que, de uma certa forma, a solução mantém também esse contexto, de maneira que ele está ali de modo patente, ainda que sua manifestação atual esteja já muito afastada de sua determinação de origem. Há algo nele que alude ao original. E quando essa determinação original se tornou completamente irreconhecível, ou a sua unidade acaba por romper-se ao cabo de tantas transformações em sucessivos tempos, o próprio edifício se torna incompreensível. A arte arquitetônica, a mais estatuária de todas as espécies de arte, é a que torna mais patente até que ponto a “distinção estética” é secundária. Um edifício não é nunca primariamente uma obra de arte. A determinação do objetivo, pelo qual ele se integra no contexto da vida, não pode separar-se dela, sem que perca algo de sua própria realidade. Se ele for ainda apenas objeto de uma consciência estética, sua realidade será pura sombra e já não vive mais senão sob a forma degenerada do objeto turístico ou de reprodução fotográfica. A “obra de arte em si” se apresenta como uma pura abstração. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Com o fim de dar uma ideia antecipada da questão e de relacionar as consequências sistemáticas do que desenvolvemos até aqui com a ampliação que experimenta agora o nosso questionamento, faremos bem se nos ativermos de imediato à tarefa hermenêutica que nos coloca o fenômeno da arte. Por mais que tenhamos conseguido evidenciar, que a “diferenciação estática” é uma abstração, que não está em condições de suspender a pertença da obra de arte ao seu mundo, também continua sendo inquestionável, que a arte jamais é apenas passado, mas consegue superar a distância dos tempos através da presença de seu próprio sentido. Dessa maneira, o exemplo da arte nos mostra, em ambas as direções, um caso muito qualificado da compreensão. A arte não é mero objeto da consciência histórica, no entanto a sua compreensão co-implica sempre uma mediação histórica. Como se irá determinar, face a isso, a tarefa da hermenêutica? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Entretanto, o interesse que motivou Schleiermacher a essa abstração metodológica não era o do historiador, mas o do teólogo. Ele queria ensinar como se deve entender o discurso e a tradição escrita, porque o interesse está numa tradição única, a Bíblia, que importa à doutrina da fé. Por isso, sua teoria hermenêutica estava muito longe de uma historiografia que pudesse servir de organon metodológico às ciências do espírito. Sua meta era a apresentação determinada de textos, meta à qual devia servir também o comum dos nexos históricos. Esta é a barreira de Schleiermacher, frente à qual a concepção histórica do mundo não poderia ficar de pé. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Por isso, ainda que se faça abstração da enorme influência que, a princípio, o empirismo inglês e a teoria do conhecimento das ciências da natureza exercem sobre Dilthey como se eles deformassem suas verdadeiras intenções, não é fácil de apreender essas intenções em uníssono. Devemos a Georg Misch um passo importante nessa direção. Mas como o propósito de Misch era confrontar a posição de Dilthey com a orientação filosófica da Fenomenologia de Husserl e da ontologia fundamental de Heidegger, é a partir dessas contraposições contemporâneas que se descreve a discrepância interna da orientação de Dilthey, de uma “filosofia da vida”. E a mesma coisa pode-se dizer da meritória exposição de Dilthey, de O.F. Bollnow. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Enquanto a hermenêutica de Schleiermacher repousava sobre uma abstração metodológica artificial, que procurava produzir uma ferramenta universal para o espírito, mas que se propunha, como objetivo, trazer à fala com a ajuda dessa ferramenta, à força salvadora da fé cristã, para a fundamentação das ciências do espírito de Dilthey a hermenêutica representava mais do que um instrumento. É o médium universal da consciência histórica, para a qual não existe nenhum outro conhecimento da verdade do que compreender a expressão e, na expressão, a vida. Na história tudo é compreensível. E isso porque tudo é texto. “Tal qual as letras de uma palavra têm vida e a história, um sentido”. Assim a investigação de Dilthey sobre o passado histórico acaba sendo pensada como um deciframento e não como uma experiência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Esse é, na minha opinião, o ponto onde a investigação de Yorck engata de maneira particularmente fecunda. Da correspondência de vida e autoconsciência a investigação obtém uma diretriz metódica a partir da qual determina a essência e a tarefa da filosofia. Projeção e abstração são os seus conceitos-guia [258]. Projeção e abstração perfazem o comportamento vital primário. Mas valem também para o comportamento histórico recorrente. E a reflexão filosófica somente alcança a sua própria legitimação, na medida em que também ela corresponde a essa estrutura da vitalidade e só na medida em que faz isso. Sua tarefa é compreender os resultados da consciência a partir da sua origem, compreendendo-os como resultado, isto é, como projeção da vitalidade originária e de ssua cisão originária. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Com isso, o conde Yorck eleva à categoria de um princípio metódico o que Husserl, mais tarde, irá desenvolver amplamente na sua fenomenologia. Compreende-se, dessa maneira, como foi possível que se encontrassem, no geral, dois pensadores tão diversos como Husserl e Dilthey. O retorno a posições anteriores à abstração do neokantismo torna-se comum a ambos. Yorck concorda com ambos, e no entanto, ele oferece ainda mais que isso. Pois não retrocede até a vida apenas com intenção epistemológica, senão que retém também a relação metafísica de vida e autoconsciência, da forma como Hegel a havia elaborado. E é nisso que Yorck se mostra superior a Husserl e a Dilthey. As reflexões epistemológicas de Dilthey, como vimos, acabaram errando o alvo no momento em que derivou a objetividade da ciência, num raciocínio excessivamente curto, a partir do comportamento vital e sua busca do estável. A Husserl faltou, de modo absoluto, uma determinação mais próxima do que é a vida, embora o núcleo da fenomenologia, a investigação das correlações acompanhem, segundo a coisa em causa, o modelo estrutural da relação vital. O conde Yorck, porém, estende a ponte que sempre fazia falta entre a Fenomenologia do espírito de Hegel e a Fenomenologia da subjetividade transcendental de Husserl. Não obstante, os fragmentos que nos legou não mostram como pensava evitar a metafisização dialética da vida, que ele mesmo reprova em Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Ou não será isso um novo reflexo romântico, uma espécie de robinsonada do Aufklärung histórico, a ficção de uma ilha inalcansável, tão artificial quanto o próprio Robinson, o presumível fenômeno originário do solus ipse? Tal como cada indivíduo não é nunca indivíduo solitário, pois está sempre entendendo-se com os outros, da mesma maneira o horizonte fechado que cercaria uma cultura é uma abstração. A mobilidade histórica da existência humana apoia-se precisamente em que não há uma vinculação absoluta a uma determinada posição, e nesse sentido tampouco existe um horizonte fechado. O horizonte é, antes, algo no qual trilhamos nosso caminho e que conosco faz o caminho. Os horizontes se deslocam ao passo de quem se move. Também o horizonte do passado, do qual vive toda vida humana e que está aí sob a forma da tradição, põe em movimento o horizonte abrangente. Na consciência histórica este movimento tão-somente se torna consciente de si mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A lógica de pergunta e resposta, desenvolvida por Collingwood, põe fim ao tema do problema permanente, que subjaz à relação dos “realistas de Oxford” com os clássicos da filosofia, assim como ao conceito da história dos problemas, desenvolvida pelo neokantismo. A história dos problemas somente seria história de verdade se reconhecesse a identidade do problema como uma abstração vazia e admitisse a mudança dos questionamentos. Pois na realidade não existe um ponto exterior à história, a partir do qual se pudesse pensar a identidade de um problema na mudança de suas tentativas históricas de solução. É verdade que toda compreensão de textos filosóficos requer que se reconheça o que neles se conheceu. Sem este reconhecimento nunca entenderíamos nada. Não obstante, nem por isso nos subtraímos ao condicionamento histórico no qual nos encontramos e a partir do qual compreendemos. O problema que reconhecemos não é, de fato, simplesmente o mesmo, se é que se quer entendê-lo em sua realização que contenha uma autêntica pergunta. Somente nossa miopia histórica nos permite tê-lo como o mesmo. O ponto de vista, a partir de um posicionamento superior, a partir do qual se poderia pensar sua verdadeira identidade, é uma pura ilusão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Poderemos ver agora a razão disso. O conceito do problema formula evidentemente uma abstração, ou seja, a eliminação do conteúdo de uma pergunta, da pergunta que o abre pela [382] primeira vez. Refere-se ao esquema abstrato a que se deixam reduzir, e sob o qual se deixam subordinar as perguntas reais e realmente motivadas. Um “problema” nesse sentido já caiu fora do nexo motivado das perguntas, donde ele recebe a univocidade de seu sentido. Mas isso é tão insolúvel como toda pergunta que não tem um sentido unívoco, porque não está nem realmente motivada nem realmente colocada. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Isso confirma também a origem do conceito do “problema”. Este não pertence ao âmbito daquelas “refutações bem-intencionadas”, nas quais se exige a verdade das coisas, mas sim, ao âmbito da dialética como um instrumento de luta para aturdir ou desconcertar o adversário. Em Aristóteles, “problema” diz respeito ao gênero de perguntas que se mostram como alternativas abertas, porque tudo fala a favor de ambos os lados, e porque não cremos poder resolvê-las com fundamentos, já que são perguntas demasiadamente grandes. Os problemas não são, pois, verdadeiras perguntas que sejam colocadas e que recebam com isso o prelineamento de sua resposta a partir de sua gênese de sentido, já que são alternativas da opinião que não podemos mais que deixar de lado, e que por isso somente admitem um tratamento dialético. Este sentido dialético de “problema” não tem seu lugar na filosofia, mas na retórica. Faz parte de seu conceito que não seja possível uma decisão unívoca fundamental. Esta é a razão pela qual, para Kant, o uso do conceito de problema se restringe à dialética da razão pura. Os problemas são “tarefas que surgem por inteiro do seu seio”, portanto, produtos da própria razão, cuja completa solução, esta não pode esperar. É significativo que no século XIX, com a quebra da tradição imediata do perguntar filosófico e com o surgimento do historicismo, o conceito de problema ascenda a uma validez universal. E um indício de que já não existe uma relação imediata com as perguntas da filosofia, pautadas na coisa. Desse modo, caracteriza-se o desconcerto da consciência filosófica, face ao historicismo, no fato de que buscou refúgio na abstração do conceito de problema e não viu problema algum na questão de saber como os problemas realmente “são”. A história dos problemas, tal qual a cultiva o neokantismo, é um filho bastardo do historicismo. A crítica ao conceito de problema, realizada com os meios de uma lógica de pergunta e resposta, tem que destruir a ilusão de que os problemas estão aí como as estrelas no céu. A reflexão sobre a experiência hermenêutica reconduz os problemas a perguntas que se colocam e que têm seu sentido na sua motivação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A unidade interna de linguagem e pensamento é também a premissa de que parte a linguística. Somente assim pôde se converter em ciência. Pois somente porque existe essa unidade vale a pena, para o investigador, realizar a abstração, pela qual, em cada caso, converte em seu objeto a linguagem como tal. Somente rompendo com os preconceitos convencionalistas da teologia e do racionalismo, Herder e Humboldt aprenderam a ver as línguas como maneiras de ver o mundo. Ao reconhecer a unidade de pensamento e fala, tiveram acesso à tarefa de comparar as diversas maneiras de dar forma a essa unidade como tal. Nós partiremos da mesma concepção, mas faremos [407] um caminho no sentido inverso. Apesar de toda diversidade de maneiras de falar, procuramos reter a unidade indissolúvel de pensamento e linguagem tal como a encontramos no fenômeno hermenêutico, como unidade de compreensão e interpretação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Se o âmbito do logos representa o do noético, na pluralidade de suas subordinações, a palavra se converte, tal como o número, em mero signo de um ser bem definido e, por consequência, conhecido de antemão. Com isso, o questionamento se inverte a partir de seu princípio. Agora já não se pergunta pelo ser ou pelo caráter medial das palavras partindo da coisa, mas sim, partindo do médio da palavra, pergunta-se pelo que e como medeia àquele que a usa. A essência do signo é que tem seu ser na função de seu emprego, e isto de tal modo que sua [417] aptidão consiste unicamente em ser um indicador. Por isso, nessa sua função, tem de se destacar do contexto em que se encontra e em que terá de ser tomado como signo, e justo com isso suspender o seu ser-coisa e embutir-se (desaparecer) no seu significado: é a abstração do próprio indicar. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Minha impressão é que com isso estamos nos movendo em uma direção que nos afasta da essência da linguagem. A linguisticidade é tão inerente ao pensar das coisas, que se torna uma abstração pensar o sistema das verdades como um sistema prévio de possibilidades de ser, a que deveriam ser subordinados signos que um sujeito emprega quando lança mão deles. A palavra linguística não é um signo de que se lance mão, mas tampouco é um signo que alguém faça ou dê a outro; não é uma coisa ôntica que se recebe e carrega com a idealidade do significar, com o fim de tornar visível, deste modo, outro ente. Isso é falso por ambos os lados. Antes, a idealidade do significado está na própria palavra; ela já é sempre significado. No entanto, isso não quer dizer, de outra parte, que a palavra preceda a toda experiência dos entes e se acrescente, exteriormente, à experiência já feita, submetendo-a a si. A experiência não é principialmente desprovida de palavras e secundariamente tornada objeto de reflexão, em virtude da designação, por exemplo, aos moldes de sua subsunção sob a generalidade da palavra. Antes, pertence à própria experiência o fato de ela buscar e encontrar as palavras que a expressem. Buscamos a palavra adequada, isto é, a palavra que realmente pertença à coisa, de maneira que ela própria venha à fala. Ainda que afirmemos que isso não implica uma simples relação de cópia, continua sendo verdade que a palavra pertence à coisa, tal que não é submetida à coisa, posteriormente, como signo. A análise aristotélica que apresentamos acima, sobre a formação dos conceitos por indução, nos oferece um testemunho indireto disso. É verdade que o próprio Aristóteles não coloca expressamente a formação dos conceitos em relação com o problema da formação das palavras e o aprendizado da linguagem, mas Temístio, em sua paráfrase, não tem dificuldade em exemplificá-la com a aprendizagem da linguagem pelas crianças. Tanto assim, está a linguagem no logos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Nesse sentido, o esquema lógico de indução e abstração pode ser uma fonte de erros, já que na consciência linguística não tem lugar nenhuma reflexão expressa sobre o que é comum ao diverso, e o uso das palavras em seu significado geral não entende aquilo que elas designam e ao que se referem, como um caso subordinado sob a generalidade. A generalidade da espécie e a conceituação classificatória estão muito distantes da consciência linguística. Inclusive se abstrairmos de todas as generalidades formais que não têm a ver com o conceito da espécie: se alguém realiza a transposição de uma expressão de algo a outra coisa, está considerando, sem dúvida, algo comum, mas isso não necessita ser, em nenhum caso, uma generalidade da espécie. Pelo contrário, em tal caso nos guiamos pela sua experiência em expansão, que leva a perceber semelhanças tanto na manifestação das coisas como no significado que elas possam ter para nós. Nisso consiste precisamente a genialidade da consciência linguística, em poder dar expressão a essas semelhanças. Nós chamamos a isso o seu metaforismo fundamental, e importa reconhecer que não é senão o preconceito de uma teoria lógica alheia à linguagem o que nos induziu a considerar o uso transpositivo ou figurado de uma palavra como um uso inautêntico. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
E evidente que o que se expressa nessas transposições é a particularidade de uma experiência, e que não são, portanto, o fruto de uma conceituação pela abstração. Mas é também evidente que desse modo se incorpora simultaneamente um conhecimento do comum. O pensamento pode assim retornar, para a sua própria instrução, para esse acervo que a linguagem nele depositou. Platão o faz expressamente com sua “fuga para os logoi”. Mas também a lógica classificatória toma pé nesse desempenho prévio de caráter lógico, que para ela já completou a linguagem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
O caminho que Humboldt segue, na sua investigação, está determinado pela abstração rumo à forma. Por mais que Humboldt ponha a descoberto, com isso, o significado das línguas humanas como reflexo da peculiaridade espiritual das nações, a universalidade do nexo de linguagem e pensamento fica, com isso, restrita ao formalismo de um poder. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Ao mesmo tempo, um conceito de linguagem como esse representa uma abstração a que nosso próprio objetivo nos obrigará a dar marcha à ré. A forma linguística e o conteúdo da tradição não podem ser separados na experiência hermenêutica. Se cada língua é uma acepção do mundo, não o é tanto em sua qualidade de representante de um determinado tipo de língua (que é como o linguista considera a língua), mas uma virtude daquilo que nela foi falado e transmitido pela tradição. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
A partir do centro da linguagem, o procedimento objetivador do conhecimento da natureza e o conceito do ser em si, que corresponde à intenção de todo conhecimento, se nos mostraram como o resultado de uma abstração. Esta, arrancada reflexivamente da relação original com o mundo, relação que está dada na constituição linguística de nossa experiência de mundo, procura certificar-se do ente, organizando seu [480] conhecimento metodologicamente. Anatemiza, consequentemente, toda forma de saber que não garante essa certeza e que, por conseguinte, não seja capaz de servir à crescente dominação da natureza. Face a isso, procuramos libertar do preconceito ontológico o modo de ser próprio da arte e da história, assim como a experiência correspondente a ambas, preconceito que está implicado no ideal de objetividade que a ciência coloca; e frente à experiência da arte e da história vimo-nos conduzidos a uma hermenêutica universal que atinge a relação geral do homem com o mundo. E se já formulamos essa hermenêutica universal, a partir do conceito da linguagem, o fizemos não somente para evitar o falso metodologismo que é responsável pela estranheza do conceito da objetividade nas ciências do espírito — devia-se evitar também o espiritualismo idealista de uma metafísica da infinitude, ao modo de Hegel. A experiência hermenêutica fundamental não se articulava somente na tensão entre estranheza e familiaridade, compreensão e mal-entendido, que era o que dominava o projeto de Schleiermacher. Ao contrário, ao final vimos que, com sua teoria da perfeição adivinhatória da compreensão, Schleiermacher se apresenta em imediata proximidade a Hegel. Se nós partimos da linguisticidade da compreensão, sublinhamos, pelo contrário, a finitude do acontecer linguístico em que se concretiza em cada caso a compreensão. A linguagem que as coisas exercem, sejam elas quais e como forem, não é logos ousias e não alcança a sua plena realização na autocontemplação de um intelecto infinito — é a linguagem que toma nossa essência histórica finita, quando aprendemos a falar. Isso vale não menos para a linguagem dos textos da tradição, e por isso coloca a si mesma a tarefa de uma hermenêutica verdadeiramente histórica. Isso vale também para a experiência tanto da arte como da história, e mais ainda, os conceitos de “arte” e “história” são, por sua vez, formas de acepção, que somente se desdobram do modo de ser universal do ser hermenêutico, como formas da experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Seria uma ilusão acreditar que este problema não existe mais no estado moderno, porque esse estado reconhece, de princípio, a liberdade da ciência. A evocação dessa liberdade continua sendo sempre uma abstração perigosa. Ela não isenta o pesquisador de sua responsabilidade política, tão logo ele saia do silêncio de seu quarto de estudos e do laboratório — protegido do acesso de pessoas impertinentes — e comunica seus conhecimentos ao público. Embora a ideia da verdade presida a vida do investigador de maneira incondicional e inequívoca, sua franqueza para falar é limitada e polivalente. Ele deve saber da repercussão de sua palavra e responder por isso. O reverso diabólico desse contexto é porém que, em vista dessa repercussão, ele vê-se tentado a proclamar aos outros e até a persuadir a si próprio de que a verdade é na realidade aquilo que lhe dita a opinião pública ou os interesses do poder do Estado. Há aqui uma pertença íntima entre a limitação de expor a opinião e a falta de liberdade do próprio pensamento. Não podemos tergiversar o fato de que a questão “O que é verdade?”, no sentido apresentado por Pilatos, continua determinando ainda hoje a nossa vida. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.
Um processo enigmático e profundamente oculto. É uma grande ilusão pensar que a criança fala uma palavra, a primeira palavra. Foi uma insensatez querer descobrir a linguagem originária da humanidade, isolando crianças e deixando-as crescer totalmente incomunicáveis com todos os sons humanos para depois, partindo do primeiro som articulado, querer atribuir a uma linguagem humana concreta o privilégio de ser a linguagem originária da criação. A ilusão dessas ideias consiste em buscar suspender, de modo artificial, nossa inserção real no mundo de linguagem em que vivemos. Na verdade já estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo. Penso que é novamente em Aristóteles que se encontra a mais sábia descrição do processo de aprendizagem da fala. A descrição aristotélica, no entanto, não se refere ao aprendizado da fala, mas ao pensar, isto é, à aquisição de conceitos comuns. Como é possível dar-se uma permanência na fugacidade dos fenômenos, no fluxo constante de impressões cambiantes? É certamente a capacidade de retenção, portanto a memória, que nos capacita reconhecer algo como o mesmo, e isso é resultado de uma grande abstração. Aqui e ali, a partir da fuga dos fenômenos cambiantes, começamos a perceber algo de comum e assim, aos poucos, pelos reconhecimentos que vão se acumulando e que chamamos de experiências, forma-se a unidade da experiência. Pela experiência dispomos expressamente daquilo que experimentamos, nos moldes de um conhecimento do comum. Aristóteles pergunta então: como pode realmente dar-se esse conhecimento do comum? Com certeza não é no transcurso dos fenômenos, um após o outro, que de repente o conhecimento do comum se estabelece num determinado elemento singular que reaparece e é reconhecido como o mesmo. Não é esse elemento singular, como tal, que se distingue de todos os outros pela força misteriosa de expressar o comum. Esse elemento não é diferente de todos os outros. E, no entanto, não deixa de ser verdade que em algum momento se estabelece o conhecimento do comum. Onde começou? Aristóteles apresenta uma imagem ideal para isso: Como chega a deter-se um exército em fuga? Onde começa a deter-se? Não é, com certeza, pelo fato de o primeiro soldado ter parado, ou o segundo ou o terceiro. Não podemos afirmar que o exército se detém quando um determinado número de soldados fugitivos parou de correr, nem tampouco quando o último soldado tiver parado. Não é com ele que o exército começa a deter-se, uma vez que já começou a deter-se bem antes. Ninguém pode saber, ninguém pode controlar por um plano nem pode afirmar que conhece como começa, como prossegue e como, por fim, se detém o exército, ou seja, como volta a obedecer à unidade de comando. E no entanto não há dúvida que isso ocorreu. O mesmo ocorre com o conhecimento do comum, pois na verdade trata-se do mesmo fenômeno, o surgimento da linguagem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.
O primeiro é o esquecimento essencial de si mesmo que advém à linguagem. A linguagem viva não tem consciência de sua própria estrutura, gramática, sintaxe etc, portanto, de tudo aquilo que a ciência da linguagem tematiza. Uma das perversões típicas do natural aparece quando a escola moderna introduz a gramática e a sintaxe em sua própria língua materna em lugar de introduzi-la numa língua morta como o latim. Exige-se de todos um gigantesco esforço de abstração para tomar consciência expressa da gramática do idioma que se domina enquanto língua materna. A concretização efetiva da linguagem faz com que essa desapareça detrás daquilo que nela se diz. Uma bela experiência disso, feita por todos nós, dá-se no aprendizado de uma língua estrangeira. Pensemos nas frases paradigmáticas usadas nos manuais e cursos de idiomas. Sua tarefa é fazer com que se tome consciência expressa de um determinado fenômeno de linguagem. Antigamente, quando ainda se acreditava na tarefa de abstração materializada no aprendizado da gramática e da sintaxe de uma língua, figuravam frases absurdas, falando sobre César ou sobre o Tio Carlos, por exemplo. A tendência moderna de transmitir informações interessantes sobre o país estrangeiro por via dessas frases paradigmáticas tem um efeito colateral indesejado, a saber, à medida que o conteúdo da frase ganha interesse a sua função paradigmática se obscurece. Quanto mais vivo o ato de linguagem, tanto menos consciência temos dele. Assim, o esquecimento de si próprio da linguagem nos mostra que o seu verdadeiro sentido é o que nela se diz, o que constitui o mundo comum, onde vivemos e onde se insere também a grande corrente da tradição, que nos alcança por meio da literatura de línguas estrangeiras, vivas ou mortas. O verdadeiro sentido da linguagem é aquilo que adentramos quando a ouvimos: o dito. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 11.
Mesmo prescindindo da questão sobre o posicionamento do planejador de uma organização racional do mundo e de um administrador racional dentro deste mundo, parece insolúvel a confusão gerada pelo domínio da “ciência” sobre a situação concreta da vida humana e a racionalidade nela atuante. Também nesse caso, o pensamento grego mostra grande atualidade. A distinção aristotélica entre tékhne e phronesis vai clarificar essa confusão. Reconhecendo na situação concreta da vida o que é passível de ser feito, o saber prático não encontra sua perfeição do mesmo modo que o saber objetivo tem sua perfeição na tékhne. A tékhne que pode ser ensinada e aprendida e seu desempenho não depende evidentemente do tipo de homem que se é, já, do ponto de vista moral ou político, ocorre exatamente o contrário com o saber e a razão que iluminam e guiam a situação prática da vida humana. É claro que também aqui se dá, dentro de certos limites, algo como a aplicação de um saber universal sobre um caso particular. O que assumimos como conhecimento humano, experiência política, astúcia nos negócios, contém — mesmo que segundo uma analogia um tanto inexata — um elemento do saber universal e de sua aplicação. Se não fosse assim, não poderia haver nem o seu ensino e aprendizagem e nem o saber filosófico que Aristóteles desenvolveu no projeto de sua ética e de sua política. Mas o problema aqui não é o da relação lógica entre lei e caso particular e nem tampouco de um cálculo e previsão das consequências, consoante à ideia moderna de ciência. Mesmo na suposição utópica de uma física da sociedade, não nos livraríamos da confusão indicada por Platão quando estilizou o homem de Estado, isto é, o agente político, como um especialista mais gabaritado. Esse saber do físico da sociedade, se posso chamá-lo assim, bem pode possibilitar a existência de um técnico da sociedade capaz de produzir tudo o que se imagina, mas permaneceria alguém que não sabe o que se deve realmente fazer com o que ele mesmo sabe. Aristóteles refletiu profundamente sobre essa confusão. Chamou, por isso, o saber prático, que trata de situações concretas, de “outro tipo de saber. O que defende não é um irracionalismo opaco, mas a clareza da razão que sabe encontrar o factível, a cada vez, num sentido prático-político. Assim, em toda decisão prática da vida, está em questão um ponderar sobre as possibilidades que levam aos fins estabelecidos. É compreensível que, desde Max Weber, as ciências sociais tenham buscado sua legitimação científica na racionalidade da escolha dos meios e que hoje tendam a objetivar cada vez mais áreas que antes estavam sujeitas à decisão “política”. Mas se até Max Weber relacionou o pathos de sua sociologia avalorativa à confissão não menos patética de um “deus” que cada um deve escolher, poderíamos realmente admitir a abstração de que sempre podemos partir de fins estabelecidos? Em caso afirmativo, bastaria um saber técnico para estarmos a caminho de um futuro esplêndido, uma vez que a perspectiva de entendimento é muito maior entre técnicos do que entre homens de Estado. Somos tentados a responsabilizar as diretivas políticas dos governos pelo fracasso nos acordos das negociações internacionais nos assim chamados congressos de especialistas. É bem provável que isso não seja verdade. É verdade que existem âmbitos particulares onde o modo de proceder constitui uma questão de pura racionalidade das metas. Aqui o consenso entre especialistas parece fácil. Mas que grau de autocontrole já não estará atuando para que, mesmo no caso do consultor jurídico, a opinião do consultor possa restringir-se àquilo por que ele pode responsabilizar-se cientificamente? E bem provável que o consultor ideal, no sentido indicado, esteja nesse contexto forense em vias de tornar-se inútil, porque a necessidade de decidir, própria da justiça, obriga sempre de novo a trabalhar com constatações sem garantia irrevogável. Quanto mais decisivamente intervir o teor dos preconceitos sociais ou políticos dominantes, tanto mais ficcional parecerá o puro especialista e com ele o conceito de uma racionalidade cientificamente segura. Em todo âmbito das ciências sociais modernas deve-se admitir que elas não conseguem dominar o nexo entre meios e fins, sem dar preferência a determinados fins. Se explorássemos a fundo os condicionamentos internos dessas implicações, acabaria se mostrando a contradição entre a verdade atemporal, postulada pela ciência, e a estruturação temporal daqueles que usam a ciência. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
É claro que isso não significa que não haja outro ideal moral ou político a não ser a adequação à ordem social vigente e aos seus parâmetros. Isso significaria incorrer numa outra abstração. Os critérios válidos não são apenas aqueles impostos por outros — pelos pais — , que teríamos de aplicar como se aplica a lei ao caso particular. Toda decisão concreta do indivíduo, antes, é codeterminante para a validade universal. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
Dessas reflexões resulta que a ideia tradicional do fazer e do produzir representa um modelo falso de conhecimento. A tensão entre o saber para todos, ligado ao conceito da ciência ensinável (técnica), e o saber sobre o que, no nível prático, é melhor para cada um, é como tal já muito antiga, embora não seja um acaso que a sua real antinomia só tenha se exposto com o surgimento da ciência moderna. Em Aristóteles, por exemplo, a relação entre a arte [165] política e o sentido político (téknne e phronesis) parece não representar nenhum problema real. Onde existe um saber que pode ser aprendido devemos aprendê-lo. Mas esses sempre compõem apenas áreas parciais do saber e do saber-fazer prático que nunca poderão cobrir toda a esfera da ação moral e política. O saber global, onde se inserem todas as formas de saber humano, serve de parâmetro também para a téknne. Em sentido fundamental, essa continua preenchendo as lacunas que a natureza legou como tarefa para o trabalho humano, e dessa forma torna-se um complemento constante do nosso saber. Hoje, ao contrário, a extraordinária abstração com que o ideal do método da ciência moderna separa e delimita seu objeto expõe de forma acirrada a diferença qualitativa tanto entre o saber da ciência, em constante auto-superação, e o caráter definitivo e irrevogável de toda decisão real quanto aquela diferença entre o especialista e o político. Em todo caso, parece faltar um modelo racional do que constitui o saber do político. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.
A ciência moderna surge no século XVII, tomando por base o pensamento do método e do asseguramento metódico do progresso no conhecimento. Ela alterou radicalmente nosso planeta, ao privilegiar uma forma de acesso ao mundo, que não é a única e nem a mais abrangente que possuímos. Trata-se do acesso que, pelo isolamento metódico e pela interrogação consciente — no experimento — , prepara os âmbitos particulares, tematizados por esse isolamento, para uma nova intervenção de nosso agir. Essa foi a grande contribuição das ciências da natureza e especialmente da mecânica de Galileu no século XVII. Como se sabe, a contribuição espiritual do descobrimento da lei da queda livre dos corpos e do plano inclinado não se obteve pela simples observação. Não havia vácuo. A queda livre foi uma abstração. Todo mundo pode se lembrar da admiração causada ao se observar o experimento feito em sala de aula, quando no vácuo relativo a folha de chumbo e a pena de ave caem na mesma velocidade. O que Galileu fez foi isolar condições que não ocorrem na natureza, quando abstraiu da resistência do meio. Mas é só essa abstração que possibilita a descrição matemática exata dos fatores que dão um resultado no processo da realidade natural, possibilitando assim a intervenção controlada do homem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Nessa tentativa de contrapor, assim, “palavra” e “enunciado”, torna-se claro também o sentido de enunciado. Costumamos falar [193] de “enunciados” na constringência da lógica, do cálculo das proposições e da moderna formalização matemática da lógica. Esse modo de expressar-se, que nos parece natural, remonta em última instância a uma das opções mais decisivas de nossa cultura ocidental, isto é, a construção da lógica a partir do enunciado. Aristóteles, o fundador dessa parte da lógica, o magistral analítico desse processo escolástica do pensamento lógico, produziu-a pela formalização de frases enunciativas e de seus nexos conclusivos. Todos conhecem o famoso exemplo do silogismo usado doutrinalmente: Todos os homens são mortais. Pedro é homem, logo Pedro é mortal. Que tipo de abstração se produziu aqui? A abstração pela qual a única coisa que conta aqui é o que foi enunciado. Todas as outras formas de linguagem e todos os outros modos de dizer não são objeto de análise; somente o enunciado. A palavra grega é apophansis. Logos apophantikos significa o discurso, a proposição cujo único sentido é realizar o apophainesthai, o mostrar-se do que foi dito. E uma proposição teórica no sentido de que ela abstrai de tudo que não diz expressamente. O que constitui o objeto de análise e o fundamento da conclusão lógica é apenas o que ela própria revela pelo seu dizer. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Na metodologia da ciência moderna esse tipo de discussão é um pouco estranho. O que constitui a essência da metodologia científica é que seus enunciados sejam uma espécie de tesouraria de verdades garantidas pelo método. Como toda tesouraria, também a da ciência tem uma provisão para uso discricionário. Na verdade, a essência da ciência moderna é enriquecer constantemente a provisão de conhecimento para o uso discricionário. O decisivo em todos os problemas de responsabilidade social e humana da ciência, que desde Hiroshima tanto pesam sobre nossa consciência, consiste em que uma das consequências da coerência metodológica da ciência moderna é justamente não ter condições de dominar os fins a que se aplicam seus conhecimentos, como domina suas próprias relações objetivas. Possibilitando a aplicação prática que chamamos de técnica, a abstração metodológica da ciência moderna teve êxito. Também a técnica, como aplicação da ciência, não pode ser controlada. Quando contesto o poder de autolimitar-se da ciência, não quero tornar-me fatalista ou profeta do ocaso. Penso, ao contrário, que não é a ciência como tal, mas em última instância a capacidade humana e política de todos nós que poderá garantir a aplicação razoável de nosso poderio ou ao menos fazer com que evitemos as catástrofes extremas. É claro que assim se está reconhecendo que o isolamento da verdade enunciativa e a lógica construída à base de frases enunciativas como perfeitamente legítimos dentro da ciência moderna… O problema é que devemos pagar um preço alto por tudo isso, e que a natureza da ciência moderna não nos pode poupar esse pagamento. Ou seja, a razão teórica e os recursos da ciência não conseguem impor limites à universalidade do poder de transformação que eles suscitam. Não há dúvidas de que nesse âmbito vigoram proposições enunciativas “puras”; mas isso significa que estão dotadas de um saber capaz de servir a qualquer fim possível. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
Eu me pergunto se esse mesmo exemplo, no qual as proposições enunciativas isoladas se apresentam como o fundamento do poder de transformação global da técnica, não demonstra na verdade que os enunciados jamais aparecem totalmente isolados. Não aparece, também aqui, o fato de que todo enunciado tem sempre uma motivação? À base da abstração e da concentração no poder de transformação, que no século XVII culminou nesse grande pensamento metodológico da ciência moderna, encontra-se uma ruptura com as ideias religiosas do universo medieval e uma decisão em favor do conhecimento e da emancipação. Essa motivação sustentadora de um querer saber que é ao mesmo tempo um poder de transformação e que por isso despreza toda limitação ou controle. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.
A segunda objeção que se pode fazer aqui foi desenvolvida sobretudo por Habermas contra minhas próprias teorias. Trata-se da questão de saber se não se está subestimando os modos da experiência que se dão à margem da linguagem quando se afirma, como faço eu, que é pela linguagem que articulamos a experiência de mundo como uma experiência comum. Na verdade, a multiplicidade de línguas não é uma objeção. Essa relatividade não é do tipo que nos redime de uma proscrição ou sina, como sabe todo aquele que consegue pensar um pouco em outros idiomas. Mas não haverá outras experiências da realidade que não se estruturam como linguagem? Temos por exemplo a experiência da dominação e a experiência do trabalho. Esses são os dois argumentos desenvolvidos por Habermas contra a universalidade do postulado hermenêutico, com esses argumentos ele interpreta manifestamente o entendimento operado na linguagem como uma espécie de círculo fechado de um movimento imanente de sentido a que ele chama de herança cultural dos povos. Ora, a herança cultural dos povos é antes de tudo uma tradição de formas e artes de domínio, de ideais de liberdade, teleologías de ordem etc. Quem poderá negar que nossas possibilidades humanas mais próprias não consistem simplesmente no dizer? Deveríamos admitir que toda experiência do mundo estruturada na linguagem experimenta o mundo e não a linguagem. O que articulamos no debate acerca da linguagem não constitui um encontro com a realidade? O encontro com o domínio e a falta de liberdade leva à formação de nossas ideias políticas. O que experimentamos na assimilação dos processos de trabalho como um caminho de nossa busca humana é o mundo do trabalho, mundo das capacidades. Seria uma falsa abstração pensar que no domínio e no trabalho não encontramos sobretudo experiências concretas de nossa existência humana, nossas valorações, nosso diálogo conosco mesmos encontram sua realização concreta e sua função crítica. O fato de nos movermos no mundo de linguagem, de estarmos inseridos em nosso mundo através da experiência pré-formada pela linguagem não restringe nossa possibilidade crítica. Ao contrário. [204] Abre-se para nós a possibilidade de ultrapassar nossas convenções e todas as nossas experiências pré-esquematizadas, dialogando com outras pessoas, pessoas que pensam diferente, aceitando um novo exame crítico e novas experiências. No fundo, em nosso mundo a mesma questão está sempre presente: a conformação da linguagem em convenções, em normas sociais, atrás das quais escondem-se sempre também interesses econômicos e de poder. Mas esse é justamente o mundo de nossa experiência humana, onde dependemos de nosso julgamento, isto é, da possibilidade de nos colocar-nos criticamente frente a todas as convenções. Na verdade, devemos essa capacidade de julgamento ao fato de nossa razão ser virtualmente linguagem. Não é a linguagem que impede o exercício de nossa razão. É verdade que nossa experiência de mundo não se produz apenas no aprendizado da fala e nos exercícios de linguagem. Existem experiências de mundo que são anteriores à linguagem, como sustenta Habermas com base nas investigações de Piaget. Existe a linguagem dos gestos, das fisionomias, dos acenos, que nos unem, o riso e o choro, cuja hermenêutica foi ressaltada por H. Plessner. Existe o mundo construído pela ciência, no qual as linguagens exatas e específicas dos símbolos matemáticos acabam fornecendo uma base firme para a formação de teorias, capacitando-nos a fazer e a manipular, numa espécie de auto-apresentação do homo faber, da engenhosidade técnica do homem. Mas todas essas formas de auto-apresentação humana devem ser constantemente integradas naquele diálogo interno da alma consigo mesma. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 15.
O problema é realmente universal. Como eu a caracterizei, a questão hermenêutica não se restringe aos âmbitos de investigação que serviram de ponto de partida. Importava para mim assentar uma base teórica que pudesse sustentar também o fato fundamental de nossa cultura atual, a ciência e sua utilização técnica industrial. Um exemplo útil para vermos como a dimensão hermenêutica abrange a totalidade dos procedimentos da ciência é a estatística. Como um exemplo extremo, a estatística ensina que a ciência encontra-se constantemente sob determinadas condições metodológicas abstratas e que os resultados positivos das ciências modernas consistem em bloquear outras possibilidades interrogativas pela abstração. Na estatística isso se mostra de maneira muito clara, porque, ao conceber previamente as perguntas a serem respondidas, lança mão de objetivos propagandísticos. O que se destina a ter um efeito propagandístico deve influenciar sempre e de antemão o julgamento dos que são consultados, buscando restringir sua capacidade de julgamento. O que se verifica, então, parece ser a linguagem dos fatos. Mas a questão hermenêutica busca saber quais são as perguntas a que respondem esses fatos e quais são os fatos que começariam a mostrar-se se fossem feitas outras perguntas. A hermenêutica deveria legitimar primeiro a significação desses fatos e com isso as consequências que se derivam da persistência dos mesmos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
Tiro as consequências. A consciência hermenêutica, que desenvolvi desde o princípio seguindo alguns pontos determinados, tem sua verdadeira força de atuação no fato de deixar e fazer ver onde está a questão. Quando tivermos presente não somente a tradição artística e a tradição histórica dos povos, não apenas o princípio da ciência moderna em suas precondições hermenêuticas, mas o todo de nossa vida de experiência, então creio que conseguiremos integrar de novo também a experiência da ciência em nossa própria experiência universal e humana de vida. Então teremos alcançado o estrato fundamental que, com Johannes Lohmann, podemos chamar de “constituição do mundo estruturada na linguagem”. Essa constituição apresenta-se como a consciência da história dos efeitos que esquematiza previamente todas as nossas possibilidades de conhecimento. Faço abstração aqui de que o pesquisador, mesmo o pesquisador da natureza, talvez não esteja totalmente livre da moda e da sociedade, de todos os fatores possíveis de seu entorno; o que afirmo é que dentro de sua experiência científica o que o faz ter ideias fecundas não são tanto as “leis da lógica rígida” (Helmholtz) mas as constelações imprevisíveis, seja a queda da maçã de Newton ou qualquer outra observação onde se acende a chama da inspiração científica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
O que distingue uma práxis hermenêutica e sua disciplina do aprendizado de uma mera técnica, seja ela técnica social ou método crítico, é que na hermenêutica a consciência do sujeito que compreende sempre é co-determidada por um fator da história dos efeitos. Mas isso implica também a tese inversa, a saber, o que é compreendido sempre desenvolve uma certa força convincente que influi na formação de novas convicções. Não nego que a abstração das opiniões pessoais represente um esforço justificado de compreensão. Quem quer compreender não precisa afirmar o que compreende. E no entanto penso que a experiência hermenêutica nos ensina que a força dessa abstração é sempre limitada. Aquilo que compreendemos fala também e sempre por si próprio. E exatamente aqui que reside a riqueza do universo hermenêutico. A medida que desenrola toda amplitude de seu jogo, obriga também o sujeito que compreende a colocar em jogo seus preconceitos. Todas essas são conquistas da reflexão emanadas da praxis e dela somente. Peço clemência por mim, um velho filólogo, por ter exemplificado tudo isso no “ser para o texto”. Na verdade, a experiência hermenêutica está totalmente entretecida na realidade geral da praxis humana, na qual a compreensão do escrito chega a ser essencial, mas sua inclusão é apenas secundária. Chega tão longe quanto a disposição para o diálogo dos seres racionais. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
O avanço metodológico resultante dessas observações feitas sobre a linguagem consiste em que o “texto” deve ser entendido aqui como um conceito hermenêutico. Isso significa que não é visto a partir da perspectiva da gramática e da linguística, ou seja, como produto final, buscado pela análise de sua produção. Essa análise tem como propósito aclarar o mecanismo em virtude do qual a linguagem funciona, deixando de lado todos os conteúdos que transmite. Considerado a partir da perspectiva hermenêutica — que é a perspectiva de cada leitor — , o texto não passa de um mero produto intermediário, uma fase no acontecer compreensivo que encerra sem dúvida uma certa abstração: o isolamento e a fixação desta mesma fase. Mas essa abstração toma o caminho inverso daquele tomado pelo linguista. Esse não pretende chegar à compreensão da questão em causa no texto, mas aclarar o funcionamento da linguagem à margem do que o texto pode dizer. Seu tema não é o que o texto comunica, mas como é possível comunicá-lo, os recursos semióticos para produzir esta comunicação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Esse processo pode ser feito também mediante uma pontuação adicional, recurso já encontrado pela fixação escrita para facilitar a reta compreensão. O ponto de interrogação, por exemplo, indica um modo como deve articular-se propriamente uma frase fixada por escrito. O inteligente costume da língua espanhola de inserir a frase interrogativa entre dois pontos de interrogação esclarece convincentemente a intenção fundamental: já no começo da leitura sabe-se como deve articular-se a frase correspondente. O caráter indispensável de tais recursos de pontuação, ausente em numerosas culturas antigas, confirma por outro lado que a compreensão sempre é possível apenas com o texto escrito. A mera sucessão dos signos escritos sem pontuação representa de certo modo e na forma extrema a abstração comunicativa. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Nesse sentido, a palavra singular como portadora de seu significado e como co-portadora do sentido discursivo é apenas um momento abstrato do discurso. Tudo deve ser visto no âmbito mais amplo da sintaxe. Tratando-se de um texto literário, é uma sintaxe que não é tal incondicionalmente nem tampouco segundo a gramática usual. Assim como o orador lança mão de liberdades sintáticas outorgadas pelo ouvinte, na medida em que este está em sintonia com todas as modulações e gesticulações do orador, também o texto literário — com todos os matizes que ostenta — possui suas próprias liberdades. Essas liberdades se encaixam na realidade sonora que reforça o sentido do conjunto do texto. De certo, já no âmbito da prosa corrente supõe-se que um discurso não é um “escrito”, tampouco como uma conferência é uma aula, um paper. Isso fica ainda mais acentuado no caso da literatura, no sentido eminente da palavra. Ela supera a abstração do escrito não somente porque o texto seja legível, quer dizer, compreensível em seu sentido. Um texto literário possui um status próprio. Sua presença como texto estruturado na linguagem exige uma repetição da literalidade original. Isso sem recorrer a uma linguagem originária, mas na medida em que inaugura uma linguagem nova e ideal. A trama das referências de sentido nunca se esgota nas relações existentes entre os significados principais das palavras. Justamente as relações de significado anexas, que não aparecem ligadas à teleología de sentido, conferem sua magnitude (Volumen) à frase literária. Tais relações não se dariam se o conjunto do discurso por assim dizer não se mantivesse de pé por si só, se convidasse à quietude e impedisse o leitor ou o ouvinte de tornar-se cada vez mais ouvinte. Mas, apesar disso, como toda audição, esse tornar-se ouvinte é sempre um ouvir algo, que entende o que ouviu como a figura de sentido de um discurso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantia-no, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Hus-serl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Já conhecemos esse problema na forma que Kant lhe concedeu na Crítica do juízo. Ali distingue-se entre o juízo determinante, que subsume o particular sob um universal dado, e o juízo reflexivo, que busca um conceito universal para um particular dado. Pois bem, parece-me que Hegel mostrou com toda validez que a separação dessas duas funções de juízo é uma mera abstração e que juízo, na verdade, sempre são ambas as coisas. O universal, sob o qual subsume-se um particular, segue determinando a si mesmo justamente através dessa subsunção. O sentido jurídico de uma lei determina-se através da judicação e a universalidade da norma determina-se basicamente através da concreção do caso. Sabe-se que, baseado nesse fundamento, Aristóteles chegou a declarar vazia a ideia platônica do bem. E, objetivamente falando, fez isso com razão, uma vez que se deva pensar essa ideia do bem como um ente de extrema generalidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.