Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das “formas simbólicas” (Cassirer), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas “fato”, mas “princípio”. É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de Agostinho e Tomás de Aquino, à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um “sentido”, e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel [112] expressou-o na sua teoria do “espírito objetivo”. Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por Aristóteles e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a Aristóteles, ilustrou este capítulo correspondente de Aristóteles (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A lingüística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando “do lado de fora” os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de “experiência” a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
Não compreendo essas considerações. A diferença entre a linguagem dos especialistas e a linguagem corrente existe desde séculos. Será que a matemática é algo novo? E o que sempre definiu o especialista, o Xamã e o médico não foi o fato de que eles nunca lançaram mão de recursos de entendimento que não fossem compreensíveis para todos? O que podemos ver como um problema moderno extremado é que o especialista já não considera ser tarefa sua traduzir seu saber para a linguagem comum corrente, de modo que essa tarefa de integração hermenêutica seria uma tarefa particular. Mas com isso a tarefa hermenêutica como tal não se modifica em nada. Ou será que com isso Habermas quer dizer apenas que poderíamos “compreender” construções teóricas, como por exemplo no campo da matemática e da ciência natural matemática atual, sem os recursos da linguagem corrente? Isso é indiscutível. Seria absurdo afirmar que toda nossa experiência de mundo não seria nada mais que um processo de linguagem, e que por exemplo o desenvolvimento de nosso senso para as cores consistiria apenas na diferenciação no uso das palavras referidas à cor. E mesmo conhecimentos genéticos, como por exemplo os de Piaget, aos quais se refere Habermas e que tornam provável a existência de um uso de categorias operacionais prévias à linguagem, mas também todas as formas de comunicação desprovidas de linguagem, a cerca das quais chamaram a atenção sobretudo Helmuth Plessner, Michael Polanyi e Hans Kunz, desqualificam qualquer tese que queira negar outras formas de compreensão fora do âmbito da linguagem apelando para uma universalidade da linguagem. Falar é, ao contrário, sua existência comunicada. Mas mesmo na comunicabilidade da compreensão encontra-se embutido o tema da hermenêutica, como reconhece corretamente Habermas (p. 77). Se quisermos evitar uma disputa por palavras, devemos renunciar a muitos rodeios e não supor que os sistemas de signos artificiais devam ser “compreendidos” no mesmo sentido em que nossa interpretação de mundo feita na linguagem é uma interpretação compreensiva. Tampouco se poderá dizer que as ciências naturais formulam seus enunciados sobre “as coisas” sem “observar-se no espelho dos discursos humanos”. Quais são as “coisas” que a ciência natural conhece? A pretensão da hermenêutica é e continua sendo integrar na unidade da interpretação de mundo feita na linguagem o que aparece como incompreensível ou como não “compreensível” para todos, mas apenas para “iniciados”. O fato de a ciência moderna ter desenvolvido suas próprias linguagens, específicas e técnicas, e sistemas artificiais de símbolos, procedendo dentro dos mesmos “monologicamente”, isto é, alcançando a “compreensão” e o “entendimento” à margem de toda comunicação do linguajar corrente, não pode ser levado a sério como uma objeção contra essa pretensão. O próprio Habermas, que faz tal objeção, sabe muito bem que essa “compreensão” e especialização, que constitui também o pathos do engenheiro social moderno e dos especialistas, carece da reflexão que lhe permitiria alcançar responsabilidade social. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Mas também na vertente filosófica, encontramos desde há muito uma tendência similar, dotada de uma consciência filosófica [431] ainda maior, quando Chaim Perelman e seus colaboradores defenderam o significado lógico da argumentação usual no direito e na política contra a lógica da teoria da ciência. Utilizando os recursos da análise lógica, mas justamente com a intenção de distinguir os procedimentos do discurso persuasivo contra a forma de demonstração lógico-apodíctica, ele lança mão da antiga aspiração da retórica contra o positivismo científico. Frente à unilateralidade da teoria moderna da ciência e da philosophy ofscience, era inevitável que o interesse filosófico não recuperasse lentamente seu interesse pela tradição da retórica, exigindo sua revitalização. Foi o que fortaleceu também o interesse pela hermenêutica, uma vez que essa partilha com a retórica sua distinção frente ao conceito de verdade da teoria da ciência e a defesa de seu direito à autonomia. Fica em aberto a questão de saber se essa correspondência, historicamente legítima, entre retórica e hermenêutica é total e plena. De certo, a maioria dos conceitos da hermenêutica clássica desde Melanchton provém da tradição retórica da Antigüidade. O elemento da retórica, o âmbito dos persuasive arguments, tampouco se limita às ocasiões forenses e públicas da arte da oratória. Parece dilatar-se, antes, com o fenômeno universal da compreensão e do entendimento. Mas desde antigamente permanece uma barreira infranqueável entre a retórica e a dialética. O processo do entendimento insere-se mais profundamente na esfera da comunicação intersubjetiva, abrangendo também todas as formas em que se dá o consenso tácito, como o demonstrou M. Polanyi, e igualmente os fenômenos de comunicação à margem do âmbito da linguagem, os fenômenos mímicos, como o riso, o choro, cujo significado hermenêutico nos foi ensinado por H. Plessner. VERDADE E METODO II ANEXOS 28.
Se é assim, manter uma posição própria parece ser um mau negócio. Esse diálogo inesgotável não significa, em sua última [505] radicalidade, um relativismo total? Mas essa assertiva mesma não seria, por seu turno, uma posição relativista e ainda contraditória consigo mesma? Afinal, com a experiência da vida ocorre o mesmo: uma série de experiências, encontros, lições e desenganos não desembocam num estágio onde se sabe tudo, mas no estar informado e na aprendizagem da modéstia. Num capítulo central de meu livro Verdade e método I defendi esse conceito “pessoal” de experiência frente ao mascaramento que sofreu com o processo de institucionalização das ciências empíricas. E parece-me que M. Polanyi afirma algo parecido. A partir dessa perspectiva, a filosofia “hermenêutica” se entende não como uma posição “absoluta”, mas como um caminho de experiência. No fundo, afirma que não há nenhum princípio superior ao de abrir-se ao diálogo. Mas isso implica sempre o possível direito de reconhecer de antemão a superioridade do interlocutor. Parece-nos pouco? Creio que é o único tipo de honestidade que se poderia e deveria exigir a um professor de filosofia… VERDADE E METODO II ANEXOS 30.