Mesmo assim, o conceito da alegoria passou, de sua parte, por uma ampliação significativa, na medida em que a alegoria não designa apenas uma figura do discurso, e o sentido da interpretação (sensus allegoricus), mas também, representações imagéticas correspondentes, de conceitos abstratos na arte. Torna-se óbvio que, aqui, os conceitos da retórica e da poética servem também de modelo para a formação de conceitos estéticos no âmbito da arte plástica. A relação retórica do conceito alegoria permanece atuante nesse desenvolvimento do significado na medida em que, como alegoria, não pressupõe, na verdade, um parentesco original metafísico, como o exige o símbolo, mas antes, apenas como uma agregação proporcionada por uma convenção dogmática, o que permite aplicar representações imagéticas para coisas destituídas de imagens. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Assim, vemos surgir dos esforços artístico-teoréticos de Goethe uma forte influência no sentido de rotular “o simbólico como conceito artístico positivo e o alegórico, como conceito artístico negativo. Especialmente a sua própria poesia atuou nessa direção, na medida em que neles via-se a confissão de vida, ou seja, a figuração poética da vivência: O padrão da vivencialidade (Erlebtheit), que ele próprio estabeleceu, tornou-se um conceito-de-valor-guia, no século XIX. O que, na obra de Goethe, não se encaixava nesse padrão — como as poesias da velhice de Goethe — , foi, de acordo com o espírito realista daquele século, deixado de lado como sendo alegóricamente “sobrecarregado”. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Já a consciência do artista de hoje parece contrariá-lo. Ocorreu uma espécie de crepúsculo do gênio. A representação de uma inconsciência sonâmbula, com a qual o gênio cria — uma representação que, em todo caso, pode se legitimar através da autodescrição de Goethe em sua maneira poética de produzir — nos parece hoje um romantismo falso. A isso um poeta como Paul Valéry contrapôs os padrões de um artista e engenheiro como Leonardo da Vinci, em cujo engenho total, encontravam-se ainda indiferenciados e unos, o artesanato, a invenção mecânica e a genialidade artística. A consciência geral, ao contrário, é sempre ainda determinada pelos efeitos do culto do gênio do século XVIII e pela sacralização da vocação artística, que vimos ser característica para a sociedade burguesa do século XIX. Nisso se comprova que, no fundo, o conceito do gênio é concebido do ponto de vista do observador. Esse antigo conceito se oferece convincentemente não para o espírito que cria, mas para o espírito que julga. O que se apresenta ao observador como um milagre, a ponto de não se poder entender que alguém seja capaz de algo assim, irá se espelhar no que há de milagroso numa criação, através de uma inspiração genial. Os criadores, então na medida em que olham para si mesmos, podem se servir dessas formas de apreensão, e é assim, certamente, que o culto do gênio veio a ser alimentado, no século XVIII, também pelos criadores. Mas nessa auto-apoteose nunca chegaram a alcançar o status que a sociedade burguesa lhes atribuía. A auto-evidência do criador continua bem mais sóbria. Continua vendo as possibilidades de fazer, de ser capaz e de indagar da técnica até mesmo onde o observador procura inspiração, mistério e significado profundo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Que conseqüências ontológicas isso tem? O que é que resulta, quando partimos dessa maneira do caráter lúdico do jogo, a fim de determinar mais acuradamente o modo de ser do ser estético? Uma coisa é clara: o espetáculo teatral e a obra de arte, entendida a partir dele, não são um mero sistema de regras e de prescrições comportamentais, no âmbito das quais o jogo (espetáculo) pode se realizar. O representar de um espetáculo não quer ser entendido como uma satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar-na-existência da própria poesia. Assim, a questão é saber o que é propriamente, de acordo com o seu ser, essa obra poética, que só se torna espetáculo quando é representada, na representação, e que no entanto é o seu ser próprio que nisso se torna representação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A isso podemos dar agora a forma que opomos à diferenciação estética, ao elemento constitutivo real da consciência estética, a “indiferenciação estética”. Com isso, tornou-se claro: o que é imitado na imitação, formulado pelo poeta, representado pelo ator, reconhecido pelo espectador, é de tal modo o que se tem em mente (Gemeinte), aquilo onde reside o significado da representação, que a formulação poética ou o desempenho da representação nem chegam a ser realçados. Onde se diferencia, o que se diferencia é a matéria de sua formulação, a composição poética de sua “concepção”. Mas essas diferenciações são de natureza secundária. O que o ator representa e o espectador reconhece são as formulações e a própria ação, tal qual foram pensadas pelo poeta. Temos aqui uma dupla mimesis: o poeta representa e o ator representa. Mas justamente essa dupla mimesis é una: O que se torna existência em um e no outro é a mesma coisa. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Pode-se dizer com mais exatidão: a representação mímica da encenação leva isso a ser-aí (Da-sein = existência) o que, aliás, a obra poética exige. À dupla diferenciação da obra poética e de sua matéria e da obra poética e a encenação, corresponde a uma dupla indiferenciação tida como a unidade da verdade, que se reconhece no jogo da arte. Trata-se de um cair-fora da efetiva experiência de uma obra poética, quando se considera a fábula, que lhe está à base, sob, por exemplo, o ponto de vista de sua origem, e da mesma forma, já é um cair-fora da efetiva experiência do espetáculo, quando o espectador [123] reflete sobre a concepção que está à base de uma encenação, ou sobre o desempenho do ator como tal. Uma tal reflexão contém já a diferenciação estética da própria obra com relação à sua representação. Porém, para o conteúdo da experiência como tal, como já o vimos, é até indiferente se a cena trágica ou cômica, que se desenrola diante de alguém, está acontecendo no palco ou ao vivo, quando se é só espectador. Na medida em que se representa assim, como um todo com sentido, então é o que chamamos uma configuração. Não é em si e para isso encontra-se numa intermediação acidental, mas alcança o seu ser verdadeiro na intermediação. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A teoria aristotélica da tragédia deverá nos servir, portanto, como exemplo para a estrutura do ser estético. É conhecido que ela está em correlação com a poética e que somente parece ter validade para escritos dramáticos. Não obstante, o trágico é um fenômeno fundamental, urna figura de sentido, que não ocorre somente na tragédia, a obra de arte trágica no sentido estrito da palavra, mas que tem seu lugar também noutros gêneros de arte, principalmente nas obras épicas. Na verdade, nem se trata de um fenômeno especificamente artístico, na medida em que se encontra também na vida. Por esse motivo, os mais recentes pesquisadores (Richard Hamann, Max Scheler) estão vendo o trágico simplesmente como um momento extra-estético. Tratar-se-ia aqui de um fenômeno ético-metafísico, que intervém na esfera da problemática estática somente de fora. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Porém, depois que o conceito do estético nos revelou sua questionabilidade, teremos de indagar, ao contrário, se não é o trágico, antes, um fenômeno fundamental estético. O ser do estético havia se tornado visível para nós como jogo e representação. É nosso dever, pois, de indagar a teoria do espetáculo trágico, que é a poética da tragédia, sobre a essência do trágico. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Com isso, possibilitou a criação de tipos fixos, na medida em que incumbiu e liberou a arte plástica para a configuração e o aperfeiçoamento dos mesmos. Como a palavra poética proporciona uma primeira unidade à consciência religiosa, que, por extensão, abrange o culto local, ela apresenta uma nova tarefa à arte plástica. Pois o poético mantém sempre uma não-fixação peculiar, ao trazer algo à representação na universalidade espiritual da língua, que fica ainda aberto a um preenchimento da fantasia, segundo o gosto. Somente a arte plástica fixa, e só nesse sentido, cria os tipos. Isso vale justamente, também quando não confundimos a criação do “quadro” da divindade com a invenção de deuses e nos mantemos livres da inversão da tese-da-imago-Dei do Gênesis, introduzida por Feuerbach. Essa inversão antropológica e reinterpretação da experiência religiosa, que se tornou dominante no século XIX, surge, antes, do mesmo subjetivismo que alicerça também o raciocínio da mais recente estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
O palco teatral é, por isso, uma instituição política de extraordinária espécie, porque somente na encenação transparece aquilo tudo que há no jogo, a que está aludindo, o que desperta na repercussão. Ninguém sabe com anterioridade qual será o “resultado” e o que, de alguma forma, irá se perder no vazio. Cada encenação é um acontecimento, mas não um acontecimento que venha a se opor ou posicionar-se paralelamente à obra poética, como algo próprio — a própria obra é que acontece no acontecimento da encenação. É da sua natureza ser tão “ocasional” assim, que a ocasião da encenação traz à fala e deixa transparecer o que está nela. O diretor de teatro, que encena a obra literária, demonstra sua capacidade no fato de que sabe aproveitar a oportunidade. Nisso, porém, age também segundo a indicação. A diferenciação estética bem pode mensurar por dentro a música executada, a partir da tonalidade extraída da leitura da partitura — mas ninguém pode duvidar que ouvir música não é ler. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Ou talvez não exista aqui um limite tão restrito? Existem obras científicas, que através de sua qualidade literária conquistaram a exigência de ser honradas como obras da arte literária, e de ser contadas entre a literatura universal. Do ponto de vista da consciência estética isto é evidente na medida em que a referida consciência considera decisivo na obra de arte não o significado do conteúdo, mas unicamente a qualidade de sua formulação. Porém, na medida em que nossa crítica à consciência estética restringiu fundamentalmente o alcance deste ponto de vista, este princípio de delimitação entre arte literária e literatura tornar-se-á duvidoso. Já havíamos visto que nem sequer a obra de arte poética poderá ser concebida na sua verdade essencial, aplicando-lhe o padrão da consciência estética. O que a obra poética tem em comum com todos os demais textos literários é que ela nos fala a partir do significado de seu conteúdo. Nossa compreensão não se volta especificamente para o desempenho de formulação, que lhe convém como obra de arte, mas para o que nos diz. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
Levando isso em consideração, a diferença entre uma obra de arte literária e qualquer outro texto literário já não é tão fundamental. Certamente que existem diferenças entre a linguagem da poesia e a da prosa, e igualmente, entre a linguagem da prosa poética e a da prosa “científica”. Essas diferenças podem certamente ser consideradas também do ponto de vista da formulação literária. Mas a diferença essencial dessas “linguagens” diferentes reside, evidentemente, noutro aspecto, ou seja, na diversidade da reivindicação da verdade que cada uma delas levanta. Dá-se uma profunda comunhão entre todas as obras literárias, no fato de que a formulação lingüística permite que o significado que deve ser expresso chegue a ser operante. Visto dessa maneira, a compreensão de textos, como, por exemplo, aquela qüe o historiador agencia não difere tanto da experiência da arte. E não é um simples acaso, que, no conceito da literatura, sejam reunidas não somente as obras da arte literária, mas toda tradição literária como tal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.
A formação de uma ciência da hermenêutica, como foi desenvolvida por Schleiermacher na confrontação como os filólogos RA. Wolf e F. Ast, e em continuação à hermenêutica teológica de Ersnesti, não representa, pois, um mero passo adiante na história da arte da própria compreensão. Em si mesma, essa história da compreensão tem estado acompanhada pela reflexão teórica desde os tempos da filologia antiga. Essas reflexões, porém, têm o caráter de uma “doutrina da arte”, isto é, pretendem servir à arte da compreensão do mesmo modo que a retórica serve à arte de falar e a poética à arte de compor e a seu julgamento.íesse sentido também a hermenêutica teológica da patrística e da Reforma foi uma doutrina da arte. Todavia, agora é a compreensão como tal que se converte em problema. A generalidade desse problema é um testemunho de que a compreensão se converteu em uma tarefa num sentido novo, e que com isso também a reflexão teórica recebe um novo sentido. Ela já não é uma doutrina da arte a serviço da práxis do filólogo ou do teólogo. É verdade que o próprio Schleiermacher acaba dando à sua hermenêutica o nome de doutrina da arte, porém, em um sentido sistemático completamente diferente. E busca alcançar a fundamentação teórica do procedimento comum a teólogos e filólogos, na medida em que, aquém de ambos os interesses, remonta a uma relação mais originária da compreensão do pensamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Enquanto que o discurso não é somente interno da geração de idéias, mas também comunicação, e como tal possui uma forma externa, não é somente manifestação imediata da idéia, mas já pressupõe reflexão. E isso há de valer naturalmente tanto mais para o que está fixado por escrito, portanto, para todos os textos. Eles já são sempre representação através da arte. E aí onde o discurso é arte, o é também o compreender. Todo discurso e todo texto estão referidos fundamentalmente à arte de compreender, à hermenêutica, e assim se explica a pertença mútua da retórica (que é parte da estética) e da hermenêutica: cada ato de compreender é, para Schleiermacher, a inversão de um ato de falar, a pós-construção de uma construção. Correspondentemente, a hermenêutica é uma espécie de inversão da retórica e da poética. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Mas mesmo aquela interpretação que parece mais afastada dos tipos tratados até agora, a interpretação re-produtiva, na qual se executa a música e a poesia — pois uma e outra só possuem verdadeira existência no serem exercidas — dificilmente poderá ser considerada como uma forma autônoma da interpretação. Também ela encontra-se atravessada pela cisão entre função cognitiva e normativa. Ninguém irá encenar um drama, recitar um poema ou executar uma composição musical se não o fizer compreendendo o sentido originário do texto, mantendo-o como referência de sua re-produção ou interpretação. Mas, pelo mesmo motivo, ninguém poderia realizar essa interpretação re-produtiva sem levar em conta, nessa transposição do texto para uma forma sensível, aquele outro momento normativo, que limita as exigências de uma reprodução estilisticamente justa em virtude das preferências de estilo do próprio presente. Se nos conscientizarmos inteiramente até que ponto a tradução de textos estrangeiros ou mesmo sua reformulação poética, assim como também a correta declamação de textos, realizam por si mesmos um desempenho explicativo parecido ao da interpretação filológica, de maneira que não existem de fato fronteiras nítidas entre um e outro, então já não poder-se-á evitar a conclusão de que a distinção entre a interpretação cognitiva, normativa e re-produtiva não pode pretender uma validez de princípio, porque tão-somente circunscreve um fenômeno unitário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
É o momento de indagarmos até que ponto é correta essa descrição do procedimento espiritual-científico no qual se unem o historiador e o filólogo atual, e se há razão na pretensão universal que a consciência histórica eleva aqui. Do ponto de vista da filologia isso parece, à primeira vista, duvidoso. Quando o filólogo se dobra ao padrão da investigação histórica acaba desconhecendo-se a si mesmo, ele que era o amigo dos belos discursos. Pode ser que se refira de imediato, mais à forma, se o filólogo reconhece que em seus textos há uma exemplaridade. O velho pathos do humanismo consistia em que, na literatura clássica tudo estaria dito de maneira exemplar. Todavia, o que se dizia dessa maneira exemplar é na realidade algo mais que um modelo formal. Os belos discursos não levam esse nome somente porque o que se diz neles está belamente dito, mas também porque é belo o que neles se diz. De fato, não pretende ser somente “formoso palavreado”. Com respeito à tradição poética, dos povos, temos de reconhecer que não admiramos nela somente a força poética, a fantasia e a arte da expressão, mas também e sobretudo a verdade superior que fala a partir dela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Assim, podemos apelar a Platão, quando colocamos em primeiro plano a referência à pergunta também para o fenômeno hermenêutico. Podemos fazê-lo tanto mais, pelo fato de que no próprio Platão já se mostra o fenômeno hermenêutico de uma certa forma. Sua crítica à escrita deveria ser analisada, uma vez, também sob o ponto de vista de que nela aparece uma conversão da tradição poética e filosófica de Atenas em literatura. Nos diálogos de Platão vemos como a “interpretação” de textos, cultivada nos discursos sofísticos, especialmente a interpretação da poesia para fins didáticos, atrai sobre si a repulsa platônica. Vemos também como Platão tenta superar a debilidade dos logoi, e sobretudo a dos escritos, através de sua própria poesia dialogada. A forma literária do diálogo devolve linguagem e conceito ao movimento originário da conversação. Com isso a palavra se protege de qualquer abuso dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A visão da imbricação interna de interpretação e compreensão permite também destruir a falsa romantização da imediatez que artistas e conhecedores cultivaram e cultivam sob o signo da estética do gênio. A interpretação não pretende pôr-se no lugar da obra interpretada. Não pretende, por exemplo, atrair para si a atenção pela força poética de sua própria expressão. Pelo contrário, lhe é inerente uma acidentalidade fundamental. E isso vale não somente para a palavra interpretadora, mas também para a interpretação reprodutiva. A palavra interpretadora tem sempre algo de acidental, na medida em que se encontra motivada pela pergunta hermenêutica, não somente no sentido da instância pedagógica a que se limitou a interpretação na época do Aufklärung, mas também porque a compreensão é sempre um verdadeiro acontecer. Do mesmo modo, a interpretação como reprodução é fundamentalmente acidental, isto é, o é não somente quando se executa, interpreta, traduz ou se lê algo para outros, exagerando com intenções didáticas. O fato de que, nesses casos, a reprodução seja interpretação num sentido especial e deítico, implicando um exagero demonstrativo e uma sobre-iluminação, não representa verdadeiramente uma diferença de princípio, mas meramente gradual, com respeito a qualquer outra interpretação reprodutiva. Por mais que seja o poema ou a própria composição a que ganha sua presença mímica em sua execução, qualquer execução está obrigada a pôr ênfase. Neste sentido, a diferença com respeito à enfatização demonstrativa da intenção didática já não é tão grande. Toda execução é interpretação. Em toda execução há sobre-iluminação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
Tal é a razão pela qual, no acontecer lingüístico, tem seu lugar não somente o que se mantém, mas também e justamente a mudança das coisas. Por exemplo, na decadência das palavras podemos observar a mudança dos costumes e dos valores. A palavra “virtude”, por exemplo, quase só se mantém viva no nosso mundo lingüístico, no sentido irônico. E se, em seu lugar, nos servimos de outras palavras, que na discrição que as caracteriza formulam uma sobrevivência das normas éticas, de um modo que voltam as costas ao mundo das convenções fixas, esse mesmo processo é um reflexo do que ocorre na realidade. Também a palavra poética se converte com freqüência numa prova do que é verdadeiro, na medida em que o poema desperta uma vida secreta em palavras que pareciam desgastadas e consumidas, e nos esclarece assim sobre nós mesmos. E a linguagem pode tudo isso, porque não é evidentemente uma criação do pensamento reflexivo, mas contribui para realizar o comportamento com respeito ao mundo em que vivemos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Tudo isso ocorre de forma ainda mais pregnante no fenômeno da poesia. Aqui é certamente legítimo considerar que a verdadeira realidade do falar poético é a “enunciação” poética. Pois aqui faz realmente sentido e exige-se que o sentido da poesia se enuncie no que é dito como tal, sem nenhuma adição de saberes ocasionais. Se o enunciado representava, no acontecer inter-humano do pôr-se de acordo, uma desnaturalização deste, aqui, pelo contrário, o conceito do enunciado se realiza plenamente. Pois a emancipação do que foi dito com respeito a toda opinião e vivência subjetiva do autor é o que constitui a realidade da palavra poética. Mas o que é que enuncia este enunciar? VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Para começar, é claro que na poesia pode reaparecer tudo quanto tem lugar no falar cotidiano. Quando a poesia representa as pessoas falando entre si, o enunciado poético não repete os “enunciados” que caberiam a um protocolo, mas de um modo misterioso, torna-se presente nele, o todo da conversação. As palavras que se põem na boca de alguns personagens na poesia são especulativas do mesmo modo que o falar da vida de todos os dias: na conversação, o falante traz à fala uma relação com o ser, como já vimos mais acima. Quando falamos de uma enunciação poética, não nos referimos em absoluto ao enunciado, como tal, que uma poesia põe na boca de alguém, mas ao enunciado que é a própria poesia na sua qualidade de palavra poética. Mas o enunciado poético como tal é especulativo na medida em que, por sua vez, o acontecer lingüístico da poesia expressa uma relação própria com o ser. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Se tomamos como referência o “modo de proceder do espírito poético”, tal como o descreve Hölderlin, por exemplo, tornar-se-á logo patente, em que sentido o acontecer lingüístico da poesia é especulativo. Hölderlin mostrou que o achado da linguagem de um poema pressupõe a total dissolução de todas as palavras e modos de falar habituais. “Quando o poeta se sente captado, em toda sua vida interna e externa, pelo tom puro de sua sensibilidade originária e olha então ao seu redor, ao seu mundo, este se torna novo e desconhecido; a soma de todas as suas experiências, de seu saber, de seu contemplar, de sua reflexão, arte e natureza, como se representam nele e fora dele, tudo parece como se fosse a primeira vez, e justamente por isso, inconcebido, indeterminado, dissolvido em pura matéria e vida, presente. E é importantíssimo que, nesse momento, não aceite nada como dado, não parte de nada positivo, e que a natureza e a arte, tal como as aprendeu antes e as vê agora, não falem antes de que exista para ele uma linguagem…” (Observe-se o parentesco com a crítica hegeliana à positividade.) O poema, que logrou ser obra e criação, não é ideal, mas é espírito reanimado a partir da vida infinita. (Também isso lembra a Hegel). Nele não se designa ou se significa um ente, mas se abre um mundo do divino e do humano. A enunciação poética é especulativa porque não copia uma realidade que já é, não reproduz o aspecto da espécie na ordenação da essência, mas representa o novo aspecto de um novo mundo no âmbito imaginário da invenção poética. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Apontamos a estrutura especulativa do acontecer lingüístico tanto no falar cotidiano como no poético. A correspondência interna que se nos tornou patente e que reúne palavra poética com o falar cotidiano, como intensificação deste, já foi reconhecida no seu aspecto psicológico-subjetivo pela filosofia idealista da linguagem e sua renovação por Croce e Vossler. Quando destacamos o outro aspecto, o vir à fala, como verdadeiro processo do acontecer lingüístico, estamos preparando com isso o caminho à experiência hermenêutica. O modo como se entende a tradição e como esta vem à fala sempre de novo é, como vimos, um acontecer tão autêntico como a conversação viva. A única coisa especial é que, nela, a produtividade do comportamento lingüístico para com o mundo encontra aplicação renovada a um conteúdo já mediado linguisticamente. Também a relação hermenêutica é uma relação especulativa, mas completamente distinta do autodesenvolvimento dialético do espírito, tal como o descreve a ciência filosófica de Hegel. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Essa recordação referente a Platão torna-se de novo significativa para o problema da verdade. Na análise da obra de arte, tínhamos procurado demonstrar que o representar-se deve ser considerado como o verdadeiro ser daquela. Com esse fim, havíamos acrescentado o conceito do jogo, o qual já nos projetou a nexos mais gerais: pois tínhamos visto que a verdade do que se representa no jogo não é “de se crer” ou “não se crer”, para além da participação no acontecer lúdico. No âmbito estético, isso se entende por si mesmo. Inclusive quando o poeta é honrado como um vidente, isso não quer dizer que reconheçamos no seu poema uma verdadeira profecia como, por exemplo, nos cantos de Hölderlin sobre o retorno dos deuses. O poeta é 492] um vidente porque representa por si mesmo o que é, o que foi e o que será, e testemunha por si mesmo o que anuncia. É certo que a expressão poética leva em si uma certa ambigüidade, como aquela dos oráculos. Mas precisamente nisso se estriba sua verdade hermenêutica. Quem considera que isso é uma falta de vinculatividade estética, que passaria ao largo da seriedade do existencial, não se dá conta de até que ponto a finitude do homem é fundamental para a experiência hermenêutica do mundo. A ambigüidade do oráculo não é o seu ponto fraco, mas justamente sua força. E igualmente atira no escuro aquele que examinar se Hölderlin ou Rilke acreditavam realmente em seus deuses ou em seus anjos. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
De uma forma correspondente, a expressão poética tem se mostrado como o caso especial de um sentido introduzido e incorporado por completo na enunciação. No poema, o vir-à-fala é como um entrar em relações de ordenação, que são as que suportam e avalizam a “verdade” do que foi dito. Todo vir-à-fala, e não somente a expressão poética, tem em si algo desse testemunho. “Que não haja coisa alguma ali onde se rompe a palavra”. Como já destacamos, falar não é nunca uma subsunção do individual sob os conceitos do geral. No uso das palavras, não se torna disponível o que está dado à contemplação, como caso especial de uma generalidade, mas está presente naquilo mesmo que é dito, tal como a idéia do belo está presente no que é belo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Aqui a dialética de pergunta e resposta não se sustenta. A obra de arte caracteriza-se sobretudo pelo fato de jamais podermos compreendê-la completamente. Isso quer dizer que se nos aproximarmos dela e a interrogarmos jamais receberemos uma resposta definitiva a partir da qual possamos afirmar “agora eu sei”. Dela não se extrai uma informação precisa — e pronto! Não se podem haurir de uma obra de arte as informações que ela esconde em si, de modo a esvaziá-la como ocorre com comunicados que recebemos. A recepção de uma obra poética, seja pelo ouvido real ou somente por aquele ouvido interior que escuta na leitura, apresenta-se como um movimento circular, no qual as respostas repercutem em novas perguntas e provocam novas respostas. Isso motiva a demora junto à obra de arte — seja ela de que espécie for. A atitude de demorar-se é certamente a caracterização específica na experiência da arte. Uma obra de arte jamais se esgota. Ela nunca está vazia. Definimos, pelo contrário, a não-arte, a imitação ou a arte interesseira e similares, precisamente pelo fato de julgá-las “vazias”. Nenhuma obra de arte nos fala sempre do mesmo modo. E a conseqüência é que nós também precisamos responder cada vez de modo diferente. Diferentes sensibilidades, diferentes percepções, diferentes aberturas fazem com que a configuração única, própria, una e mesma — a unidade da expressão artística — se manifeste numa multiplicidade inesgotável de respostas. Considero um erro querer contrapor essa multivariedade infindável à identidade irredutível da obra. Frente à estética da recepção de Jauss e ao desconstrutivismo de Derrida (que nesse ponto se aproximam), parece-me ser o caso de afirmar que insistir na identidade de sentido de um texto não significa recair no superado platonismo de uma estética classista e nem aprisionar-se na metafísica. VERDADE E METODO II Introdução 1.
De há muito a poética aparece ao lado da retórica e com a expansão da cultura da leitura — já na época do Helenismo e, de modo completo, na época da Reforma — o escrito, as literae, passam a ser o conceito comum, que reúne os textos. Isso significa que a leitura passa a ocupar o centro da hermenêutica e da interpretação. Ambas estão a serviço da leitura, que é, por sua vez, compreensão. Onde está em questão a hermenêutica literária, trata-se em primeiro plano da essência da leitura. Por mais que estejamos convencidos do primado da palavra viva, da originariedade da linguagem viva no diálogo, ainda assim a leitura remete para um âmbito mais vasto. Com isso justifica-se o amplo conceito de literatura a que me referi em Verdade e método I, na conclusão da primeira parte, antecipando o que viria posteriormente. VERDADE E METODO II Introdução 1.
Disso sabem os poetas que procuram colocar-se à altura do modo de proceder do espírito poético que neles vige, como fez, por exemplo, Hölderlin. Afastando da experiência poética originária tanto o dado prévio da linguagem quanto o dado prévio do mundo, isto é, a ordem das coisas, e descrevendo a concepção poética como a confluência de mundo e alma no devir poético da linguagem, os poetas descrevem na verdade uma experiência rítmica. A configuração do poema, onde desemboca o devir de linguagem, garante, em sua finitude, a mútua referência de alma e mundo dada na linguagem. É aqui que o ser da linguagem mostra sua posição central. Partir da subjetividade, como se tornou natural ao pensamento de hoje, é um total equívoco. A linguagem não deve ser pensada como um projeto prévio de mundo, lançado pela subjetividade, nem como o projeto de uma consciência individual ou do espírito de um povo. Esses todos são apenas mitologias, exatamente como o conceito do gênio, que desempenha um papel tão predominante na teoria estética, porque ensina a compreender a construção da imagem como uma produção inconsciente e com isso interpretá-la a partir da analogia com o produzir consciente. A obra de arte não pode contudo ser compreendida a partir da execução planificada de um projeto — mesmo que esse seja sonâmbulo e inconsciente — tampouco como o curso da história universal pode ser pensado pela nossa consciência finita como a execução de um plano. Tanto num caso quanto no outro, sorte e êxito desvirtuam-se em oracula ex eventu, que encobre, na verdade, o evento do qual são a expressão, a palavra ou a ação. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.
Creio que o mérito da análise semântica tenha sido o de ter trazido à consciência a estrutura total da linguagem e de ter relacionado a essa estrutura os falsos ideais da unicidade dos signos ou símbolos e da formalização lógica da expressão de linguagem. O grande valor da análise semântica das estruturas da linguagem não consiste apenas em dissolver a aparência de igualdade produzida pelo signo verbal isolado, trazendo à consciência seus sinônimos. Na verdade, a análise semântica dissolve essa aparência mostrando algo ainda mais significativo, a saber, que, em sua singularidade, a palavra-expressão é uma estrutura intransferível e insubstituível. Considero essa segunda contribuição mais significativa porque refere-se a algo que está aquém de toda sinonímia. Na perspectiva da simples designação ou nomeação, a maioria das expressões empregadas para o mesmo pensamento ou das palavras usadas para exprimir a mesma coisa pode admitir distinção, articulação e [175] diferenciação. Todavia, quanto menos os signos verbais singulares forem isolados, tanto mais se individualiza o significado da expressão. O conceito de sinonímia dilui-se cada vez mais. Por fim, resta um ideal semântico, que dentro de um contexto determinado só reconhece ainda uma única expressão e nenhuma outra como a correta, como a palavra acertada. O ápice dessa tendência poderia ser o uso poético da palavra; dentro dele parece intensificar-se essa individualização, que partindo do uso verbal épico e passando pelo dramático chega à configuração lírica poética do poema. Isso se mostra no fato de o poema lírico ser amplamente intraduzível. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.
Se prestarmos bem atenção à tendência de individualização, inerente à linguagem viva em sentido próprio, reconheceremos a perfeição dessa tendência na figura poética. E se isso estiver correto, então é preciso questionar se a teoria da substituição realmente convém ao conceito de sentido da expressão de linguagem. A intradutibilidade, caracterizada em última instância pela poesia lírica, uma vez que aí uma língua não se deixa traduzir para outra sem perder sua força de expressão poética, faz fracassar a idéia de substituição, de introdução de uma expressão em lugar de outra. Isso parece ser independente do fenômeno específico de geral independentemente do fenômeno especial de uma linguagem poética altamente individualizada e de importância universal. Parece-me que a possibilidade de substituição se opõe ao momento individualizante inerente ao ato de linguagem. Mesmo quando, no dizer, substituímos uma expressão por outra ou a justapomos a outra, seja por abundância retórica ou para ajustar a expressão, quando o orador não a encontra de imediato, o sentido do discurso se constrói no processo das expressões sucessivas, jamais saindo do acontecimento único dessa fluência. Deixamos esse acontecimento único quando introduzimos no lugar de uma palavra usual uma outra de sentido idêntico. Esse é o ponto onde a semântica supera a si mesma, [178] passando a ser outra coisa. A semântica é uma teoria de signos, sobretudo de signos de linguagem. Signos são, porém, meios. Os signos são usados aleatoriamente e deixados de lado como qualquer outro meio empregado na atividade humana. A expressão “ele domina os meios” significa: “ele emprega-os corretamente com vistas a um fim”. Também dizemos que devemos dominar uma língua, se quisermos nos comunicar nessa língua. Mas o verdadeiro falar é mais que a escolha dos meios para alcançar determinados objetivos de comunicação. A língua que dominamos é onde vivemos, isto é, onde o que queremos comunicar só pode ser “conhecido” na forma da linguagem. O fato de “escolhermos” as palavras é uma ilusão ou um efeito da linguagem criado quando o dizer sofre uma inibição. O dizer “livre” flui na entrega abnegada à questão evocada através da linguagem. Isso também vale para a compreensão de discursos fixados em textos escritos, pois também os textos, quando compreendidos, são reinseridos no movimento de significação do discurso. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 13.
Se concebermos o fenômeno da linguagem não a partir do enunciado isolado, mas a partir da totalidade de nosso comportamento no mundo, o qual é por sua vez também uma vida em diálogo, poderemos compreender melhor por que o fenômeno da linguagem é tão enigmático, atrativo e fugidio. O dizer é a ação de auto-esquecimento mais radical que podemos realizar como seres racionais. Todo mundo já fez a experiência de estar conversando e de repente estacar, sentindo que as palavras fogem no momento em que nelas se fixa a atenção. Isso pode ser ilustrado por um pequeno acontecimento que vivenciei com minha filha pequena: Ela tinha que escrever a palavra “morango” e perguntou como se escreve. Quando lhe disse como fazer, ela observou: “Engraçado, quando a escuto desse modo, já não consigo mais compreender a palavra. É só quando a esqueço que estou de novo nela”. Estar na palavra de modo a não estar diante dela como se estivesse diante de um objeto é por natureza o modo fundamental de todo comportamento na linguagem. A linguagem tem uma força de proteção e ocultamento de si mesma. O que acontece na linguagem é protegido contra o ataque da reflexão, mantendo-se resguardado no inconsciente. Quando percebemos essa essência ocultadora e protetora da linguagem, vemo-nos obrigados a ultrapassar as dimensões da lógica enunciativa e alcançar horizontes mais amplos. Dentro da unidade vital da linguagem, a linguagem da ciência é apenas um momento integrado. O que mais ocorre são as palavras que encontramos na linguagem filosófica, religiosa e poética. Nelas todas, a palavra é algo bem diferente do que o comércio com o mundo promovido pelas estruturas de auto-esquecimento. Somente aqui estamos em casa. E como ter um fiador do que se diz. Isso aparece claramente sobretudo no uso poético da linguagem. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 14.
A história da compreensão não é menos antiga e honorável. Se quisermos reconhecer a hermenêutica onde ela aparece como uma verdadeira arte de compreender, então, se não quisermos começar com o Nestor da Ilíada, temos de começar com Ulisses. Poderíamos apelar para o fato de que o novo movimento de educação da sofística impulsionou de fato a interpretação de frases poéticas famosas, adornando-as artificialmente como exemplos pedagógicos. Junto com Gundert, poderíamos até contrapor a esta hermenêutica uma hermenêutica socrática. Mas isso está longe de ser uma teoria da compreensão, e parece ser característico para o surgimento do problema hermenêutico a eliminação de um distanciamento, a superação de uma alteridade e a construção de uma ponte entre o outrora e o agora. Nesse sentido, seu momento característico foi a época moderna, que ganhou consciência de sua distância em relação aos tempos passados. Algo disso já se encontrava na pretensão teológica de compreensão da Bíblia, própria da Reforma, e de seu princípio da sola scriptura, mas encontrou um real desenvolvimento na medida em que o Iluminismo e Romantismo geraram uma consciência histórica, que estabeleceu uma relação cindida com toda tradição. Outra conseqüência se deu pelo fato de a história da teoria hermenêutica ter-se orientado na tarefa da interpretação das “manifestações vivas expressas por escrito”, mesmo que a elaboração teórica da hermenêutica de Schleiermacher tenha incluído a compreensão no modo como se dá no trato oral da conversação. A retórica, ao contrário, voltava-se para a imediaticidade do efeito do discurso, e mesmo tendo trilhado também os caminhos da escrita artística e desenvolvido a teoria do estilo e os estilos, sua verdadeira realização não se dá na leitura mas no dizer. A posição intermédia do discurso proclamado já denuncia a tendência de basear a arte do discurso em recursos artísticos fixados por escrito, desligando-os da situação originária. Aqui se inicia a influência recíproca com a poética, cujos objetos de linguagem alcançam um tal grau de pureza artística que sua transformação da oralidade para a escritura e vice-versa se dá sem perdas. VERDADE E METODO II OUTROS 18.
Mesmo assim, a situação hermenêutica na relação social dos interlocutores é bem diferente da que se dá na relação analítica. Quando conto um sonho a alguém sem ser movido por uma intenção analítica ou por meu papel de paciente, a comunicação não tem o sentido de introduzir uma interpretação analítica do sonho. Se fizer isso, o ouvinte não atina com o scopus hermenêutico. A intenção é antes compartilhar os jogos inconscientes da própria fantasia onírica, do mesmo modo que na fantasia por exemplo participamos das lendas ou no caso da imaginação poética. Essa reivindicação hermenêutica é legítima e nada tem a ver com a resistência que é um fenômeno bem conhecido dentro da análise. É perfeitamente justificável rechaçar a atitude de alguém que não leve em conta essa situação hermenêutica descrita e, em vez de compreender por exemplo as poesias oníricas de Jean Paul como jogos significativos da imaginação, trata de interpretá-los como uma [260] gravidade significativa do simbolismo inconsciente de uma biografia entulhada. É oportuna aqui a crítica hermenêutica à legitimidade da psicologia profunda, e não se limita de modo algum a fantasias estéticas. Quando alguém, por exemplo, procura convencer argumentativamente um outro sobre uma questão política, tomado de uma emoção apaixonada e uma veemência beirando a irritação, sua pretensão hermenêutica será escutar contra-argumentos e não ver suas emoções serem analisadas por vias da psicologia profunda, segundo a máxima de que “quem se irrita jamais tem razão”. Mais adiante voltaremos a discutir essa relação entre reflexão psicanalítica e hermenêutica e os perigos de uma confusão desses dois “jogos de linguagem”. VERDADE E METODO II OUTROS 19.
Convém recordar aqui o lugar especial que ocupa a filosofia prática em Aristóteles. Chama-se “philosophia” e isso implica um interesse “teórico” e não prático. Mas mesmo assim não se cultiva pelo mero desejo de saber, como acentua Aristóteles em sua Ética, mas por causa da arete, isto é, por causa do ser e agir práticos. Pois [291] bem, parece-me digno de nota que se possa afirmar o mesmo a respeito do que Aristóteles, no livro VI da Metafísica, chama “poietike philosophia” e que abarca tanto a poética como a retórica. Nem uma e nem outra são variedades da “techne”, no sentido do saber técnico. Ambas estão baseadas numa faculdade universal do ser humano. Sua posição especial em relação às “technai” não tem uma caracterização distintiva tão clara como é o caso da idéia da filosofia prática, caracterizada por sua relação polêmica com a idéia platônica do bem. Ademais, creio que, em analogia com a filosofia prática, pode-se considerar a posição particular e a especificidade da filosofia poética como uma conseqüência do pensamento aristotélico. Seja como for, a história acabou tirando essa conseqüência. O trivium, que se diferencia em gramática, dialética e retórica, e que inclui sob a retórica também a poética, em relação a todos os modos específicos do fazer ou do produzir algo, ocupa um posto tão universal como o posto que compete à praxis em geral e à racionalidade que a orienta. Essas partes do trivium, longe de ser ciências, são artes “liberais”, ou seja, pertencem à postura básica da existência humana. Não são algo que se faz ou se estuda para que se venha a ser então aquele que aprendeu essas artes. Essa capacidade de formação faz parte das possibilidades do ser humano como tal, faz parte daquilo que todo indivíduo é ou pode fazer. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Enquanto tal, a hermenêutica explicita o que acontecia nessa práxis. A reflexão sobre a práxis da compreensão não se pode dissociar da tradição da retórica. Nesse sentido, uma das contribuições mais importantes de Melanchton à hermenêutica foi ter elaborado a doutrina dos scopi, ou perspectivas. Melanchton observou que, assim como os oradores, no começo de seus escritos, Aristóteles indica a perspectiva a partir da qual é preciso compreender suas afirmações. É bem diferente a tarefa de interpretar uma lei, a Bíblia ou uma obra poética “clássica”. O “sentido” desses textos não se determina para uma compreensão “neutra”, mas somente a partir da perspectiva de sua pretensão de validade. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Seguindo essa temática universal, aberta por Schleiermacher e sobretudo sua contribuição mais própria, a introdução da interpretação “psicológica”, destinada a complementar a interpretação “gramatical” tradicional, a hermenêutica evoluiu no século XIX para uma metodologia. Seu novo objeto são os “textos”, uma entidade anônima, que o investigador deve enfrentar. Na linha de Schleiermacher, Wilhelm Dilthey levou a cabo a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, estabelecendo as bases para sua equiparação com as ciências naturais e ampliando o acento que Schleiermacher dera à interpretação psicológica. Segundo Dilthey, o verdadeiro triunfo da hermenêutica estaria na interpretação das obras de arte, que traz à consciência uma produção genial inconsciente. Frente à obra-de-arte, todos os métodos psicológicos tradicionais — gramatical, histórico, estético e psicológico — , só representam uma suprema realização do ideal da compreensão na medida em que todos esses recursos e métodos se põem a serviço da compreensão da obra concreta. Aqui, e sobretudo no campo da crítica literária, o aperfeiçoamento da hermenêutica romântica deixa um legado que denuncia sua origem remota, mesmo no uso da linguagem: o de ser crítica. Crítica significa preservar a obra individual em sua validade e conteúdo e diferenciá-la de tudo que não satisfaz seu critério. O esforço de Dilthey serviu para estender o conceito metodológico da ciência moderna também à “crítica” e desdobrar cientificamente a “expressão” poética partindo de uma psicologia compreensiva. Foi tomando o caminho que passa pela “história da literatura” que ele inaugurou o termo “ciência da literatura”. Reflete o ocaso de uma consciência da tradição na época 314] do positivismo científico do século XIX, que no espaço da língua alemã elevou a equiparação com o ideal da ciência natural moderna a ponto de modificar o nome. VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Da dupla referência que a hermenêutica mantém com a retórica tradicional e com a filosofia prática de Aristóteles parece desprender-se que o problema da hermenêutica pode experimentar uma clareza muito maior do que seria possível partindo da problemática imanente à metodologia científica atual. É uma tarefa muito árdua determinar o lugar que ocupa uma disciplina como a retórica aristotélica no âmbito da teoria da ciência. Mas temos razões para associá-la à poética e não podemos negar aos dois escritos atribuídos a Aristóteles sua intenção teórica. Não pretendem substituir os manuais técnicos nem promover a arte da palavra e da poesia num sentido técnico. Aristóteles coloca essas artes no mesmo nível que a medicina e a ginástica, que nesse contexto ele qualifica como ciências técnicas. Não foi exatamente em sua “Política”, onde elaborou teoricamente um imenso material sobre o saber político, que Aristóteles ampliou o horizonte de problemas da filosofia prática de tal modo que a questão a respeito da melhor constituição, e assim, uma questão prática, a questão do “bem”, elevou-se acima da variedade das formas de constituição estudadas e analisadas por ele? Como é que a arte da compreensão a que damos o nome de hermenêutica irá encontrar então seu lugar no horizonte do modo de pensar aristotélico? VERDADE E METODO II OUTROS 22.
Pois bem, qual é o lugar teórico dessa vontade de saber e da reflexão sobre praxis e política? Aristóteles fala ocasionalmente de uma divisão da “filosofia” em três ramos: filosofia teórica, prática e poética (com essa última legou-nos a conhecida “poética”, nela incluindo também a retórica ou a criação de discursos). Mas entre os extremos do saber e do fazer está a praxis, que é o objeto da filosofia prática. Seu verdadeiro fundamento é o lugar central e o distintivo essencial do ser humano em virtude do qual esse não desenvolve sua vida seguindo a pulsão dos instintos, mas guiando-se pela razão. Por isso, a virtude básica em consonância com a essência do homem, é a racionalidade que guia sua praxis. O grego expressa-a com a palavra phronesis. A pergunta de Aristóteles é a seguinte: em que consiste essa racionalidade prática entre a autoconsciência do cientista e a do especialista, do fautor, do engenheiro, do técnico, do artesão etc. Que relação tem essa virtude da racionalidade com a virtude da cientificidade e a virtude da competência técnica? Mesmo sem conhecer nada de Aristóteles, deve-se reconhecer que essa racionalidade prática possui um lugar relevante. Qual seria nossa posição na vida e como lidaríamos com nossos assuntos se tudo fosse ditado pelo especialista ou se o tecnocrata pudesse dispor de tudo? Nossas decisões éticas e políticas não devem ser as nossas decisões? Mas também é certo que só podemos sentir-nos responsáveis no âmbito político, como o somos em nossa própria vida individual, se deixarmos a decisão nas mãos do político racional e responsável, no qual depositamos nossa confiança. VERDADE E METODO II OUTROS 23.
Aqui percebemos uma limitação do modelo grego, já denunciada criticamente no Antigo Testamento, em Paulo, em Lutero e em seus inovadores modernos. Na famosa descoberta do diálogo socrático como forma básica de pensamento, esta dimensão no diálogo não ganha consciência conceitual. Isso se explica em parte porque um escritor com a imaginação poética e a força de linguagem como Platão soube descrever a figura carismática de seu Sócrates de modo a deixar transparecer a pessoa e a tensão erótica que dele emana. Mas quando insiste na explicitação do diálogo, convencendo os outros de sua ignorância e atraindo-os inclusive para a sua causa, esse seu Sócrates pressupõe que o logos é comum a todos e não exclusividade sua. Como foi dito, a profundidade do princípio dialogai somente alcançou a consciência filosófica no ocaso da metafísica, na época do romantismo alemão, e se impôs novamente no século XX em contraposição ao idealismo e seu atrelamento ao sujeito. Esse é meu ponto de partida. Nesse contexto, pergunto como a comunidade de sentido que se produz no diálogo cria intermediação com a opacidade da alteridade do outro, e o que é em última instância a estrutura da linguagem: é uma ponte ou uma barreira? Uma ponte para a comunicação de um com o outro e construir [337] identidades sobre o rio da alteridade, ou uma barreira que limita nossa auto-entrega e nos priva da possibilidade de expressar-nos e comunicar-nos plenamente. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Mas a coisa se modifica quando se trata de um texto literário, e justamente por essa razão. A função do jogo de palavras não compactua com a ambigüidade polivalente da palavra poética. E verdade que as conotações que acompanham um significado principal emprestam à linguagem sua magnitude (Volumen) literária. Mas, pelo fato de subordinarem-se à unidade de sentido do discurso e evocar outros significados como meras ressonâncias, os jogos de palavras não são simples jogos de ambigüidade ou de polivalência que dão origem ao discurso poético. Neles confrontam-se unidades de sentido autônomas. O jogo de palavras rompe assim a unidade do discurso e exige ser compreendido numa relação de sentido reflexiva e superior. O uso reiterado de jogos de palavras e trocadilhos nos irrita, porque rompem a unidade do discurso. O princípio desarticulador do jogo de palavras dificilmente será eficaz numa canção ou num poema lírico, ou seja, sempre que prevaleça a figuração melódica da linguagem. Muito diferente é, obviamente, o caso do discurso dramático, onde a contraposição domina a cena. Basta lembrarmos a Stichomythia ou a autodestruição [355] do herói que se anuncia no jogo de palavras com o nome próprio herói”. Também é diferente o caso em que o discurso poético não origina o fluxo da narração, a desenvoltura do canto nem a representação dramática, mas se move conscientemente no jogo da reflexão, de cujos jogos especulativos faz parte a desarticulação de expectativas do discurso. O jogo de palavras pode exercer assim uma função fecunda numa lírica muito reflexiva. É o que ocorre na lírica hermética de Paul Celan. Mas há que se perguntar também aqui se o caminho dessa sobrecarga reflexiva de palavras não acaba se perdendo no descaminho. Surpreende com efeito que Mallarmé utilize jogos de palavras em ensaios de prosa, como em Igitur. Onde se trata, porém, de conjuntos sonoros de figuras poéticas, ele quase não joga com as palavras. Os versos de Salut parecem estratificados e preenchem uma expectativa de sentido em planos tão diversos como o de um brinde à saúde e de um balanço de vida, oscilando entre a espuma do champanhe na taça e o rastro ondulado que o barco da vida deixa para trás. Mas ambas as dimensões de sentido podem se realizar na mesma unidade de discurso como o mesmo gesto melódico da linguagem. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Essas considerações devem servir também para a metáfora. Na poesia, ela está tão inserida no jogo de tons, sentidos verbais e sentido do discurso, que não se destaca sequer como metáfora. Isso [356] porque aqui a prosa está ausente do discurso originário. Por isso, mesmo na prosa poética a metáfora quase não exerce nenhuma função. Desaparece de certo modo depois de despertar a intuição espiritual, a que serve. A área de domínio da metáfora é, ao contrário, a retórica. Nela desfrutamos da metáfora como metáfora. Tanto a teoria da metáfora quanto os jogos de linguagem não ocupam nenhum lugar de honra na poética. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Essa digressão ensina que, quando se trata de literatura, a conjugação de som e sentido possui muitos níveis e distinções tanto no discurso quanto na escrita. Cabe perguntar como se pode reconduzir o discurso mediador do intérprete à realidade dos textos poéticos. A resposta a essa questão deve ser muito radical. Diferentemente de outros textos, o texto literário não se interrompe com o discurso mediador do intérprete, mas é acompanhado de sua participação constante. Isso se pode constatar na estrutura da temporalidade conveniente a todo discurso. Em todo caso, as categorias temporais que utilizamos em relação com o discurso e com a arte da linguagem oferecem uma dificuldade peculiar. Fala-se então de presença, e como eu dizia antes, de auto-apresentação da palavra poética. Mas é uma falácia querer compreender essa presença a partir da linguagem da metafísica, como a atualidade do “que está simplesmente dado”, ou a partir do conceito que caracteriza o que é passível de ser objetivado. Não é essa a atualidade que compete à obra literária, nem a nenhum outro texto. A linguagem e a escrita sempre se mantêm referidas a essa atualidade. Elas não são, mas têm em mente, inclusive quando o que elas têm em mente só existe na palavra que se manifesta. O discurso poético somente se faz efetivo no ato de falar ou de ler; quer dizer, não existe se não é compreendido. VERDADE E METODO II OUTROS 24.
Não podemos analisar aqui como foi que, partindo de sua intenção fundamental, Heidegger manteve e subsumiu em seu pensamento tardio a obra de destruição de seus inícios. O estilo sibilino de seus últimos escritos atesta isso muito claramente. Ele estava plenamente consciente de sua carência de linguagem assim como da nossa. Ao lado de suas próprias tentativas de abandonar “a linguagem da metafísica” com a ajuda da linguagem poética de Hölderlin, parece-me que só houve dois caminhos transitáveis para indicar esse caminho que leva ao aberto, frente à autodomesticação ontológica própria da dialética. Esses dois caminhos foram [368] efetivamente transitados. Um deles é o regresso da dialética ao diálogo e desse à conversação. Eu mesmo procurei seguir esse caminho em minha hermenêutica filosófica. O outro caminho é o da desconstrução, estudado por Derrida. Não se trata aqui de resgatar o sentido que desaparecera da vivacidade da conversação. No pano de fundo da trama das relações de sentido que sustentam todo falar, num conceito ontológico de écriture, portanto — em lugar do falatório ou da conversação — deve-se dissolver a unicidade de sentido, levando a cabo, assim, a verdadeira ruptura da metafísica. VERDADE E METODO II OUTROS 25.
Mas convém mencionarmos outro contexto, a saber, a relação problemática em que se encontra hoje a poética frente à retórica. Isso contém um aspecto hermenêutico. Em suas origens e até os dias de Kant e da destronização da retórica pela estética do gênio e pelo conceito de vivência, ambas as disciplinas estavam fraternalmente [432] unidas, ambas existiam como artes da linguagem, isto é, formas de uso artístico e livre do discurso. Mas havia nelas um prejulgamento que acabou sendo dissipado. Nessa tradição compreendeu-se a linguagem da poesia e a linguagem do discurso artístico a partir do conceito de ornatus. Mas isso significa que a linguagem simples da vida prática representa o exemplo autêntico da linguagem. E, pelo menos desde Vico, Hamann e Herder, a evidência desse enfoque do problema acabou sendo esquecida. Se a poesia representa a linguagem matriz do gênero humano, poderá nos ensinar a respeito da essência da linguagem muito mais do que nos ensinam as ciências que estudam as línguas enquanto idiomas estrangeiros em sua existência alienada nos moldes de meios de comunicação e de informação. Ora, a relação entre poesia e hermenêutica encontra-se em dificuldades por causa do predomínio do jacobismo técnico-industrial, uma vez que a compreensibilidade da obra poética (como a da obra pictórica ou plástica) é considerada um preconceito “clássico”. Parece-me que, atualmente, a tarefa da hermenêutica continua sendo justamente explicar essas figuras de compreensibilidade deficientes (basta recordar as obras de um grupo de investigação sobre hermenêutica, aparecidas nos últimos anos sob o título Poetik und Hermeneutik [Poesia e hermenêutica]). VERDADE E METODO II ANEXOS 28.
Os diálogos platônicos marcaram-me, portanto, mais que os grandes pensadores do idealismo alemão, porque sempre me acompanharam. Meu relacionamento com eles foi singular. Se o caráter antecipador da conceptualidade grega, desde Aristóteles até Hegel e a lógica moderna, se nos apresenta, a nós, instruídos por Nietzsche e Heidegger, como limite além do qual encontram-se nossas [501] próprias perguntas sem reposta e nossas intenções sem serem satisfeitas, então o certo é que a arte do diálogo platônico se antecipou a essa aparente superioridade que cremos possuir como herdeiros da tradição judeu-cristã. Com a doutrina das idéias, com a dialética das idéias, com a matematização da física e com a intelectualização do que chamaríamos de “ética”, Platão plantou as bases para os conceitos metafísicos de nossa tradição. Mas ao mesmo tempo limitou todos seus enunciados pela via mimética e, como Sócrates, soube desarmar seus interlocutores com sua costumeira ironia. Desse modo, também neutralizou a presumida superioridade do leitor com a arte de sua poesia dialogal. A tarefa é filosofar com Platão, e não criticar Platão. Criticar Platão talvez se torne tão simplório como acusar a Sófocles de não ser Shekespeare. Isso poderá parecer paradoxal, mas só para aquele que está cego frente à relevância filosófica da imaginação poética de Platão. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Para ver que a obra poética se constitui num corretivo do ideal da definição objetiva e da hybris dos conceitos, não precisei seguir o pensamento de Heidegger quando, armado com os poemas de Hölderlin, enfrentou Hegel e interpretou a obra de arte como um acontecimento originário da verdade. Pude constatar isso com meus primeiros ensaios no campo do pensamento. Isso sempre deu o que pensar a minha própria orientação hermenêutica. A tentativa hermenêutica de analisar a linguagem partindo do diálogo — uma tentativa ineludível para um discípulo permanente de Platão — significa em última instância a superabilidade de qualquer fixação mediante o avanço do diálogo. Assim, a fixação terminológica, adequada no campo construtivo da ciência moderna e de seu objetivo de permitir a todos o acesso ao saber, torna-se suspeita na esfera dinâmica do pensamento filosófico. Os grandes pensadores gregos preservaram a mobilidade de sua própria linguagem inclusive nas ocasiões em que lançaram mão dessa fixação conceitual, a saber, na análise temática. Existe, no entanto, uma escolástica antiga, medieval, moderna e novíssima. Ela acompanha a filosofia como sua sombra. Isso significa que se pode avaliar a qualidade de um pensamento pela sua capacidade de quebrar as fossilizações existentes na linguagem filosófica tradicional. O ensaio programático de Hegel, manejado por seu método dialético, teve no fundo muitos antecedentes. Mesmo um pensador tão cerimonioso como Kant, que jamais deixou de lado o latim escolástico, encontrou sua “própria” linguagem, evitando neologismos, é verdade, mas extraindo numerosos significados novos dos conceitos tradicionais. Também o alto status de Husserl se determina frente ao neokantismo de sua época e da anterior pela força intuitiva de seu intelecto, que soube fundir as expressões tradicionais com a flexibilidade descritiva de seu vocabulário. Heidegger amparou-se precisamente no exemplo de Platão e de Aristóteles para justificar a novidade de sua criação de linguagem, e seus seguidores têm sido muito mais numerosos do que se poderia esperar diante das primeiras reações de assombro e escândalo. A filosofia, diferentemente da ciência e [507] da práxis da vida, defronta-se com uma dificuldade toda própria. A linguagem que falamos não foi feita para as finalidades do filosofar. A filosofia vê-se acometida de uma carência constitutiva de linguagem, e essa carência se faz sentir ainda mais quando o filósofo decide pensar com ousadia. Costuma ser característico do diletante o afã em “formar” conceitos arbitrários e “defini-los” com muita avidez. O filósofo reanima a força intuitiva da linguagem, e as ousadias e violências de linguagem podem ser pertinentes, quando ele consegue fazer com que penetrem na linguagem dos que pensam e seguem com ele. Isso significa, quando essa linguagem dinamiza, estende, ilumina unicamente o horizonte do entendimento. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
É exatamente assim, e ninguém poderá negá-lo: a explicação conceitual não pode esgotar o conteúdo de uma produção poética. Isso pode ser reconhecido pelo menos desde Kant, ou inclusive [508] desde o descobrimento da verdade estética (cognitio sensitiva) por Baumgarten. Mas pode ter um especial interesse no aspecto hermenêutico. Frente à poesia, não é suficiente distinguir o elemento estético do teórico e liberá-lo da pressão das regras ou do conceito. A poesia continua sendo uma forma de discurso na qual os conceitos se relacionam entre si. A tarefa hermenêutica consiste então em aprender a determinar o lugar especial que ocupa a poesia no contexto de normatividade da linguagem, contexto em que sempre entra em jogo o elemento conceitual. Como se converte a linguagem em arte? Não formulo essa pergunta unicamente porque a arte da interpretação possa ser vista sempre sob formas do falar e do texto, nem porque na poesia se esteja às voltas com produtos de linguagem, textos. Os produtos poéticos são “produtos” em um sentido novo, são “textos” em sentido eminente. A linguagem aparece aqui em sua autonomia plena. Está e coloca-se de pé por si própria, enquanto que nos outros casos as palavras são superadas pela intenção que as ultrapassa. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
Isso fica claro sobretudo quando estudamos os diversos modos da fala e suas peculiaridades. Não é só a palavra poética que exibe uma rica gama de diferenciações, como, por exemplo, o épico, o dramático, o lírico. Existem outros modos de linguagem nos quais a relação hermenêutica básica de pergunta e resposta se modifica significativamente. Refiro-me às diversas formas de linguagem religiosa, como a proclamação, a oração, o sermão, a bênção. Cito a “lenda” mítica, o texto jurídico e até a linguagem mais ou menos balbuciante da filosofia. Essas modalidades formam uma problemática da hermenêutica aplicada, à qual dediquei-me cada vez mais desde a aparição de Verdade e método I. Penso ter-me aproximado ao tema a partir de dois ângulos: meus estudos sobre Hegel, nos quais abordei o papel do elemento da linguagem na sua relação com o elemento lógico, e poesia hermética moderna, que analisei em um comentário ao Atemkrista.il de Paul Celan. A relação entre filosofia e poesia ocupa o centro dessas investigações. A reflexão sobre esse tema me serve e pode servir-nos a todos para recordar constantemente que Platão não foi platônico nem a filosofia é escolástica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.