Todavia, uma pergunta como esta só pode ser colocada hoje, depois que o Aufklärung histórico já mediu plenamente suas possibilidades. Os estudos de Dilthey sobre a gênese da hermenêutica desenvolvem um nexo congruente consigo mesmo e convincente, se se o examina do ponto de vista das pressuposições do conceito de ciência da Idade Moderna. A hermenêutica teve que começar por desvencilhar-se de todos os enquadramentos dogmáticos e liberar-se a si mesma para elevar-se ao significado universal de um organon histórico. Isto ocorreu no século XVIII, quando homens como Semler e Ernesti reconheceram que, para compreender adequadamente a Escritura, pressupõe-se reconhecer a diversidade de seus autores, e abandonar, por conseqüência, a unidade dogmática do cânon. Com essa “liberação da interpretação do dogma” (Dilthey), a reunião das Escrituras Sagradas da cristandade assume o papel de reunir fontes históricas que, na qualidade de obras escritas, têm de se submeter a uma interpretação não somente gramatical mas também histórica. A compreensão a partir do contexto do todo requer agora, necessariamente, também a restauração histórica do contexto de vida, a que pertencem os documentos. O velho princípio interpretativo de compreender o individual a partir do todo já não podia reportar-se nem limitar-se à unanimidade dogmática do cânon, mas dirigia-se à abrangência conjuntural da realidade histórica, a cuja totalidade pertence cada documento individual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Aos olhos de Dilthey, a hermenêutica não chega, pois, à sua verdadeira essência, a não ser quando ela transforma sua posição, a serviço de uma tarefa dogmática — que para o teólogo cristão é a correta proclamação do Evangelho — na função de um organon histórico. E se, pelo contrário, o ideal do Aufklärung histórico, a que pertence Dilthey, tivesse de se revelar como uma ilusão, então toda a pré-história da hermenêutica, esboçada por ele, teria de adquirir, também, um significado totalmente diferente; a virada em direção à consciência histórica já não seria sua liberação das presilhas do dogma, mas uma mudança de sua essência. E exatamente o mesmo vale para a hermenêutica filológica. Pois a ars critica da filologia teve, em princípio, sua pressuposição no caráter modelar irrefletido da antigüidade clássica, de cuja transmissão cuidava. Também ela, portanto, terá que se transformar em sua essência, se entre a antigüidade e o próprio presente já não existe nenhuma relação inequívoca de modelo e seguimento. Um índice disso é a quereile des anciens et des modernes, que cunha o tema geral para toda época compreendida entre o classicismo francês e o alemão. Este seria também o tema em torno do qual se desenvolveria a reflexão histórica, que acabaria dissolvendo a pretensão normativa da antigüidade clássica. Nos dois caminhos, portanto, da filologia e da teologia, dá-se o mesmo processo, que acabou levando à concepção de uma hermenêutica universal, para a qual o caráter de modelo especial já não representa uma pressuposição para a tarefa hermenêutica. [182] VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Obviamente, que Schleiermacher não é o primeiro a restringir a tarefa da hermenêutica nisso, em tornar compreensível aquilo que é intensionado por outros em discursos e textos. A arte da hermenêutica não tem sido nunca o organon da investigação da coisa em causa. Isso distinguiu-a desde o início do que Schleiermacher denomina dialética. Entretanto, sempre que alguém se esforça por compreender — por exemplo, a Escritura Sagrada ou os clássicos — está operando, indiretamente, uma referência à verdade que está oculta no texto e que deve chegar à luz. O que se deve compreender, na realidade, não é uma idéia, enquanto um momento vital, mas enquanto uma verdade. Este é o motivo por que a hermenêutica possui uma função auxiliar e permanece subordinada à investigação da coisa em causa. Também Schleiermacher leva isso em conta, desde o momento em que relaciona a hermenêutica por princípio — no sistema das ciências — à dialética. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Entretanto, o interesse que motivou Schleiermacher a essa abstração metodológica não era o do historiador, mas o do teólogo. Ele queria ensinar como se deve entender o discurso e a tradição escrita, porque o interesse está numa tradição única, a Bíblia, que importa à doutrina da fé. Por isso, sua teoria hermenêutica estava muito longe de uma historiografia que pudesse servir de organon metodológico às ciências do espírito. Sua meta era a apresentação determinada de textos, meta à qual devia servir também o comum dos nexos históricos. Esta é a barreira de Schleiermacher, frente à qual a concepção histórica do mundo não poderia ficar de pé. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas conseqüências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas conseqüências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.