Mas tampouco o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, atinge o cerne da questão. Já vimos que o objetivo de todo acordo e de toda compreensão é o entendimento sobre a própria coisa. A hermenêutica sempre se propôs como tarefa restabelecer o entendimento alterado ou inexistente. A história da hermenêutica é um bom testemunho disso; por exemplo, se se pensa em Santo AGOSTINHO, onde o Antigo Testamento deve ser mediado através da mensagem cristã222, ou no protestantismo primitivo, que estava às voltas com o mesmo problema, ou finalmente na era do Aufklärung, onde de imediato se produz quase a renúncia ao entendimento, quando “a compreensão completa” de um texto só deve ser alcançada pelo caminho da interpretação histórica. Só que, quando o romantismo e Schleiermacher fundam uma consciência histórica de alcance universal, prescindindo da forma vinculante da tradição, da qual procedem e na qual se encontram, como fundamento de todo esforço hermenêutico, isso representa uma verdadeira inovação qualitativa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Já AGOSTINHO desvaloriza expressamente a palavra externa e, com ela, todo o problema da multiplicidade das línguas, se bem que, no entanto, trata dele. A palavra externa, assim como a que somente é reproduzida interiormente, está vinculada a uma determinada língua (língua). O fato de que o verbo se diga em cada língua de outra maneira, somente significa que não se lhe manifesta em seu verdadeiro ser à língua humana. Com um desprezo inteiramente platônico pela manifestação sensível, diz AGOSTINHO: non dicitur, sicut est, sed sicut poíest videri audirive per corpus. A “verdadeira” palavra, o verbum cordis, é inteiramente independente dessa manifestação. Não é nem prolativum nem cogitativum in similitudine soni. Essa palavra interna é, pois, o espelho e a imagem da palavra divina. Quando AGOSTINHO e a escolástica tratam o problema do verbo para ganhar meios conceituais para o mistério da trindade, seu tema é exclusivamente essa palavra interior, a palavra do coração e sua relação com a intelligentia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
A dificuldade particular para tornar fecundo o pensamento escolástico para o nosso questionamento, consiste em que a compreensão cristã da palavra, tal como a encontramos na patrística, em parte como apoio, em parte como transformação de ideias da Antiguidade tardia, volta a se aproximar do conceito do logos da filosofia grega clássica, a partir da recepção da filosofia aristotélica pela alta escolástica. São Tomás, por exemplo, elabora sistematicamente a doutrina cristã, desenvolvida a partir do prólogo do Evangelho de João, mediada com o pensamento de Aristóteles. É significativo que nele mal se fale da multiplicidade das línguas, de que, todavia, AGOSTINHO acaba sempre tratando, ainda que termine por descartá-la em favor da “palavra interior”. Para ele, a doutrina da “palavra interior” é o pressuposto evidente, sob o qual investiga o nexo de forma e verbum. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.
Trata-se pois da metafísica platônico-neoplatônica da luz, com a qual se vincula a doutrina cristã da palavra, do verbum creans, a que antes nos dedicamos detidamente. E se designamos a estrutura ontológica do belo como o aparecer, em virtude do qual as coisas se mostram em sua medida e em seu contorno, isso vale na mesma medida para o âmbito inteligível. A luz que faz com que tudo apareça de maneira que seja luminoso e compreensível em si mesmo, é a luz da palavra. Em consequência, a metafísica da luz é o fundamento da estreita relação entre o aparecer do belo e a evidência do compreensível . Foi justamente essa relação que orientou nosso questionamento hermenêutico. Gostaria de recordar, nesse ponto, como a análise do ser da obra de arte nos tinha conduzido ao questionamento da hermenêutica, e como esta tinha se ampliado até converter-se num questionamento universal. Isso tudo deu-se sem qualquer consideração paralela da metafísica da luz. Se considerarmos agora o parentesco desta, com nosso questionamento, ajudar-nos-á o fato de que a estrutura da luz pode ser separada, evidentemente, da representação metafísica de uma fonte luminosa sensório-espiritual, ao estilo do pensamento neoplatônico cristão. Isso já pode ser apreciado na interpretação dogmática do relato da criação, em Santo AGOSTINHO. Este observa que a luz foi criada antes da distinção das coisas e da criação dos corpos celestes que a emitem. Ele põe uma ênfase especial no fato de que a criação inicial do céu e da terra tem lugar ainda sem a palavra divina. Deus só fala pela primeira vez ao criar a luz. E esse falar, pelo qual se nomeia e se cria a luz, é interpretado por ele como um vir à luz espiritual, que tornará possível a diferença entre as coisas formadas. Só pela luz a massa informe e primeira do céu e da terra adquire a capacidade de configurar-se em muitas formas diferentes. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Mas também o lado objetivo desse círculo, tal como o descreve Schleiermacher, não atinge o cerne do problema. O objetivo de todo entendimento e compreensão é o acordo quanto à coisa. Dessa forma, a hermenêutica teve, desde sempre, a tarefa de suprir a falta de acordo ou de restabelecer o acordo, quando perturbado. A história da hermenêutica comprova isso. Por exemplo, quando Santo AGOSTINHO afirma que o Antigo Testamento deve ser mediado pela mensagem cristã, ou quando o protestantismo primitivo se via colocado diante do mesmo problema, ou finalmente na época do Iluminismo, onde, na vontade de alcançar a “compreensão plena” de um texto somente pelas vias da interpretação histórica, tinha-se quase que renunciar ao acordo. Trata-se, pois, de algo qualitativamente novo, quando o romantismo e Schleiermacher, criando uma consciência histórica com alcance universal, já não dão mais valor à figura vinculante da tradição, da qual procedem e na qual estão postados, como uma base sólida para todo esforço hermenêutico. Um dos precursores imediatos de Schleiermacher, o filólogo Friedrich Ast, compreendeu o conteúdo fundamental da tarefa hermenêutica, ao reivindicar para ela o restabelecimento do acordo entre Antiguidade e Cristianismo, entre uma verdadeira antiguidade, vista de modo novo, e a tradição cristã. Frente ao Iluminismo, isso é algo totalmente novo, à medida que agora já não se trata mais de uma mediação entre a autoridade da tradição, por um lado, e a razão natural, por outro, mas da mediação de dois elementos da tradição, ambos vindos à consciência pelo Iluminismo, que impõe a tarefa de sua reconciliação. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 5.
Em sentido teológico, a hermenêutica significa a arte de interpretar corretamente a Sagrada Escritura, que sendo de tempos muito remotos despertava, já nos tempos da patrística, uma consciência metodológica, sobretudo no livro De doctrina Christiana de AGOSTINHO. A tarefa de uma dogmática cristã viu-se determinada pela tensão entre a história específica do povo judeu, interpretada no Antigo Testamento como história da salvação, e o anúncio universal de Jesus no Novo Testamento. Aqui a reflexão metodológica deveria ajudar a criar soluções. Em De doctrina Christiana, utilizando-se de ideias neoplatônicas, AGOSTINHO ensina a elevar o espírito desde um sentido literal e moral para um sentido espiritual. Com isso resolve o problema dogmático, reunindo sob um ponto de vista unitário a antiga herança hermenêutica. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
O núcleo da antiga hermenêutica é o problema da interpretação alegórica. Em si, esta é bem mais antiga. Hyponoia, literalmente o sentido subjacente, foi a primeira palavra usada para significar sentido alegórico. Essa interpretação já era corrente na época da Sofística, como já afirmava a seu tempo A. Tate e confirmam textos de papiro mais recentes. O contexto histórico é claro: desde o momento em que o universo dos valores da epopeia homérica, ideado para uma sociedade aristocrática, perdeu sua força autoritativa, fez-se necessária uma nova arte interpretativa para a tradição. Isso aconteceu com a democratização das cidades, cujo patriciado foi assumido pela ética aristocrática. A sua expressão foi a ideia pedagógica da sofística: Ulisses ocupou o lugar de Aquiles, assumindo, não raro, traços sofísticos também no teatro. A alegoresis tornou-se um método universal, especialmente na interpretação helenística de Homero feita pelo estoicismo. A hermenêutica patrística, sintetizada por Orígenes e AGOSTINHO, assumiu esse veio. Na Idade Média, foi sistematizada por Cassiano e converteu-se no método do quádruplo sentido da Escritura. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das “formas simbólicas” (Cassirer), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas “fato”, mas “princípio”. É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de AGOSTINHO e Tomás de Aquino, à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um “sentido”, e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel (112) expressou-o na sua teoria do “espírito objetivo”. Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por Aristóteles e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a Aristóteles, ilustrou este capítulo correspondente de Aristóteles (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A linguística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando “do lado de fora” os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de “experiência” a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 8.
Claro que esse desvio realizado pela explicação histórica não se dá apenas nos moldes do Iluminismo moderno. Frente ao Antigo Testamento, a teologia cristã, por exemplo, viu-se logo na obrigação de iluminar exegeticamente seus conteúdos — inconciliáveis com a dogmática e a moral cristãs — e para isso, além da interpretação alegórica e tipológica, como demonstrou por exemplo AGOSTINHO no De Doctrina Christiana, serviu-se também da reflexão histórica. Mas nesse caso a tradição dogmática da Igreja cristã continuou sendo a base inamovível. As reflexões históricas eram um recurso esporádico e secundário na compreensão da Sagrada Escritura. Com o surgimento da nova ciência da natureza e sua crítica, isso mudou substancialmente. Aquilo que na Sagrada Escritura, em consonância com a ciência moderna, pode ser compreendido a partir da pura razão é uma faixa muito estreita. Com isso cresce consideravelmente o âmbito do que se pode compreender apenas com recurso às condições históricas. É verdade que para Spinoza existe ainda uma evidência imediata das verdades morais que a razão pode reconhecer na Bíblia. Essa evidência assemelha-se, em certo sentido, à da geometria de Euclides, que contém verdades tão imediatamente evidentes à razão que já não se questiona sua origem histórica. No entanto, as verdades morais que possuem essa evidência na tradição bíblica representam para Spinoza apenas uma pequena parcela do todo da tradição bíblica. A Sagrada Escritura, no seu todo, continua estranha à razão. Se quisermos compreendê-la devemos recorrer à reflexão histórica, como é o caso da crítica dos milagres. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.
Deus, porém, é a palavra. Desde os primórdios, a palavra humana serviu, no âmbito da reflexão teológica, para visualizar a palavra de Deus e o mistério da Trindade. Sobretudo AGOSTINHO descreveu em muitas variantes o mistério sobre-humano da Trindade a partir da palavra e do diálogo, e de como este se dá entre os seres humanos. Ora, a palavra e o diálogo tem em si um momento de jogo. O modo como se ousa dizer uma palavra ou bem “guardá-la consigo”, o modo de arrancar do outro uma palavra e dele obter uma resposta, o modo como respondemos e como cada palavra “comporta um espaço de jogo” no contexto determinado em que é dita e compreendida, tudo isso aponta para uma estrutura comum entre o compreender e o jogar. A criança começa a conhecer o mundo através de jogos de linguagem. Sim, tudo que aprendemos, realiza-se em jogos de linguagem. Isso, porém, não significa que quando falamos estejamos apenas jogando um jogo, sem levar a fala a sério. Ao contrário, as palavras que encontramos mobilizam nossa própria opinião, integrando-a em relações que ultrapassam o caráter momentâneo de nossa opinião. Quando é que a criança que escuta e imita as palavras dos adultos começa a compreender as palavras que usa? Quando é que o jogo torna-se sério? Quando começa a seriedade e deixa de ser jogo? De certo modo, a fixação do (131) significado das palavras brota sempre ludicamente do valor situacional das palavras. Assim como a escrita fixa o elemento sonoro da linguagem que assim repercute articulando a configuração sonora da própria linguagem, também a fala viva e a vida da linguagem têm o seu jogo nesse movimento de alternância viva. Ninguém pode fixar o significado de uma palavra e nem tampouco o simples aprendizado correto e o uso do significado fixo das palavras são garantias de que alguém saiba e possa falar. A vida da linguagem consiste antes no progresso constante do jogo que começamos a jogar quando aprendemos a falar. Novos usos de linguagem estão sempre a entrar em jogo, da mesma maneira que saem imperceptível e involuntariamente do jogo. Nesse jogo contínuo joga-se a convivência dos seres humanos. Também o entendimento que se dá na conversação é um jogo. Quando duas pessoas conversam entre si, falam a mesma linguagem. Elas próprias não se dão conta de que pelo fato de falarem estão dando continuidade ao jogo da linguagem. Ademais, cada uma também fala sua própria linguagem. A compreensão dá-se porque tem lugar um discurso contra discurso, sem que esse lugar se torne fixo. Na conversação entramos constantemente no mundo das ideias do outro, nos confiamos ao outro e ele se confia a nós. Assim, alternamos mutuamente o jogo até que tenha início o verdadeiro diálogo, o jogo de dar e receber. Não se pode negar que nesse diálogo verdadeiro se dê o que costumamos chamar de acaso, de prazer da surpresa, e por fim, também, de leveza e enlevo, que constituem parte essencial do jogo. Esse enlevo é experimentado ademais sem perder a posse de si mesmo, pois mesmo sem nos darmos conta fazemos a sua experiência como um enriquecimento pessoal. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 9.
A continuidade da história remete ao enigma do tempo que flui. O fato de o tempo não parar constitui o antigo problema da análise temporal aristotélica e agostiniana. Sobretudo AGOSTINHO nos faz ver a perplexidade ontológica que acomete o antigo pensamento grego, quando precisa enunciar o que é o tempo. O que é essa realidade que em nenhum momento pode-se identificar realmente consigo mesma como aquilo que existe? Pois mesmo o agora já não é agora no momento em que o identifico como agora. O decurso dos agoras num passado infinito, seu incurso desde um futuro infinito, deixa no ar a pergunta sobre o que é o agora e o que é propriamente esse rio de tempo transitório que chega e que passa. VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 10.
Parece-me um erro considerar essa orientação lógica da hermenêutica como a verdadeira realização da ideia de hermenêutica, como faz H. Haeger. O próprio Dannhauer, um teólogo de Estrasburgo dos inícios do século XVII, professa-se seguidor do Organon de Aristóteles, que o teria libertado das confusões da dialética de sua época. Mas, desconsiderando essa orientação teórico-científica e examinando o conteúdo, vemos que compartilha quase plenamente com a hermenêutica protestante. E, se esquece sua relação com a retórica, ele o faz por referência imediata a Flacius, que teria dedicado suficiente atenção a esse aspecto. Mas, enquanto teólogo protestante, compartilha expressamente do reconhecimento da relevância da retórica. Em sua Hermenêutica sacrae scripturae cita largamente AGOSTINHO para demonstrar que na Sagrada Escritura não existe uma mera ausência de arte (como poderia parecer desde o ideal ciceroniano da retórica), mas um gênero especial de eloquência próprio (289) a homens de autoridade suprema e a homens quase divinos. Vê-se como o cânon estilístico da retórica humanista continuava vigente no século XVII, uma vez que o teólogo cristão só podia precaver-se apelando para o fato de que ele, com AGOSTINHO, defendia o aspecto retórico da Bíblia. A novidade de sua reorientação racionalista em relação à proposta metodológica da hermenêutica, quanto ao conteúdo, não atinge a substância desta, tal como havia sido inaugurado pelo princípio bíblico da Reforma. O próprio Dannhauer refere-se constantemente às questões teológicas controversas e insiste, como todos os outros luteranos, que a capacidade hermenêutica e a possibilidade de compreender a Sagrada Escritura é comum a todos os homens. Ele também considera a formação hermenêutica um bom instrumento para rebater os papistas. VERDADE E METODO II OUTROS 20.
Mas tampouco posso compreender por que o autor se distancia assim da relação dessa palavra com o Deus Hermes. Não posso partilhar o sentimento de triunfo do autor quando acentua que a moderna ciência da linguagem constatou que a derivação da palavra “hermenêutica” de Hermes não passa de uma ficção e que ignoramos seu significado etimológico (84, nota 160). Tomo conhecimento disso e não me deixo enganar quando vejo como AGOSTINHO e toda a tradição compreenderam essa palavra. A referência a Benveniste (41, nota 17a) não pode alterar em nada a questão. O testemunho da tradição pesa muito, não como um argumento de linguagem, é claro, mas como uma indicação válida do alcance e universalidade com que se deve ver e se viu o fenômeno hermenêutico: como “mensageiro do pensamento”. VERDADE E METODO II OUTROS 21.
O autor finca pé num conceito de “hermenêutica construtiva” que ele formulou e com a qual busca conectar de modo um tanto ridículo o conceito husserliano dos atos que dão sentido (83s). O certo é que, contra essa doutrina de Husserl, há certas objeções que deveriam partir sobretudo da crítica ontológica de Heidegger contra os preconceitos de Husserl. Mas o que tem isso a ver com uma “hermenêutica construtiva”? E o que seria “hermenêutica construtiva”? Tampouco a ideia da força expressiva da linguagem (298) tem algo a ver com a frase heideggeriana “a linguagem fala”. O sentido da formulação provocativa de Heidegger é a precedência da linguagem com relação a qualquer interlocutor singular. Cabe afirmar assim, num certo sentido — mas certamente não no sentido suposto pelo autor — que a linguagem possui também uma certa prioridade, embora limitada, sobre o pensamento. O sentido inteligível da frase “a linguagem fala” está implícito, segundo me parece, na ideia neoplatônica de que a palavra singular, que é na verdade a palavra do pensamento, articula-se nas palavras e no discurso. O próprio autor toca nesse tema no final do seu tratado quando cita a psyque de Plotino (82), mas sem extrair dele nenhuma conclusão. Creio ter demonstrado que essa doutrina tem a seu favor tanto o pensamento de AGOSTINHO quanto o de Nicolau de Cusa. O papel que o pietismo desempenha na “psicologização” da interpretação representa quem sabe a mediação decisiva entre o legado retórico-humanista e a teoria romântica (A.H. Francke, Rambach). Jaeger não faz nenhuma referência a essa mediação. VERDADE E METODO II OUTROS 21.
Há uma pergunta que me inquieta desde vários decênios: O que pode significar hoje a opção a favor dos anciens? Essa opção está comprometida em todo caso com a hipoteca de que seu defensor não vê e pensa simplesmente com os olhos dos anciens, mas que como historiador atual vê essa visão e pensa esse pensamento. Assim o próprio Jaeger vê-se imerso numa problemática hermenêutica que o diferencia dos anciens pelo menos pelo fato de repudiar com feroz sarcasmo a hermenêutica contemporânea. Não se pode negar seriamente que uma investigação, como a que ele apresenta, (300) lança mão dos pressupostos da era pós-romântica, quer dizer, da consciência histórica. Isso significa que ele, como qualquer outro, pertence aos “modernos”. Isso não significa de modo nenhum que com esse reconhecimento se projetem no passado as teorias específicas da “hermenêutica recente”. Tampouco cabe negar aqui que a distância histórica que separa o cristianismo do tempo de AGOSTINHO da cultura nômade da era dos patriarcas tenha constituído um verdadeiro problema hermenêutico para o próprio AGOSTINHO. A assimilação religiosa dos escritos veterotestamentários pelo cristianismo não esteve livre de problemas. Nesse sentido, o De doctrina Christiana possui uma dimensão hermenêutica. VERDADE E METODO II OUTROS 21.
E evidente que o princípio de desconstrução busca o mesmo. Também Derrida busca superar um âmbito de sentido metafísico que forma a base das palavras e seus significados no processo que ele chama de écriture e cuja realização não é um ser essencial, mas a linha, o rastro indicador. Desse modo, Derrida ataca o conceito metafísico de logos e fala de um logocentrismo, que afetaria inclusive a questão do ser em Heidegger como pergunta pelo sentido do ser. Trata-se de um Heidegger estranho, reinterpretado na perspectiva de Husserl, como se a fala consistisse sempre em enunciados ao modo de juízo. Nesse sentido, pode-se dizer que a infatigável constituição de sentido a que se dedica a investigação fenomenológica e que se realiza no ato de pensar como cumprimento de uma intenção da consciência, refere-se à “presença”. A voz (la voix) que anuncia está subordinada de certo modo à presença do que é pensado no pensamento. Na verdade, também no esforço de Husserl em favor de uma filosofia honesta é a experiência de tempo e a consciência de tempo que precedem toda “presença” e toda constituição, inclusive de aquela de validade supratemporal. Mas o problema do tempo torna-se insolúvel no pensamento de Husserl porque no fundo ele mantém o conceito grego de ser, que o próprio AGOSTINHO já havia desqualificado através do enigma presente no ser do tempo, a saber, o tempo “agora” é e também não é, para expressá-lo com Hegel. VERDADE E METODO II OUTROS 25.
A partir do momento em que comecei a ser professor em Leipzig, sendo o único representante da matéria depois da jubilação de Theodor Litt, já não pude adaptar tão facilmente o ensino aos meus planos de investigação. Tinha que expor, além dos gregos e seu último e maior sucessor, Hegel, toda a tradição clássica desde AGOSTINHO e Tomás de Aquino até Nietzsche, Husserl e Heidegger… sempre atento aos textos, em minha condição de semifilólogo. Em seminários, trabalhei também com textos poéticos difíceis, de Hölderlin, Goethe e Rilke sobretudo. Esse último, graças à sua linguagem refinada, era então o verdadeiro poeta da resistência universitária. Quem falasse como Rilke ou expusesse Hölderlin, como fazia Heidegger, era marginalizado e atraía os marginalizados para si. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.
A história da metafísica poderia ser escrita também como uma história do platonismo. Suas etapas seriam Plotino e AGOSTINHO, Mestre Eckhart e Nicolau de Cusa, Leibniz, Kant e Hegel; e, por fim, todos aqueles esforços intelectuais do Ocidente que perguntam pelo ser substancial da ideia e em geral pela teoria da (503) substância da tradição metafísica. Mas o primeiro platônico dessa série não seria outro que o próprio Aristóteles. O objetivo de meus estudos nesse campo seria fazer crer nessa tese tanto frente à instância da crítica aristotélica à doutrina das ideias como frente à metafísica da substância na tradição ocidental. E eu não estaria sozinho. Houve Hegel. VERDADE E METODO II ANEXOS 30.