Vale a pena começar este trabalho citando uma frase bem expressiva de W. Dilthey, filósofo da existência histórica, quando diz : “Somos em primeiro lugar seres históricos antes de sermos historiadores da história e somente porque somos seres históricos é que podemos ser historiadores da história”. 1 E, mais adiante, completa o seu pensamento : “História e vida se identificam num sentido profundamente dialético-real: a conexão da história é a própria vida na medida em que produz uma relação segundo as condições de seu meio natural. O que é a vida, só nos ensinará a história. E esta se acha essencialmente referida à vida. A história é o curso no tempo da vida e por isso encontra nela o seu conteúdo. Por sua matéria (a vida) se identifica com a história de vez que a história não é mais do que a vida apreendida do ponto de vista do todo da humanidade, aí há história”. 2
Portanto, vivência, compreensão e conexão constituem os elementos básicos para a decifração da história humana que dão à historicidade um sentido verdadeiro da existência do homem. História é a ação humana que se temporaliza, que se presentifica sob as formas dos mais diferenciados modos de fazer, conhecer e sentir.
Posto que as mito-poéticas, teogonias e cosmologia órficas precederam e influenciaram a física milésia e a metafísica eleática, pitagórica e platônica, e que as escatologias helenísticas inspiradas nas doutrinas dos mistérios de Deméter e Dionisos sucederam e reagiram contra a antropologia sofista e socrática, reabilitando os velhos mitos mediante a exegese de Platão por Orfeu – tornava-se verossímel a hipótese de que nunca a primitiva religião helênica ou pré-helênica cessara de agir subterraneamente no pensamento filosófico dos gregos, -e tanto mais verossímil uma tese pela qual se pretendia estabelecer a perenidade de uma recíproca relação entre as formas expressivas da consciência mítica e da ciência filosófica. 3
Escreve, ainda, Eudoro, citando Werner Jaeger, “desde o princípio sublinhamos o fato de que não existe um abismo intransponível entre a primitiva poesia grega e a esfera racional da filosofia, a racionalização da realidade começou mesmo no mundo mítico de Homero e Hesíodo, e há ainda um germe de produtiva força mítico poética na milésia explicação de Natureza, que não deixa de operar no campo do entendimento ou da razão humana”. 4
Não é outro o posicionamento de Píndaro, o grande poeta helênico, num livro de Jacqueline Duchemin, Pindare poète et prophète, citado por Mikel Dufrenne, em seu livro “Estética e Filosofia”, 5 quando exaltando o social por si mesmo, associa-o às potências da natureza, isto é, às potências da vida, uma temática de vida florescente.
Aqui o social e a vida se integram no contexto de um todo, um todo que contém dentro de si mesmo uma dialética do luminoso e do obscuro : uma primeira apreensão, observa Dufrenne da consciência como abertura para o mundo, do mundo como aberto para uma consciência. “ É a vida que se deslumbra, no homem, um conhecimento se torna possível e, de algum modo, com esse extraordinário advento da reflexão, pelo qual por iniciativa do mundo mesmo, pois se o homem tem sentidos, também as coisas têm um sentido”. 6 E mais adiante : A beleza do mundo, é antes de tudo, sua realização no olhar que se iguala ao mundo: a forma espontânea de seu desvelamento e a promessa de sua inteligibilidade. O fato de habitar o mundo, equivaler a conhecê-lo, é indubitavelmente belo. Talvez esse advento da consciência para: fora das trevas do gesto imediato tenha sido celebrado pelas hierofanias da luz”. 7
Assim, um desvelar-se da consciência na luminosidade da vida e do mundo, razão por que o poeta celebrando a luz da vida, glorifica a consciência desabrochando da própria vida. Ela conquista o espaço que é o lugar do encontro do homem com o mundo.
Já se vê, portanto, que não há nessa linguagem nenhuma ocultação da condição humana como expressão de uma corporalidade vivida e sentida. Sente-se o mundo, percebe-se os mistérios da vida “sem uma intenção escatológica”, mas numa transformação maravilhosa de realização mesma de uma realidade profunda na qual o homem se presentifica, através de uma luminosidade consciental, subjetiva e objetiva ao mesmo tempo.
No triunfalismo pindárico, isto é, nos Epinicios cantados pelo poeta há, ainda, como conteúdo existencial, uma ambivalência do funerário e do triunfal. Talvez, escreve Dufrenne, “a vida se reflita no vivente que se descobre mortal, já a sombra apareça como a triste metade da luz : o nada desponta no ser, mas é a vida que carrega a morte e sem que uma vida a negue.
É própria de Orfeu a posição escatológica de salvação sobrenatural, e a primitiva poesia grega se nutria do mito dos deuses, como recurso do alegorismo. Mas, como observa Dufrenne, chamando a atenção de Jacqueline Duchemin, se Píndaro se refere a esses mistérios da morte e da beatificação dos justos, é menos para anunciar um mundo misterioso do que para exprimir o mistério desse mundo, no qual o mito ainda não está separado do aqui.
Mas repetimos, citando ainda Dufrenne, a espiritualidade de Píndaro não consiste numa intenção escatológica, mas na glorificação desta vida. A transformação maravilhosa que o poema opera não é um ato de imortalização, é a realização mesma da “realidade profunda” na qual o homem está presente e que vem à consciência pelo próprio homem, ao mesmo tempo vem à “consciência por ela. 8
Emmanuel Carneiro Leão escrevendo sobre a “hermenêutica do mito”, 9 salienta que o mito vem estranhamente interessando às pesquisas de filósofos e antropólogos, literatos e psicólogos, sociólogos e historiadores; mais estranho ainda o interesse dos filósofos existenciais. E até já haver um problema filosófico do mito. Ocorre, porém, que para os existenciais essa problemática tem uma outra significação além daquela que consiste na explicação do que sejam razão e racionalidade, porque tudo isso deve ser encarado por outro prisma, por uma ótica diferente daquilo que consagra a metafísica tradicional, ou clássica, como queiram.
O que se argumentava à luz da verdade, o que se pretendia induzir ao entendimento dos incautos era que a questão do mito só podia ser decodificada por um emprego maior da razão sobre o que se convencionava chamar de irracional ou ilógica.
Já o positivismo de Comte na sua ingênua e pueril teoria dos “três estados” pretendia demonstrar que um maior atraso no desenvolvimento científico se devia a um estado infantil da humanidade com seus mitos e suas crenças. Antecedendo a Comte toda uma filosofia substancialista também erigiu a razão como a verdade de toda filosofia, fazendo do mito um verdadeiro fantasma. Não era outra a posição do socratismo, do aristotelismo, de escolástica, do racionalismo do Cogito, de todo o criticismo e do panlogismo hegeliano que tudo levava ao Absoluto.
Uma nova maneira de pensar, entretanto, no nosso tempo, passou a reformular e a redescobrir o pensamento auroral e originário, mostrando que o mito podia ser considerado como validade indiscutível, na busca de verdades que são intrínsecas, ao próprio homem, porque como tão bem diz Carneiro Leão no seu livro já citado, p. 195, o que o filósofo procura na verdade do mito é a verdade da própria filosofia.
Ao nietzscheismo desassombrado e autêntico devemos a abertura para a pesquisa do pensamento originário, para o estabelecimento de uma filosofia lúdica, perspectivista, dimensionando as amplas proporções do antigo pensamento grego, e desta feita, contribuindo para uma verdadeira revolução no pensamento ocidental, fatigado da velha metafísica, dos falsos valores, de uma eticidade que parecia inarredável e absoluta. Uma verdadeira “camisa de força”, como dizia Nietzsche, que tendia a abafar a voz da humanidade e entorpecer o verdadeiro sentido da vida.
Dos mitos órficos, homéricos e pindáricos, passaríamos a conhecer o teatro sofocliano, com o Édipo-Rei e a Antigona; o Prometeu de Ésquilo; o fragmento imortal de Anaximandro, o ser de Parmênides e o vir-a-ser de Heráclito de Éfeso, enfim, toda uma gama de conhecimentos maravilhosos que iriam levar Martin Heidegger lançar Sein und Zeit, Ser e Tempo, sua primeira obra que o consagrou como um dos maiores pensadores deste século.
- NA: Dilthey, W – Escritos Reunidos – E. Weniger, Leipzig, 1934. Apud Emanuel Carneiro Leão, Aprendendo a Pensar – Vozes, pp. 31/32.[↩]
- NA: Ibid. pp. 35/36.[↩]
- NA: Sousa, Eudoro de – Orfeu, ou acerca do conceito da Filosofia Antiga R.B.F. São Paulo – julho-setembro, 1953 – pp. 393/94.[↩]
- NA: Ibid. pp. 394.[↩]
- NA: Dufrenne, Mikel – Estética e Filosofia – pp. 206/207.[↩]
- NA: 6. Ibid. p. 207.[↩]
- NA: Ibid. p. 207.[↩]
- NA: 8. Ibid. p. 211.[↩]
- NA: Carneiro Leão, Emmanuel – Aprendendo a Pensar – Vozes, p. 193.[↩]