10. A causa mais importante do declínio do realismo, no início da chamada idade moderna e da sua posterior total substituição pelo criticismo não foi, como frequentemente assinalam os historiadores, o descrédito em que caiu a física de Aristóteles, depois das novas descobertas científicas, arrastando consigo também o descrédito da metafísica; diversamente, o que se deu foi que o realismo não podia caber numa realidade seccionada, projetada pela ciência, que nem por isso mesmo explicava cientificamente e não poderia nunca explicá-la metafisicamente.
A planificação do mundo, que destruiu o sentimento do lugar habitado, não podia deixar de destruir também o sentimento do tempo vivido. Todos os tempos se tornaram iguais como todos os espaços. As noções mais profundas da vida mística e religiosa vieram a sucumbir pela noção científica do tempo homogêneo. Fora do existencialismo religioso, com a sua preocupação da finitude e da morte, e que constitui no seu contorno uma volta à imanência grega do divino e fora da Igreja, o homem não mais se sentiu vivendo numa época determinada da história, começou a ver o passado em função do presente, perdeu a noção do seu próprio tempo, como também a do seu próprio lugar: em verdade não existem o lugar e o tempo contemporâneos, porque o homem contemporâneo não é autenticamente ele mesmo; Nietzsche parece ter sido o primeiro a ver esta verdade, que o homem atual não é mais que um espantalho.
“Com a face e os membros pintados de mil maneiras, assim me assombrastes, homens atuais. E com mil espelhos à vossa roda, que adulavam e repetiam o efeito das vossas cores. Certo, não podíeis usar melhores máscaras que a vossa própria cara, homens atuais. Quem vos poderia reconhecer? Pintalgados com os sinais do passado, cobertos a seu turno com outros sinais: assim vos ocultastes de todos os intérpretes. . . Todos os tempos e todos os povos olham revoltadamente através de vossos véus; todos os costumes e todas as crenças falam confundidas através de vossa linguagem. Aquele que vos tirasse os véus, as cores e as atitudes, não deixaria mais do que um espantalho”. 1 [160]
É que o homem atual não tem o seu próprio tempo; se tivesse um tempo seu, teria também uma cultura sua. Mas como poderia ele ter o seu próprio tempo se todos os tempos se lhe apresentam como uniformes e homogêneos? Come graus de um barômetro, cujo ponto mais alto é o presente? E que sentido tem esse presente, depois da morte do passado e da falta de objetivo do futuro? Assim não têm sentido os dias, os meses e os anos, que se transformaram numa repetição mecânica do mesmo tempo, um tempo sem heterogeneidade; ora, a negação da heterogeneidade do tempo é a negação do rito e consequentemente a negação da vida; o tempo que nós vivemos não é o tempo científico, não é a quarta dimensão da física, não é nenhum espaço-tempo, é um tempo que a ciência não alcança; a perda do tempo heterogêneo se exprime no pensamento moderno por uma série de teorias que pretendem abraçar a realidade tratando o tempo em termos de espaço, segundo a famosa teoria bergsoniana, que demonstra a negação da duração pela ciência. A crise do sentido interno cancelou a noção do momento privilegiado, tratando todos os momentos como iguais, isto é, como a igualitária e monótona repetição de momentos idênticos uns aos outros, como se a vida não fosse tecida de momentos heterogêneos, desiguais, unificados somente pela substancialidade ou pela permanência intrínseca do indivíduo no qual os momentos vivem; mas, para compreender a heterogeneidade real do tempo era preciso compreender a substancialidade do indivíduo; e como a ciência não capta a substância, destruiu necessariamente o tempo heterogêneo, isto é, a duração e o ritmo: a consequência é a monotonia que pesa sobre a nossa época, com a ausência de todo sentimento rítmico, indicando o termo final do processo anti-cultural. A vida desfeita retorna ao inorgânico, ao caos, que é o oposto do orgânico e do cósmico.