Barbuy: senso comum (1) – senso interno

1. Poder-se-ia indiferentemente falar em crise do senso comum ou crise da intuição originária. O que se desejaria entender pela expressão “senso comum” não é outra cousa senão a intuição profunda da realidade concreta, uma faculdade que não é comum no sentido de que pertença necessariamente a todos e sim no sentido de ser distinta e comum a todas as faculdades que nos ligam à realidade, dominando-as e unificando-as numa síntese, a que tanto se pode denominar sabedoria da vida, como visão da essência e do mistério da realidade. Talvez pudesse ser outro o nome dessa faculdade, a que se denomina senso comum, numa época em que esse mesmo senso se torna cada vez mais excepcional e menos comum. Talvez devesse denominar-se intuição originária ou ter qualquer outro nome, desde que a expressão senso comum nunca se tornou tão corrente, tão vulgar e tão ambígua como nos últimos dois séculos. Mas inversamente, talvez o nome dessa faculdade deva ser precisamente senso comum, porque foi a sua ausência que firmou a intuição da sua existência, com tanto maior nitidez quanto o seu contrário, que é a insensatez, tem ultimamente dominado os setores mais salientes da atividade humana. A expressão “senso comum”, com a amplitude de que se enriqueceu nos últimos séculos, caiu no uso corrente quando o próprio senso comum, ou a intuição originária, ou a sabedoria da vida, ou a intuição íntima da realidade, ou a faculdade que forja as experiências incomuns, se foi banindo gradualmente da atividade vital.

O abuso da expressão “senso comum” trai o sentimento da ausência do que se poderia denominar o verdadeiro senso [133] comum, cuja falta se procura iludir, confundindo a intuição da realidade com as opiniões coletivas e vulgares, com as noções “científicas”, banais e obtusas do mundo e da vida, nascidas da pobreza espiritual do nosso tempo, como se o senso comum tivesse que ser denominado comum pelo simples fato de ser vulgar; o senso comum, ao contrário, é a fonte das intuições originais, concretas e profundas da realidade e se torna cada vez menos comum; o senso comum é para Balmes um dos critérios da verdade, um senso que se move imediatamente e é comum porque o seu termo pertence à ordem objetiva, não por ser vulgar. Se o que se pode denominar senso comum verdadeiro foi o patrimônio de épocas transactas e de sociedades que já viveram, este senso pode ter pertencido a todos, mas não foi comum por pertencer a todos e sim por fundar uma visão geral da vida que ligava o homem aos valores concretos e aos mistérios do ser; é neste sentido que a sabedoria popular dos provérbios e as normas do velho direito consuetudinário podem ser tomadas como expressões do senso comum, porque geradas por épocas em que o senso comum era dominante. Se ao contrário, a insensatez domina a vida em outras épocas, nem por isso se pode denominar de senso comum a insensatez, como se a generalização do insensato pudesse torná-lo sensato. A expressão “senso comum” pode, com toda razão servir para designar o perdido equilíbrio do homem diante de si mesmo e diante da realidade do mundo.

O termo “senso comum” designa desde Aristóteles uma faculdade interna que distingue, centraliza e coordena as impressões recebidas de fora e adquire importância capital no processo do conhecimento, pois estabelece uma ligação entre o abstrato do conhecimento intelectual e o concreto da experiência vital. Em Aristóteles o senso comum aparece primeiramente como um sentido comum aos demais (De Anima, 425, a, b); um sentido anorgânico que liga o julgamento ao sensível concreto, enunciando a diferença entre qualidades distintas, que são objetos de sentidos orgânicos distintos; o senso comum é sempre a única e mesma faculdade que se pronuncia (ou que julga) juntamente com as demais e que, assim como julga assim também pensa e percebe, desde que não é possível, com órgãos separados julgar sensíveis separados (426, a); é a faculdade que faz a unidade do conhecimento sensível e opera a discriminação entre os sensíveis do mesmo gênero e de gêneros [134] distintos (431, a); é a matéria-prima da sensitiva (S. Tomás, Summa Th. I, 78, 4 — De Somno et Vigilia, c. 2, lect. 3 — II Sent. dist. 20 q 2 a 2). — Esta collatio é que faz com que a cogitativa (que poderia ter vindo a ser a denominação do senso comum) seja uma ratio particularis, collativa intentionum individualium, assim como a ratio intellectiva é uma ratio intentionum universalium. — Sensus communis, phantasia, aestimativa, cogitativa, memorativa, constituem o fundamento próximo do senso comum na sua acepção corrente e no seu sentido lato, que é o de uma faculdade dominante da experiência vital e se alarga, desde a percepção que distingue uma sensação de outra, até o julgamento do valor dos objetos concretos, faculdade sem a qual o conhecimento intelectivo seria impossível, desde que a inteligência conhece através dos sentidos sobre os quais elabora os conceitos; nem a inteligência sem o senso comum, nem o senso comum sem a inteligência podem elaborar o conhecimento da realidade; a inteligência conhece mais do que os sentidos, mas não poderia conhecer nada sem os sentidos; licet intellectus operado oriatur a sensu tamen in re apprehensa per sensum intellectus multa cognoscit quae sensus percipere non potest. (Summa Th. 78, a. 4, ad 4). No mais profundo dos seus sentidos o senso comum é a faculdade que dá unidade à experiência vital, liga o homem ao mundo existente, constitui o intermediário entre o mundo dos objetos particulares e a universalidade dos conceitos; este valor do senso comum no seu sentido lato se realça no homem nas potências cogitativa e memorativa, per aliquam affinitatem et propinquitatem ad rationem universalem (id. ad5). O intelecto passivo é assim chamado virtus cogitativa quae nominatur ratio particularis (Summa Th. 79, a. 2 ad 2; Quaest. Disp. De Anima a. 13). O senso comum pode definir-se, pois, como razão particular, como intuição do concreto, como relação direta entre o sujeito e o mundo existente.

Assim como o conjunto das faculdades do senso comum se comporta para com a inteligência teórica, assim também se comporta para com a inteligência prática; assim como os primeiros princípios da inteligência especulativa são pertinentes a um hábito especial e faculdade dianoiética, ou do conhecimento discursivo, que julga segundo imagens sensíveis, de onde formula os conceitos de bom e de mau, pois que a alma não pensa sem imagens (431, a); é o ponto de partida de todo [135] intelecto prático (431, a, b); é indispensável à faculdade noética que pensa as formas nas imagens (431, b). O senso comum aristotélico julga, pensa, discerne, liga a inteligência à realidade; é uma verdadeira consciência sensível.

O senso comum pode ser tomado como o conjunto daquelas faculdades internas que os escolásticos distinguiram: inicialmente a própria faculdade que se denominou sensus communis, sentido interno radical que faz com que o animal se sinta sentindo, consciência sensível que, anterior a toda razão, dirige a sabedoria dos atos vitais; a segunda faculdade interna é a imaginação, pela qual as sensações exteriores se interiorizam e se gravam; a terceira e de todas a mais importante é a vis aestimativa que dá ao ser vivo a intuição profunda do que lhe é útil ou nocivo; esta ligação direta do ser vivo com o objeto concreto e com a sua natureza, vis aestimativa (de aes + tumo, avaliar, intuir o valor) constitui o nexo do que se pode chamar o senso comum no sentido lato, no que tem de mais íntimo e que é a intuição do sensato e do insensato ou a intuição do valor dos objetos concretos; por isso Santo Tomás define a vis aestimativa como a percepção das intenções insensatas e a memória sensitiva, que é a quarta faculdade interna, como thesaurus intentionum insensatarum; a vis aestimativa no homem, diversamente do que sucede com os animais, se desdobra na vis cogitativa, intuição de grau mais amplo, movida pela inteligência na percepção das intenções insensatas: cogitativa, de co-agitare, por causa da sua fusão, da sua collatio com a inteligência no julgamento do objeto concreto (Santo Tomás, Questiones disputatae De Anima a. 13); a cogitativa não sendo determinada e limitada como a aestimativa, torna possível emitir juízos concretos e seguros sobre os mais variados objetos; a Vis cogitativa é uma collatio da aestimativa com a inteligência, assim como a reminiscentia é uma collatio da inteligência com a memória anteriores a toda razão discursiva, indemonstráveis portanto, assim também o princípio de toda ação deriva de um hábito natural a que os escolásticos e Santo Tomás denominam synderesis (Suma Th., q. 79 a 12). Os princípios da ordem teórica e os da ordem moral ou prática, como evidentes por si mesmos poderiam ser tomados como verdades do senso comum, se o senso comum não fosse aqui tomado mais particularmente como a ligação do homem com o particular, com o concreto. Esta ligação na ordem moral é [136] estabelecida pela consciência, que é o juízo do agir nas cousas particulares em relação com a lei natural objetiva; a consciência, que São Jerônimo identifica com a synderesis, conforme a citação de Santo Tomás e que São Basílio denomina naturale indicatorium, como todo o conjunto das faculdades que ligam o homem à realidade concreta é um kriterion physikon, um critério do conhecimento do bem e do mal, uma intuição que penetra a essência íntima do individual, que a inteligência só conhece abstratamente. Mas a importância dessa intuição que penetra o individual e vive a sua interioridade, intuição que Bergson apresentou como a última novidade da filosofia da sua época, ressalta já clarissimamente da obra de Santo Tomás pela simples observação de que, em primeiro lugar, a inteligência para Santo Tomás não conhece o particular; e em segundo lugar só o particular é real, só o indivíduo é concreto; portanto a verdadeira faculdade conhecedora da realidade é a intuição que conhece o particular. Por outro lado, nenhum conhecimento do geral e do abstrato seria possível sem a inteligência; a autenticidade de um conhecimento intelectual se funda na sua relação com a realidade concreta, através do senso comum no sentido lato ou da consciência na ordem moral.