Se o existencialismo contemporâneo dá como estrutura do existir o estar-jogado-no-mundo, isto significa para o homem atual o ter sido arremessado ao vazio, onde só há para ele, segundo Heidegger, a impossibilidade radical de conhecer o onde e o porque. — No vazio, não pode haver um onde e um para que.
O indivíduo humano está isolado, porque já não há mais o sentido da realidade, desde que as interpretações científicas do mundo destruíram a realidade. A pressão científica do geral e do coletivo aboliu o individual e o particular: anulou a única realidade que outrora existia, desde que o indivíduo não cabe nos quadros da ciência. O indivíduo se sente projetado num vácuo indefinível, onde, no lugar das cousas que tinham outrora o toque da sua vivência, encontra somente uma série irreal de objetos científicos, que não se relacionam com a sua existência. A crise espiritual de que nasceu o existencialismo pode ter sua origem em que, a uniformização, a planificação científica do mundo e a redução da realidade a fórmulas algébricas, fizeram desaparecer o sentimento do tempo vivido e a intimidade do lugar habitado; não há mais tempos, nem lugares que se relacionem com a nossa vida. Se o tempo que a ciência nos impõe não é o tempo da nossa vida, o tempo original em que se nasce, se vive e se morre, mas o tempo indiferente dos cronômetros, homogêneos e igualitários, já não pode mais haver o tempo da poesia, o tempo da realidade natural. A morte do tempo, que é a morte da história, se encontra expressa em Heidegger, para quem a história é um errar no meio dos entes, com o esquecimento do Ser.
Já não é mais o espaço um todo fechado, embebido da comunhão da nossa vida pessoal; já não traz o cunho de uma cultura, nem o vinco de uma linguagem afeiçoada; morreu o espaço, quadriculado em latitudes e longitudes, sem relação com o espaço antigo. O indivíduo atual, não tendo o seu tempo, nem o seu espaço, já não pode saber o que é, nem onde está, nem se está ou se é alguma cousa. Cercado só de objetos manufaturados, que ele conhece, mas nos quais não se reconhece; perdido num ponto qualquer do horizonte científico, planificado e sem sentido; longe da paisagem familiar e da poesia das cousas vividas; vendo que o que lhe dizem que a realidade é, não é o que ele é; sentindo-se inútil e supérfluo, Sartre o vê sobrando desde toda eternidade. Que é pois o regato da aldeia familiar sobre cujas águas se debruçavam os antigos? É realmente um regato, ou a série fantástica dos objetos da química, da física, da geografia, da hidráulica? — Se desapareceram todos os pontos de referência, há para mim a impossibilidade radical de conhecer o onde e o porque. Sinto-me como arremessado no mundo. E o mundo se tornou o absurdo da experiência sartreana.
Esta situação não pode deixar de ser o resultado do idealismo, da sua degenerescência denominada materialismo e da fabricação da realidade artificial pelas ciências ironicamente chamadas “da natureza”. Rejeitada a experiência irrepetível do indivíduo, construído o universo sintético, subordinado o vital a fórmulas e categorias, a existência não pode em tais circunstâncias apresentar-se senão como absurdo. A existência aparece sempre como indivíduo. O indivíduo, porém, é a negação das categorias coletivas; ele é o que não pode ser captado pelo geral das categorias e das leis científicas; não se enquadra em deduções e induções. A sua existência, portanto, sobra. Sobra a existência do indivíduo no reino do absurdo. E por isso é que Sartre apresenta a personagem da Náusea com esta citação: C’est un garçon sans importance collective; c’est tout juste un individu.
Poder-se-ia supor que a reação do existencial contra o absurdo das abstrações, fosse uma reação contra o que o idealismo, o materialismo, as ciências e as técnicas disseram que o mundo é. Isto porém, não sucede com o existencialismo sartreano. Porque o existente, vendo desabar ante seus olhos todas as categorias e todos os coletivos, nem por isso consegue voltar à intuição da realidade concreta; estende a tudo o absurdo das cousas e de si mesmo. Pois, não sendo ele próprio um homem natural, a natureza lhe parece absurda. Colhe o fruto semeado pelas ciências da natureza, que destruíram a natureza das cousas.
O existencial tinha um sentido no velho realismo greco-medieval, porque o realismo e o sentimento da autenticidade do real coincidiam: o indivíduo via-se então dotado de profundo significado e suas circunstâncias eram igualmente significativas. Porém, se o mundo perdeu o sentido porque se tornou uma projeção da Ideia; ou uma projeção do sujeito isolado; ou uma engrenagem material monstruosa; se as cousas já perderam o selo da sua origem e o valor da sua finalidade, a vida não pode significar cousa alguma. Significado e religião, cultura e religião, realidade e religião são aspectos de uma só e mesma verdade. Morta a religião, a cultura e a realidade, que pode significar o existente? — Tudo é caos amorfo, ausência de sentido, esfera girando estupidamente no espaço. O existencialismo é como o grito de desespero da existência aniquilada. A existência desaparecerá sob o peso da técnica, no paraíso da coletivização. O indivíduo, pois, se desintegra no coletivo; a essa desintegração se chama crise = separação; o estar separado de si e não ter contato com a realidade se chama alienação. O existencialismo de Sartre é essa alienação tomando consciência de si mesma. Ao alienado existencial, tudo lhe parece absurdo, inclusive a natureza real e viva. Pois se a natureza lhe aparece como inserida nas categorias humanas, ele vê perfeitamente que essa natureza não é real. E se a natureza lhe aparece como algo que transborda de todas as categorias, ele vê que é real, mas não lhe vê o sentido.
Kierkegaard, quando fez o inventário do desespero, descobriu a necessidade de procurar uma solução na paz da transparência divina; e não importa sublinhar que o Deus de Kierkegaard era um Deus distante, fruto do mais extremo subjetivismo, isto é, da negação da realidade, da sua transformação em pura representatividade. Kierkegaard estava longe ainda do existencialismo de Sartre, onde domina exatamente o que ele mais odiava, ou seja a alienação de si próprio, a perda do próprio ego, a autodesintegração no coletivo. Sartre representa uma vontade de dissolução; na linguagem de Kierkegaard poderia dizer-se que a personagem da Náusea não quer ser ela própria; quer desfazer-se de si mesma na massa do absurdo universal; é indiferente que se trate da massa cósmica ou da massa humana; o traço deste existencialismo é negar a existência desfazendo-se do próprio ego; e o seu desespero consiste em que não pode eliminar a existência.
O protagonista da Náusea sartreana, é por um lado tout juste un individu, mas por outro sente-se como sendo a própria raiz do castanheiro que o obcessiona. Não é a comunhão com as cousas naturais, como a árvore ou a raiz do castanheiro. Para que haja comunhão do indivíduo com a natureza, é preciso que haja natureza, que a natureza tenha sentido, que o indivíduo não sobre, mas esteja exatamente no seu lugar. A natureza, porém, desapareceu do cenário das ciências, das filosofias e da vida contemporânea. A “natureza” contemporânea não é de modo algum o que foi a Physis para os gregos e a Natura para os medievais; os medievais estavam tão radicados ao vital concreto, que simplesmente estudavam a alma como parte da natureza; viam a natureza das cousas e não as “cousas” da natureza; a natureza das cousas está toda em cada cousa; mas as “cousas” da natureza são como fragmentos abstratos de uma realidade falsa.
Depois do egocentrismo de Descartes, depois do criticismo e das interpretações científicas, a alma e a natureza se tornaram antinomias como o sujeito e o objeto. A psicologia, e a ontologia se destacaram da Filosofia da Natureza e da Metafísica, para indicar esta antinomia. As cousas mesmo, tendo perdido a alma, morreram, como atesta Heidegger em sua conferência sobre a cousa: Heidegger distingue entre cousa e objeto; a cousa é um centro de significações, como a ânfora grega, cujo destino é receber o vinho que a terra oferece aos céus e os mortais aos deuses; mas o objeto, pode-se dizer, é uma entidade científica; é aquilo que a cousa não é; assim o oleiro que fez a ânfora, não fez a anforidade da ânfora; porque a anforidade da ânfora é o oco, onde ela recebe o vinho, e não as suas paredes, feitas pelo oleiro. O oleiro não fez a anforidade da ânfora, porque a ânfora não são as suas paredes externas, mas o seu significado, a sua “cousidade”, que é sinônimo da sua realidade. Mas, então, porque dirá Heidegger que toda a filosofia tradicional não era mais que uma Ordnungsphilosophie, uma filosofia de nomenclaturas, como qualquer filosofia kantiana? Não se vê claramente que a filosofia medieval girava em torno de cousas e não de objetos? Que os objetos assumiram na idade contemporânea um papel que outrora não tinham? Seria exato, como pretende Heidegger, que Platão subverteu a verdade, fazendo-a passar da revelação do ser para a ordenação dos objetos?
A Náusea sartreana não se move entre cousas, mas apenas entre objetos que perderam até mesmo a acepção que a ciência lhes havia dado. Objetos que a ciência havia posto no lugar das cousas, numa certa ordem coletiva; derruída essa ordem artificial, os objetos ficaram como testemunhos da náusea e do absurdo.
A conhecida experiência sartreana do absurdo, por que passou Antoine Roquentin, à sombra do castanheiro, pode ser transcrita e resumida como segue:
A raiz da árvore se perdia na terra; Roquentin não se lembrava já de que era uma raiz; as palavras se haviam desvanecido e com elas o sentido das cousas; destruída a rotulagem tranquilizadora, as raízes negras e nuas davam medo; jamais havia pressentido o que queria dizer existir; dizia como os outros: o mar é verde; aquele ponto branco é uma gaivota; nunca havia percebido que aquilo existia, que a gaivota era uma “gaivota-existente”; a existência comumente se oculta; nunca havia pensado a existência; quando julgava pensá-la, não pensava em nada; só tinha na cabeça a palavra ser; o que pensava eram somente as relações, a pertinência: que o mar pertencia à classe dos objetos verdes, ou que o verde fazia parte das qualidades do mar. Olhando as cousas estava longe de pensar que existiam. Agora a raiz havia perdido sua aparência inofensiva de categoria abstrata; era uma raiz amassada em existência, a pasta mesma das cousas. Ou melhor, a raiz, o jardim, a relva, tudo se havia desvanecido. A diversidade das cousas, sua individualidade, não era mais que aparência, verniz; pois esse verniz se fundiu deixando somente massas monstruosas e moles, em desordem — nuas e obscenas. Quando se existe é inevitável existir até essa obscenidade. Há outros mundos, em que o círculo, as árias musicais guardam linhas puras e rígidas; mas a existência é uma submissão, um fléchissement. Era um montão de existências constrangidas, incômodas umas às outras. Nada do que existia tinha a menor razão de estar ali. Cada existente, confuso, vagamente inquieto, se sentia sobrando com relação aos outros. Tudo sobrava, castanheiro, plátanos e cada cousa fugia às relações em que pretendia encerrá-la, isolava-se, transbordava. Para retardar o desabamento do mundo humano, obstinava-se a manter medidas, quantidades, direções, mas sentia o arbitrário dessas relações. Tudo sobrava. E Roquentin sobrava também; tinha medo de passar da compreensão ao sentimento da sua própria superfluidade. Sobrava.
”Je rêvais vaguement de me supprimer, pour anéantir au moins une de ces existences superflues. Mais ma mort même eût été de trop. De trop, mon cadavre, mon sang sur ces cailloux, entre ces plantes, au fond de ce jardin souriant. Et la chair rongé eût été de trop dans la terre qui l’eût reçue et mes os, enfin, nettoyés, écorcés, propres et nets comme des dents, eussent encore été de trop: j’étais de trop pour l’éternité”.
Absurda era aquela raiz, tudo era absurdo; a existência é superfluidade, absurdo e náusea. Um círculo não é absurdo, mas um círculo não existe. No entanto, aquela raiz existia na medida em que não podia explicá-la. Era inútil dizer: é uma raiz; isso não dava mais resultado; o existente não se explica; o mundo das explicações e razões não é o da existência; e é inútil passar da função de raiz, de bomba aspiratória, a isso, a essa pele dura e compacta, calosa e obstinada. A função não explicava nada: podia permitir compreender, em conjunto, o que era uma raiz; mas nunca esta raiz. Essa raiz se escondia a toda explicação. Cada uma de suas qualidades lhe fugia um pouco, tornava-se quase uma cousa; cada qual sobrava na raiz e a raiz toda parecia negar-se, perdendo-se em estranho excesso. Quis discortiçá-la um pouco para brincar com o absurdo do mundo. Mas a casca continuou negra; sentiu esvaziar-se a palavra; a cor, como o círculo, não existe. Seria negra, ou quase negra? Logo cessou de se interrogar porque percebeu que entrava na zona do conhecimento; as qualidades da raiz fugiam-lhe por entre os dedos; a vista é uma invenção abstrata, simplificada, uma ideia humana. Compreendeu então a Náusea que possuía. O essencial é a contingência; a existência não é necessária; existir é estar ali, simplesmente. Tudo é gratuito. Sobra. ”J’étais la racine du marronier; ou plutôt, j’étais tout entier conscience de son existence.” Começou a ramagem a menear ao sopro do vento; queria surpreender a existência ao nascer; mas os movimentos nunca existem de todo; são passagens entre duas existências; e esta ideia de passagem é ainda uma invenção humana; uma ideia demasiado clara. Tudo regorgitava de existências; o arrepio da árvore ao sopro do vento não era uma passagem da potência ao ato; era uma cousa, um arrepio-cousa; o mais imperceptível sobressalto era feito de existência. Tudo é existência. E esses existentes não vinham de parte alguma, nem iam a parte alguma. De repente começam a existir e de repente deixam de existir. E do que desaparece, a existência não guarda memória. Por toda parte existência, existência ao infinito, sobrando sempre e por toda parte. Por que tantas existências se todas se parecem? Por que tantas árvores, todas semelhantes? Tantas existências frustradas e obstinadamente recomeçadas e novamente frustradas? Essa abundância não parecia o efeito da generosidade, ao contrário. Há uns imbecis que vêm falar em vontade de potência e luta pela vida. Nunca viram acaso um animal, nem uma árvore? Essas árvores carunchosas, quereriam torná-las por forças juvenis, ásperas, irrompendo para o céu? Representar essa raiz como garra voraz dilacerando a terra, para lhe arrancar a nutrição?
Não; essas existências são desfalecimentos e fraquezas. Esses troncos não tinham vontade de existir. Esforços inúteis. Tentativas falidas. A existência é um cheio que o homem não pode abandonar. Essa raiz, por exemplo, não tinha razão alguma para estar aí, para existir; mas teria sido impossível que não existisse. Afastando-se do jardim, sorriram-lhe as cousas; mas era impossível compreendê-las.
Esta foi, em síntese, a experiência do castanheiro. Toda a aventura da Náusea é um conjunto de situações excêntricas, que não se sabe se é neurose ou loucura. É o testemunho de uma angústia contagiante; com infinitas variantes essa angústia é característica do homem atual, em cujo espírito assustado e perplexo ruíram os próprios fundamentos da vida. Roquentin está vencido pela própria derrota, imerso na volúpia da autodestruição: para ele a vida é fraqueza e não força. Este homem reconhece que sobra. Ele é um esforço inútil; estende ao mundo inteiro a náusea que sente por si mesmo. Como em Kierkegaard, seu desespero está em não poder morrer. A morte sartreana é um absurdo somado à existência; nous mourouns par dessus le marché. Se lhe fosse possível projetar sua própria morte, a morte não existiria; mas a morte existe e por isso não se pode projetá-la, não se pode morrer a própria morte. Sobraria o cadáver; sobraria o sangue; sobraria a morte. A morte é um absurdo de que ninguém se deve ocupar; onde estamos a morte não está; onde a morte está nós não estamos.
Roquentin gostaria de não ser ele mesmo; gostaria de ser a raiz do castanheiro; mas está marcado pelo absurdo de ter uma consciência; não pode ser simplesmente uma raiz de castanheiro, pelo fato de ser a consciência da existência dessa raiz. Lutou para sentir-se instalado no mundo como qualquer burguês; porém sua insegurança o devora; certifica-se com tranquilidade de que está mesmo no seu quarto, orientado para o nordeste. Faz o possível para inserir-se na ordem sedativa e metódica da vida alheia, nas categorias filosóficas e científicas. Daria tudo para poder estar orgulhoso, como os outros, da sua razão de ser. Como gostaria de poder andar, todo endomingado, certo de si, pelas ruas de Bouville! E poder ler, como qualquer leitor obtuso, um romance qualquer, achando certa graça até na Eugénie Grandet de Balzac! Mas a Roquentin aconteceram certas cousas que lhe tiraram o sossego; já não é o mesmo; descobriu que nunca foi o mesmo; descobriu que não há essa mesmidade, que não passa de uma etiqueta. De fato, segundo Heidegger, a existência não tem sua fundamentação em si mesma; seu constitutivo ontológico é a preocupação. E Roquentin não sabe, como Heidegger, refugiar-se no reino poético de Hölderlin. Tudo se lhe torna estranho; sua própria mão, o trinco da porta. Sua desgraça é que nada pode impedi-lo de existir, nem de sentir que existe.
Jean-Paul Sartre foi, na sua primeira fase, a fase da Náusea, o intérprete de um drama de que o homem atual é o protagonista. Mas ele personifica, além disso, a esqualidez de todos os vencidos; é corrosivo e dissolvente, obsceno e aniquilante. Seu exclusivo valor está no testemunho que dá de uma experiência profunda e própria. Sua obra capital é por isso La Nausee, a única que o tempo preservará. Sartre não tem valor como filósofo, se por esta palavra se entende o intérprete do Ser. O conteúdo filosófico de seu livro L’Etre et le Néant é uma suma de contradições; sua ontologia transuda influências antagônicas não assimiladas, nem sintetizadas. Sartre, como filósofo, é um daqueles homens dos quais Nietzsche dizia que são como vasos pintados: mascarados com os sinais do passado, cobertos a seu turno com outros sinais; ocultam-se a todos os intérpretes. Sois estéreis, por isso vos falta a fé, dizia Nietzsche. Sartre, certamente, passou pela angústia existencial; percebeu que essa angústia não é uma categoria psicológica, mas algo ôntico. Depois, porém, quando quis dar uma justificação filosófica da experiência existencial, recorreu a todos os filósofos, desde Parmênides até Heidegger; costurou assim sua colcha de retalhos antes mesmo que Heidegger tivesse acabado de meditar os temas que lhe forneceu.
As grandes filosofias têm um conteúdo intemporal, que decorre da intuição da essência da realidade; e um conteúdo temporal que decorre das circunstâncias de uma época. Em Sartre não há senão esse conteúdo temporal, aplicável a certo tipo de seres e a certo momento. É como um reflexo, o espelho da contradição. Nega a vontade de potência e a luta pela vida; mas luta ele próprio para viver e afirma a vontade de poder, escrevendo com fins de proselismo. Todavia, tem a coragem que os outros materialistas não tiveram: a de tirar do materialismo a conclusão necessária de que o mundo é então absurdo. E só por isso, o materialismo de Sartre é o próprio fim do materialismo. O materialismo tem nas premissas uma conclusão que se tornou manifesta com Sartre.
Sartre, em sua fase mais recente, parece ter perdido a capacidade de exprimir a perplexidade da existência em face de si mesma. Não é mais o autor autêntico da Náusea. L’Existencialisme est-il un humanisme parece um ensaio ginasiano, onde realmente Sartre sobra. Tentativa frustrada e malograda de conciliar a náusea com o compromisso. Effort inutile.
Enquanto Sartre manipulou os temas heideggerianos em plano puramente humano, Heidegger, depois do Sein und Zeit se desenvolveu a si mesmo numa linha cósmica e poética. Nem por isso Heidegger deixa de ser o filósofo da angústia existencial, de que Sartre foi como que a expressão literária. A grande agonia de Heidegger consiste em procurar uma abertura para o Ser, uma solução do não sentido da existência no sentido do Ser. Por outros termos, não devemos confundir o Ser com os entes; não devemos confundir a estrutura da existencialidade com o Ser mesmo. A existencialidade, tema do Sein und Zeit, tem como “essência” a preocupação, Sorge. É a preocupação com o “estar arremessado no mundo”; o fundamento efetivo do que somos, nós, existentes, é, segundo Heidegger, um não-fundamento, uma nulidade radical, atravessada por um não absoluto. Somos finitude, nulidade e não-fundamento: estamos no Tempo, cujo sentido ontológico é a preocupação. Sair desse plano significa abrir um caminho para o Ser, superando a metafísica. Heidegger trata de demonstrar que, desde Anaximandro até Nietzsche, a metafísica se limitou ao problema do ser dos entes e obliterou o mistério do Ser enquanto tal: a metafísica aparece aqui como o processo do esquecimento do Ser; e comentando Hölderlin, diz Heidegger que o tempo da miséria extrema é a meia-noite do esquecimento, quando o homem, tendo esquecido o Ser, esquece o esquecimento. A metafísica, esquecendo o Ser enquanto tal e errando no meio dos entes, não passa de humanismo e antropologismo. As filosofias do passado, desde Anaximandro, não teriam sido mais que filosofias da ordem (Ordnungsphilosophie) destinadas, por assim dizer, a pôr em cada realidade um rótulo, uma denominação, com o fim de tranquilizar o homem, afastando-o do terror de estar projetado no mundo.
Estar no mundo não é apenas estar na terra ou no universo cósmico. O mundo c um conjunto de significados, um processo; e nós, propriamente, não estamos no mundo; este In-der-Welt-sein melhor se exprime pelo ser-no-mundo. Não estamos no mundo como um indivíduo está num lugar do qual se distingue; somos no mundo; os pontos de referência, o onde, o para que fazem parte do processo do mundo. Não têm sentido senão para nós; constituem um onde e um para que imanentes à própria existência, não têm transcendência. A transcendência, ao contrário, faz parte do ser-no-mundo; quando o existente se interroga a si mesmo, ele se supera e se transcende; por outros termos, somos Da-sein, que, quando se interroga, se funda a si mesmo transcendendo-se como existência no mundo. Mas esta existência no mundo é um estado angustioso a que tentamos fugir caindo na existência banal, no anonimato; então nos inserimos no mundo, visto como conjunto de interesses utilitários ou econômicos, como algo manejável, transformável, fabricável. E é porque o mundo nos ameaça que nos preocupamos com ele, isto é, conosco mesmos; estamos inquietos e pre-ocupados porque estamos no tempo; essa pre-ocupação não pode vir senão de que o tempo é principalmente futuro, Zukunft e não presente. Na preocupação banal, quando o mundo nos parece um conjunto de objetos utilitários ou econômicos, tememos pela nossa segurança. A Sorge propriamente dita, a verdadeira preocupação aparece quando percebemos que também estamos inquietos em face de nós mesmos. Na existência banal nos submergimos em generalidades e categorias e nos perdemos a nós mesmos. A existência banal é em suma o que Kierkegaard denomina: o não-querer-ser-si mesmo; o desespero inconsciente; o desespero da finitude; o desespero da necessidade. Porém, diz Heidegger, se não traímos a nossa finitude, se aceitamos os nossos limites e olhamos de frente para a morte, então pode revelar-se em nós o transe da angústia. A angústia não é o paroxismo da inquietação; pode ao contrário ser compreendida como o seu oposto: pela angústia superamos a finitude e realizamos a experiência suprema do Nada. A experiência do Nada nos torna livres, pois a nossa finitude era uma barreira que proibia a nossa liberdade (Was ist Metaphysik).
Angústia não é medo. Medo é o sentimento que temos diante de certa realidade determinada; é medo de alguma cousa determinada. A angústia se dá em face da experiência do Nada, da fundamental impossibilidade de qualquer determinação. Na angústia nós nos abismamos com a totalidade do essente. Abismamo-nos com a totalidade do que é; o nada mesmo nos anula: e com isto a angústia é uma profunda paz, uma serenidade heroica.
Esse Nada heideggeriano, por certo constitui a negação do princípio de contradição, porque o Nada não pode ser pensado, o Nada não é. Mas Heidegger procura, em seu ensaio Was ist Metaphysik eliminar a primazia da lógica; o Nada não aparece ali como algo simplesmente pensado, porque tal seria absurdo; segundo Heidegger, o Nada apenas se insinua no pensamento pela negação; mas o Nada não nasce da negação; ao contrário, a negação só é possível porque nasce do Nada. O Nada não é uma categoria lógica, mas uma experiência que todos nós temos, que muitos reprimem e que em alguns se manifesta. É a experiência do sentimento do Nada. Mais fortemente do que na simples negação lógica, o Nada se apresenta na dureza de uma rebelião, na aspereza da execração; a dor da recusa, a inexorabilidade da proibição, a amargura da renúncia são mais do que negações, são como atos do Nada. Essa experiência do Nada, que nos põe de repente na voragem dos abismos, como um abismar-se de tudo conosco, essa é a experiência da angústia. A angústia do Nada se exprime na audácia, que é um prodigalizar-se para salvar a grandeza final do existir humano. A audácia está além de todas as contraposições e como em secreta relação com a serenidade e a virginal vontade de criar e agir.
Muitas críticas podem ser dirigidas a Heidegger. O existencialismo de Heidegger significa primeiramente o esquecimento do esquecimento de que a metafísica tradicional não era o esquecimento do Ser. Esquecimento do Ser não foi a metafísica tradicional, a menos que ela fosse considerada tal como é representada pelo espírito moderno. Se a metafísica tradicional pôde parecer o esquecimento do Ser é porque o homem atual é incapaz de compreender a radicação do indivíduo antigo à realidade viva e a sua abertura para a revelação do Ser. O que Heidegger pede, que estejamos patentes à revelação do Ser, talvez não se tenha realizado só com os pré-socráticos, mas também com o espírito medieval. É o que hoje não podemos compreender porque, depois de desfigurada a metafísica pelas ciências, não mais se pôde penetrar o significado da essência da realidade, onde a tradição fundava o princípio da existência; as essências parecem, ao existencialismo contemporâneo, uma rotulagem como as definições das ciências, com sua finalidade puramente técnica.
Mas, tanto é verdade que as essências metafísicas tradicionais não são uma rotulagem, que, tendo-as abolido, onde foi que o existencialismo fundou as existências? — No absurdo (Sartre); no não-fundamento (Heidegger).
A metafísica tradicional também não pode ser considerada humanismo e antropologismo; a colocação dessa perspectiva parece falsa e consiste em estender à metafísica tradicional a visão humanística e antropológica, que só se tornou manifesta com a Renascença. A Renascença, pelo seu humanismo, pelo seu antropocentrismo se opõe ao teocentrismo antigo e medieval. Se na Idade Média podem ser encontrados os germens do humanismo e do antropologismo, que só depois se desenvolveram, isto se dá justamente porque a Renascença explicitou o que a Idade Média não tinha de medieval. Humanismo e antropologismo são frutos da subjetividade e não do realismo tradicional. E não há uma contradição em Heidegger, que afinal é realista, em considerar a passagem do realismo medieval para a representatividade subjetiva moderna, como uma espécie de passo para a frente? — Heidegger, enquanto realista, é filósofo tradicional; como os antigos ele está livre para a revelação do Ser; o fenômeno se lhe apresenta, não como dado inerte, nem como projeção kantiana, mas como revelador do Ser, como a-letheia.
A-letheia, desocultamento: A abolição dos esquemas científicos, que pretendiam interpretar o mundo, fez com que voltasse, ao espírito de Heidegger, a perplexidade diante do real que se desoculta, a a-letheia; mas esta revelação vem envolvida no terror da ausência de sentido das cousas e por isso da ausência do Ser. Essa ausência se manifesta na teoria do não-fundamento da existência, enquanto o seu absurdo se manifesta nas aventuras literárias de Sartre.
Contudo, há entre Sartre e Heidegger, uma total diversidade. Sartre traduz a derrota, a falência, a fraqueza. Heidegger, porém, exprime a vitalidade do herói, tendido para o futuro, sereno diante da morte e disposto a salvar a grandeza final do existir humano.
Já observou um estudioso do existencialismo (Enzo Paci) que, na audácia heroica, de que fala Heidegger, facilmente se adivinha a exaltação do agir e a reminiscência de Siegfried.
Não é pois o existencialismo de Heidegger uma lamentação sob os muros da ruína. Acima de todas as suas contradições, Heidegger é o filósofo da Poesia. Ele ressuscita o mito wagneriano; desenha o perfil do Herói, tenso na direção do futuro, atravessando o Nada, como Siegfried atravessou o fogo mágico. E sua lição é esta. Não é na vida banal, mas na audácia angustiosa do Herói que repousa a grandeza final do existir humano.