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Barbaras (2016) – afeto em Heidegger

segunda-feira 7 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

[…] É indiscutível que Heidegger reserva um lugar importante para a dimensão afetiva da existência, pois, como sabemos, a análise do ser-em tal começa com a descoberta desses dois existenciais fundamentais originalmente articulados, a saber, afeto (Befindlichkeit, disposição) e compreensão (Verstehen), que correspondem à versão heideggeriana   da distinção entre matéria e forma, entre sensível e sentido. A ideia aqui é, obviamente, que a sensibilidade no sentido de sentir, ou seja, de se permitir ser abordado pelo ente, pressupõe uma disposição fundamental por meio da qual sou primeiramente jogado no mundo. Qual é essa disposição? O afeto, que assume a forma de Stimmung, ou seja, uma certa tonalidade afetiva, é o que abre o Dasein para o seu Aí, o Aí que, por assim dizer, o precede, que é um já-aí; o abre para o seu ser-jogado (Geworfenheit). Por outro lado, essa abertura também é a do mundo no qual o Dasein se encontra, na medida em que o já-aí do Dasein co-implica o já-aí do mundo: a abertura do mundo é co-constituída pelo afeto. Segue-se que o afeto é a própria condição da efetividade do em do ser-em, ou seja, indistintamente, do movimento pelo qual o Dasein se volta ao mundo e da possibilidade de se permitir ser abordado pelo ente. Em suma, como Heidegger escreve em Was ist Metaphysik? [GA9  :QQMeta  ] afeto significa “sentir-se no meio do existir como um todo”. Em outras palavras, o afeto proporciona uma tonalidade que não é uma propriedade de um ente, mas do próprio mundo, que o colore como um todo, entendendo-se que estamos falando aqui do mundo no qual o Dasein existe, povoado por entes ao alcance da mão (Zuhandenes) articulados por um sistema de referentes, e não do mundo como o definimos. Dizer que estou triste é estritamente dizer que me encontro no meio de um mundo triste, e a expressão (“eu me encontro”) deve ser entendida em ambos os sentidos, que também são encontrados em alemão. Estou situado no meio desse mundo e descubro ou encontro a mim mesmo, ou seja, experimento a mim mesmo nesse ser situado. Em outras palavras, o experienciar de aí (no meio do mundo) e o experienciar de si (me descubro) são inseparáveis. Descubro-me apenas como situado, o experienciar de si é o experienciar de uma situação, de um ser situado, e não há acesso à situação, ou seja, ao mundo, exceto no experienciar de si e por meio deste. Isso significa que a tristeza não é primordialmente uma tonalidade do mundo que me invade ou, ao contrário, um estado íntimo que projeto no mundo: é indistintamente minha própria tristeza e a tristeza do mundo, pois é a maneira pela qual me encontro no mundo. Em suma, o afeto designa a indistinção entre um ser situado, implicando uma relação com a totalidade do mundo circundante, e um ser experienciado, envolvendo algo como uma autodescoberta, e é por isso que a tristeza é neutra com relação ao compartilhamento do Dasein e do mundo.

Antes de mais nada, precisamos enfatizar o escopo de tal teoria da afetividade. A afetividade é existencial, ou seja, uma determinação fundamental de nossa existência e, consequentemente, de nosso ser-no-mundo. Nesse sentido, escapa, antes de mais nada, à psicologia e, a fortiori, à fisiologia. Os afetos, que Heidegger às vezes também chama de sentimentos, não são conteúdos imanentes ou estados experimentados em passividade, mas dimensões da existência e, da mesma forma, colorações do mundo. Como Heidegger escreve:

O que chamamos de “sentimento” não é nem um epifenômeno fugaz do comportamento do nosso pensamento e da nossa vontade, nem um simples impulso que o provocaria, nem um estado subsistente como uma coisa, com o qual faríamos este ou aquele arranjo [GA9  :QQMeta  ].

Isso não significa que os afetos não impliquem uma relação com o si, pois, ao contrário, é isso que os define, mas é preciso entender que essa relação com o si é de uma ordem completamente diferente daquela da descoberta de um conteúdo ou estado imanente, completamente diferente de um tipo de conhecimento, uma intuição interior. Como Heidegger escreve, a tonalidade é “o modo original de ser do Dasein, onde o Dasein está aberto a si mesmo antes de todo saber e todo querer, e além do escopo de sua abertura” [ETEM  :114]. Mas também decorre disso — e isso é obviamente o que justifica o confronto com Heidegger — que os sentimentos têm, para usar os termos de Dufrenne, um escopo noético, não no sentido de que eles estão sob o título de conhecimento, mas na medida em que se abrem para o mundo, implicam um afastamento de si mesmo, revelam algo além do próprio Dasein. Aqui, novamente, Heidegger é perfeitamente explícito:

O afeto inclui existencialmente uma designação de abertura para o mundo a partir da qual o ente que se aproxima pode se contrapor. De fato, de um ponto de vista ontológico, devemos fundamentalmente confiar a descoberta primária do mundo à simples tonalidade [ETEM  :115].


Ver online : Renaud Barbaras


BARBARAS, Renaud. Métaphysique du sentiment. Paris: Editions du Cerf, 2016