(…) Visto que a grande novidade do pensamento de Heidegger (que em Davos não escapou aos observadores mais atentos, como Rosenzweig e Lévinas) era criar resolutamente raízes na facticidade. Como a publicação dos cursos dos primeiros anos vinte já mostrou, a ontologia apresenta-se desde o início em Heidegger como uma hermenêutica da vida fáctica (faktisches Leben). A estrutura circular do Dasein, elo qual compromete-se, nos seus modos de ser, o seu próprio ser, não é mais que uma formalização da experiência essencial da vida fáctica, na qual é impossível distinguir entre a vida e a sua situação efetiva, entre o ser e os seus modos de ser, e na qual todas as distinções da antropologia tradicional (como aquelas entre espírito e corpo, sensação e consciência, eu e mundo, sujeito e propriedade) desaparecem. A categoria central da facticidade não é, na verdade, para Heidegger (como ainda era, ao contrário, para Husserl) a Zufälligkeit, a contingência, pela qual alguma coisa é de um certo modo e em um certo lugar, mas poderia ser alhures ou de outro modo, mas a Verfallenheit, a dejeção, que caracteriza um ser que é e tem por ser os seus próprios modos de ser. A facticidade não é simplesmente o ser contingentemente de um certo modo e em uma certa situação, mas o assumir decidido deste modo e desta situação, no qual o que era doação (Hingabe) deve ser transformado em missão (Aufgabe). O Dasein, o ser-aí que é o seu aí, vem assim a colocar-se em uma zona de indiscernibilidade com relação a todas as determinações tradicionais do homem, das quais assinala a definitiva queda. (…)
(AGAMBEN, G. Estado de exceção: homo sacer, II, I. Iraci D. Poleti. 2. ed ed. São Paulo: Boitempo, 2011)