A crítica bíblica de Spinoza é um bom exemplo disso (e ao mesmo tempo um dos primeiros documentos). No capítulo 7 do Tractatus theologico-politicus Spinoza desenvolve seu método interpretativo da Escritura Sagrada, apoiando-se na interpretação da natureza: partindo dos dados históricos tem-se de inferir o sentido (mens) dos autores — enquanto que nesses livros são narradas coisas (histórias de milagres e revelações) que não são deriváveis dos princípios conhecidos da razão natural. Também nessas coisas, que em si mesmas são incompreensíveis (imperceptibiles), sem prejuízo para o fato de que, em seu conjunto, a Escritura possui indiscutivelmente um sentido moral, pode-se compreender tudo sobre o que se tem interesse, somente se reconhecermos “historicamente” o espírito do autor, isto é, superando nossos preconceitos, não pensamos noutras coisas do que nas que o autor pôde ter em mente.
A necessidade da interpretação histórica “no espírito do autor” é, nesse caso, consequência do caráter hieroglífico e (185) incompreensível do conteúdo. Ninguém iria interpretar Euclides observando a vida, o estudo e os costumes (vita, studium et mores) do autor, e isso valeria também para o espírito da Bíblia nas coisas morais (circa documenta moralia). Só porque nas narrações da Bíblia aparecem coisas incompreensíveis (res imperceptibiles), sua compreensão depende de conseguirmos elucidar o sentido do autor a partir do conjunto de sua obra (ut mentem auctoris percipiamus). E é aqui que é realmente indiferente se o intencionado corresponde à nossa perspectiva; pois nós queremos conhecer unicamente o sentido das frases (o sensus orationum), não a sua verdade (veritas). Para isso tem-se de desconectar qualquer classe de pressuposição, inclusive da nossa razão (e, sem dúvida, tanto mais ainda a de nossos preconceitos) (parágrafo 17).
A “naturalidade” da compreensão da Bíblia repousa, portanto, sobre o fato de que o que é evidente será visto e o não evidente tornar-se-á compreensível “historicamente”. A destruição da compreensão imediata das coisas na sua verdade é o que motiva o rodeio pelo histórico. Uma outra questão é saber o que significa o princípio interpretativo, formulado com isso, para o comportamento próprio de Spinoza com respeito à tradição bíblica. Em qualquer caso, aos olhos de Spinoza, a amplitude do que na Bíblia somente se pode compreender dessa maneira histórica é muito grande, embora o espírito do conjunto (quod ipsa veram virtutem doceat) seja evidente, e mesmo que o evidente possua um significado predominante.
Assim, se retrocedermos à pré-história da hermenêutica histórica, teremos de destacar, em primeiro lugar, que entre a filologia e a ciência da natureza, em sua primeira autoreflexão, se estabelece uma correlação muito estreita, que se reveste de um duplo sentido. Em primeiro lugar, a “naturalidade” do procedimento científico-natural deve valer também para o posicionamento frente à tradição bíblica — e para isso serve o método histórico. Mas, ao inverso, também a naturalidade da arte filológica, exercida na exegese bíblica, a arte de compreender pelo texto, coloca ao conhecimento da natureza a tarefa de decifrar o “livro da natureza”. Nessa medida o modelo da filologia pode orientar o método da ciência da natureza.
Nisso se reflete o fato de que o saber instituído pela (186) Escritura Sagrada e pelas autoridades é o inimigo contra o qual tem de se impor a nova ciência da natureza. Esta tem a sua verdadeira essência, diferentemente daquela, em sua metodologia própria, que a conduz através da matemática e da razão à evidência do que é compreensível em si mesmo.
A crítica da Bíblia, que conseguiu se impor amplamente no século XVIII, como mostra essa indicação a Spinoza, possui, em caráter absoluto, um fundamento dogmático na fé na razão do Aufklärung, e, de um modo semelhante, existe toda uma outra série de precursores que preparam o pensamento histórico, entre os quais há, no século XVIII, nomes esquecidos há muito tempo, que procuram oferecer diretivas para a compreensão e interpretação de livros históricos. (Gadamer Verdade e Método I)