Gadamer (VM): condicionamento hermenêutico

Com efeito, devemos perguntar como legitimar o condicionamento hermenêutico de nosso ser frente à existência da ciência moderna, uma vez que esta se baseia totalmente no princípio da imparcialidade e na ausência de preconceitos. Não se trata de dar normas à ciência e recomendar-lhe moderação — isso, sem mencionar que esse tipo de sermão sempre contém algo de cômico. A ciência não fará nossa vontade. Seguirá seu caminho movida por uma necessidade interna, que não depende de seu arbítrio, gerando sempre novos conhecimentos e produções que nos assombram. Não existe outra opção. É absurdo implorar a um pesquisador da área de genética, alertando-o dos perigos da criação de um super-homem. Também não se pode encarar o problema como se nossa consciência humana se opusesse ao curso científico das coisas, pretendendo construir assim uma espécie de contraciência. Mesmo assim não podemos deixar de perguntar se esses objetos aparentemente tão inofensivos, como a consciência estética e a consciência histórica, não apresentam uma problemática própria que afeta primeiramente nossa moderna ciência da natureza e nosso comportamento técnico frente ao mundo. Mesmo que, baseados na ciência moderna, erigíssemos um mundo técnico novo capaz de modificar tudo ao nosso redor, isso ainda não prova que o pesquisador, munido dos conhecimentos decisivos para isso, tenha se dado conta, nem um pouco, dessas desvalorizações técnicas. O que move o verdadeiro pesquisador é a pura vontade de conhecer e nada mais. Apesar disso, devemos nos perguntar se também frente ao conjunto de nossa civilização moderna, baseada na ciência, não acabamos (226) negligenciando alguma coisa. E se não se esclarecerem as pressuposições sob as quais se encontram essas possibilidades de conhecimento e de produção, isso não acarretará que a mão que emprega esses conhecimentos acabará se tornando destrutiva? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Mas o que faz a reflexão hermenêutica quando é efetiva? Qual a relação da reflexão histórico-efeitual com a tradição da qual ela se torna consciente? Minha tese é de que — e penso que ela seja a consequência necessária do reconhecimento de nosso condicionamento histórico-efeitual e de nossa finitude — a hermenêutica nos ensina a perceber o dogmatismo presente na contradição entre a tradição viva e “natural” e a apropriação reflexiva da mesma. Ai esconde-se um objetivismo dogmático que deforma também o conceito de reflexão. O sujeito que reflete, mesmo nas ciências da compreensão, não consegue evadir-se do contexto histórico-efeitual de sua situação hermenêutica, visto que sua compreensão sempre está implicada nesse acontecer. O historiador, mesmo aquele da chamada ciência crítica, está tão longe de desfazer-se das tradições vivas, por exemplo das tradições nacionais, que, enquanto historiador nacional, acaba ao contrário formando-as e conformando-as pela sua atuação. E o mais importante: quanto mais conscientemente reflete sobre seu condicionamento hermenêutico tanto mais atua. Droysen, que desmascarou a “objetividade eunuca” dos historiadores em sua ingenuidade hermenêutica, atuou decisivamente em favor de uma consciência nacional da cultura burguesa do século XIX — em todo caso, teve muito mais influência do que a consciência épica de Ranke, que buscava educar para uma apoliteia estatal. A compreensão é, ela mesma, um acontecimento. Só um historicismo ingênuo e irrefletido poderia considerar as ciências histórico-hermenêuticas como algo absolutamente novo, (241) capaz de eliminar o poder da tradição. Através do aspecto da estruturação da linguagem, como um fenômeno capaz de sustentar toda compreensão, procurei demonstrar inequivocamente a mediação constante pela qual sobrevive a tradição social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

A reflexão hermenêutica teve que elaborar assim uma teoria dos preconceitos que, sem menosprezar o sentido de crítica de todos os preconceitos que ameaçam o conhecimento, faz justiça ao sentido produtivo da compreensão prévia, que é premissa de toda compreensão. O condicionamento hermenêutico do compreender, tal como vem formulado na teoria da interpretação e sobretudo na doutrina do círculo hermenêutico, não se limita às ciências históricas, nas quais a situação do investigador forma parte das condições práticas do conhecimento. A hermenêutica encontra aqui seu caso exemplar, na medida em que na estrutura circular da compreensão se retrata também a mediação entre a história e o presente. Essa mediação precede todo distanciamento e estranhamento históricos. A pertença do intérprete a seu “texto”, como a pertença do destino humano a sua história, é evidentemente uma relação hermenêutica fundamental que não se pode eliminar, com belas sentenças, como acientífica. Deve-se assumi-la conscientemente como a única atitude adequada à cientificidade do conhecimento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.