Gadamer (VM): fenômeno hermenêutico

As pesquisas que virão a seguir têm a ver com o problema da hermenêutica. O fenômeno da compreensão e da maneira correta de se interpretar o que se entendeu não é apenas, e em especial, um problema da doutrina dos métodos aplicados nas ciências do espírito. Sempre houve também, desde os tempos mais antigos, uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não era tão acentuadamente científico e teórico, mas, muito mais, assinalado pelo comportamento prático correspondente e a serviço do juiz ou do clérigo instruído. Por isso, desde sua origem histórica, o problema da hermenêutica sempre esteve forçando os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da moderna ciência. Entender e interpretar os textos não é somente um empenho da ciência, já que pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo. Na sua origem, o fenômeno hermenêutico não é, de forma alguma, um problema de método. O que importa a ele, em primeiro lugar, não é estruturação de um conhecimento seguro, que satisfaça aos ideais metodológicos da ciência — embora, sem dúvida, se trate também aqui do conhecimento e da verdade. Ao se compreender a tradição não se compreende apenas textos, mas também se adquirem juízos e se reconhecem verdades. Mas que conhecimento é esse? Que verdade é essa? VERDADE E MÉTODO Introdução

Daí procede a muito marcante consciência que possui a filosofia dos nossos dias. Mas há uma outra pergunta, bem diferente: até que ponto a reivindicação da verdade de tais formas de conhecimento, situadas fora do âmbito da ciência, podem ser filosoficamente legitimadas? A atualidade do fenômeno hermenêutico repousa, ao meu ver, no fato de que apenas um aprofundamento no fenômeno da compreensão pode trazer uma tal legitimação. Não foi apenas em última instância que essa convicção veio a se fortalecer em mim, devido à importância que a história da filosofia possui no trabalho filosófico da atualidade. Diante da tradição histórica da filosofia, a compreensão se nos depara como uma experiência meditada, que nos deixa distinguir facilmente o que há de aparente no método histórico que paira sobre a pesquisa filosófica e a histórica. Faz parte da elementar experiência do filosofar, que os clássicos do pensamento filosófico, sempre que procuramos entendê-los, façam valer, de si mesmos, uma reivindicação de verdade que não pode ser rejeitada nem sobrepujada pela consciência contemporânea. A ingênua consciência da dignidade própria da atualidade até pode se rebelar contra o fato de que a consciência filosófica admite que seu próprio ponto de vista filosófico seja o de um Platão ou Aristóteles, de um Leibniz, Kant ou Hegel, em contraposição a de outros de menor categoria. Pode-se considerar uma fraqueza do filosofar atual, que se dedique à interpretação e à compilação de sua tradição clássica, confessando sua própria fraqueza. No entanto, há uma fraqueza bem maior do pensamento filosófico, quando alguém não se submete a uma tal prova e prefere fazer o papel de tolo por conta própria. E preciso que a gente admita que na compreensão dos textos desses grandes pensadores se reconhece a verdade, que não seria acessível por outros meios, ainda que isso contradiga o padrão de pesquisa e de progresso com que a ciência mensura a si própria. VERDADE E MÉTODO Introdução

Se quisermos saber o que é a verdade nas ciências do espírito, teremos então de dirigir a questão da filosofia ao conjunto dos procedimentos das ciências do espírito, da mesma forma que Heidegger a dirigiu à metafísica e tal qual nós a dirigimos à consciência estética. Não iremos ter de aceitar a resposta da auto-evidência das ciências do espírito, mas teremos de indagar o que é, na verdade, a sua compreensão. Na preparação dessa pergunta de longo alcance o que poderá servir, em especial, será a indagação sobre a verdade da arte, justamente porque inclui a compreensão da experiência da obra de arte, ou seja, representa até mesmo um fenômeno hermenêutico, e não, certamente, no sentido de um método científico. A compreensão pertence, antes, ao próprio encontro com a obra de arte, de maneira que apenas do ponto de vista do modo de ser da obra de arte é que se pode aclarar essa pertença. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Surge então a indagação de se saber se esta descrição alcança realmente o fenômeno hermenêutico. Existem realmente, aqui, dois horizontes diferentes, aquele no qual vive o que compreende e o horizonte histórico a que este pretende se deslocar? Trata-se de uma descrição correta e suficiente da arte da compreensão histórica, a de que é necessário aprender a deslocar-se a horizontes alheios? Pode-se dizer, nesse sentido, que existem horizontes fechados? Convém lembrar a objeção que Nietzsche fez ao historicismo, de romper o horizonte circunscrito pelo mito, único lugar onde uma cultura pode viver. Pode-se dizer que o horizonte do próprio presente é algo tão fechado? É sequer pensável uma situação histórica limitada por um tal horizonte fechado? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Assim, podemos apelar a Platão, quando colocamos em primeiro plano a referência à pergunta também para o fenômeno hermenêutico. Podemos fazê-lo tanto mais, pelo fato de que no próprio Platão já se mostra o fenômeno hermenêutico de uma certa forma. Sua crítica à escrita deveria ser analisada, uma vez, também sob o ponto de vista de que nela aparece uma conversão da tradição poética e filosófica de Atenas em literatura. Nos diálogos de Platão vemos como a “interpretação” de textos, cultivada nos discursos sofísticos, especialmente a interpretação da poesia para fins didáticos, atrai sobre si a repulsa platônica. Vemos também como Platão tenta superar a debilidade dos logoi, e sobretudo a dos escritos, através de sua própria poesia dialogada. A forma literária do diálogo devolve linguagem e conceito ao movimento originário da conversação. Com isso a palavra se protege de qualquer abuso dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Voltemos, pois, à comprovação de que também o fenômeno hermenêutico encerra em si o caráter original da conversação e da estrutura da pergunta e da resposta. O fato de que um texto transmitido se converta em objeto da interpretação quer dizer, para começar, que coloca uma pergunta ao intérprete. A interpretação contém, nesse sentido, sempre uma referência essencial constante à pergunta que foi colocada. Compreender um texto quer dizer compreender essa pergunta. Mas isso ocorre, como já mostramos, quando se ganha o horizonte hermenêutico. Nós reconhecemo-lo agora como o horizonte do perguntar, no qual se determina a orientação de sentido do texto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Se tentamos considerar o fenômeno hermenêutico, segundo o modelo da conversação que tem lugar entre duas pessoas, o caráter de unidade e o de orientação entre essas duas situações aparentemente tão diversas, como são a compreensão de um texto e o chegar a um acordo numa conversação consiste sobretudo no fato de que toda compreensão e todo acordo têm presente alguma coisa que está postada diante de nós. Da mesma forma que nos pomos de acordo com o nosso interlocutor sobre uma coisa, também o intérprete entende a coisa que lhe diz seu texto. Esta compreensão da coisa ocorre necessariamente em forma linguística, mas não no sentido de revestir secundariamente com palavras uma compreensão já feita. Antes, a realização da compreensão, quer se trate de textos ou de interlocutores que nos apresentam o tema, consiste justamente neste vir-à-fala da própria coisa. Rastrearemos, pois, de início, a estrutura da verdadeira conversação, com o fim de dar realce, a partir dela, à peculiaridade daquela outra conversação que é o compreender textos. Assim como antes havíamos destacado o significado constitutivo da pergunta para o fenômeno hermenêutico, e o fizemos pela mão da conversação, que subjaz, por sua vez, à pergunta, como um momento hermenêutico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Com isto, o fenômeno hermenêutico se mostra como um caso especial da relação geral entre pensar e falar, cuja enigmática intimidade motiva a ocultação da linguagem no pensamento. Assim como na conversação, a interpretação é um círculo fechado na dialética de pergunta e resposta. E uma verdadeira relação vital histórica, que se realiza no médium da linguagem e que também, no caso da interpretação de textos, podemos denominar “conversação”. A linguisticidade da compreensão é [393] a concreção da consciência da história efeitual. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Convém recordar que na origem, e primordialmente, a hermenêutica tem como tarefa a compreensão dos textos. Foi somente Schleiermacher que minimizou o caráter essencial da fixação por escrito com respeito ao problema hermenêutico, quando considerou que o problema da compreensão estava dado também face ao discurso oral, e quiçá na sua plena realização. Já demonstramos até que ponto a versão psicológica, que ele introduziu na hermenêutica, abafou a autêntica dimensão histórica do fenômeno hermenêutico. Na realidade a escrita possui, para o fenômeno hermenêutico, uma significação central, na medida em que nela a ruptura com o escritor ou autor, assim como com o endereço concreto de um destinatário [396] é trazida, por assim dizer, a uma existência própria. O que se fíxa por escrito se eleva de um certo modo, à vista de todos, a uma esfera de sentido na qual pode participar todo aquele que esteja em condições de ler. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Chegamos, assim, ao segundo aspecto sob o qual se apresenta a relação entre linguisticidade e compreensão. Não somente o objeto preferencial da compreensão, a tradição, é de natureza linguística, a própria compreensão possui uma relação fundamental com a linguisticidade. Havíamos partido do postulado de que a compreensão já é sempre interpretação, porque constitui o horizonte hermenêutico no qual a intenção de um texto em seu conteúdo objetivo (sachlich) teremos de traduzi-la à nossa língua, o que significa, porém, colocá-la em relação com o conjunto de intenções possíveis, no qual nos movemos, falando e dispostos a nos expressar. Já investigamos [400] isto em sua estrutura lógica, na posição destacada que convém à pergunta como fenômeno hermenêutico. Se neste momento nos vemos orientados para o caráter linguístico de toda compreensão, traremos à fala novamente a partir de outro aspecto, o que já foi demonstrado na dialética de pergunta e resposta. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A unidade interna de linguagem e pensamento é também a premissa de que parte a linguística. Somente assim pôde se converter em ciência. Pois somente porque existe essa unidade vale a pena, para o investigador, realizar a abstração, pela qual, em cada caso, converte em seu objeto a linguagem como tal. Somente rompendo com os preconceitos convencionalistas da teologia e do racionalismo, Herder e Humboldt aprenderam a ver as línguas como maneiras de ver o mundo. Ao reconhecer a unidade de pensamento e fala, tiveram acesso à tarefa de comparar as diversas maneiras de dar forma a essa unidade como tal. Nós partiremos da mesma concepção, mas faremos [407] um caminho no sentido inverso. Apesar de toda diversidade de maneiras de falar, procuramos reter a unidade indissolúvel de pensamento e linguagem tal como a encontramos no fenômeno hermenêutico, como unidade de compreensão e interpretação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

A pergunta que nos guia é, pois, a da conceitualidade de toda compreensão. Somente na aparência se trata de um questionamento secundário. Já vimos que a interpretação conceitual é a maneira de se realizar a própria experiência hermenêutica. Esta é a razão pela qual o problema que nos colocamos agora é tão difícil. O intérprete não sabe que em sua interpretação traz consigo a si mesmo, com seus próprios conceitos. A formulação linguística é tão inerente à opinião do intérprete, que não se torna objetiva para ele em nenhum caso. Por isso, é compreensível que esse aspecto da realização hermenêutica fique completamente despercebido. Mas a isso se acrescenta, de modo especial, que esse conjunto de fatos tenha sido desvirtuado amplamente por teorias linguísticas inadequadas. É claro que uma teoria instrumentalista dos signos, que entenda as palavras e os conceitos como instrumentos disponíveis ou que se tem de pôr à disposição, fica aquém do fenômeno hermenêutico. Se nos ativermos ao que ocorre na palavra e na fala e sobretudo em qualquer conversação com a tradição, levada a cabo pelas ciências do espírito, teremos que reconhecer que em tudo isso se produz uma continuada formação de conceitos. Isto não quer dizer que o intérprete faça uso de palavras novas ou insólitas. Mas o uso das palavras habituais não tem sua origem num ato de subsunção lógica pelo fato de que algo individual é submetido à generalidade do conceito. Recordaremos, pelo contrário, que a compreensão traz em si sempre um momento de aplicação e leva a cabo, desse modo, um constante e progressivo desenvolvimento da formação dos conceitos. E algo que temos de ter presente também agora, se quisermos que a linguisticidade própria da compreensão se liberte do domínio da chamada filosofia da linguagem. O intérprete não se serve das palavras e dos conceitos como o artesão que apanha e deixa de lado suas ferramentas. É forçoso reconhecer, antes, que toda compreensão está intimamente penetrada pelo conceitual e rechaçar qualquer teoria que se negue a aceitar a unidade interna de palavra e coisa. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Pelo caminho de nossa análise do fenômeno hermenêutico damos de cara com a função universal da linguisticidade. Na medida em que o fenômeno hermenêutico se revela em seu próprio caráter linguístico, possui por si mesmo um significado universal absoluto. Compreender e interpretar se subordinam de uma maneira específica à tradição linguística. Mas, ao mesmo tempo, vão mais além dessa subordinação, não somente porque todas as criações culturais da humanidade, mesmo as não linguísticas, pretendem ser entendidas desse modo, mas pela razão muito mais fundamental de que tudo o que é compreensível tem de ser acessível à compreensão e à interpretação. Para a compreensão vale o mesmo que para a linguagem. Não se pode tomar, nem a uma nem a outra, somente como um fato que se pudesse investigar empiricamente. Nenhuma das duas pode ser jamais um simples objeto, mas ambas abrangem tudo o que, de um modo ou de outro, pode chegar a ser objeto. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

Resumindo agora o que nos pode ser de utilidade na teologia do verbo, podemos reter, em primeiro lugar, um ponto de vista que mal se tornou expresso na análise precedente, e que tampouco chega a sê-lo apenas no pensamento escolástico, não obstante ser de uma importância decisiva para o fenômeno hermenêutico que a nós interessa. A unidade interna de pensar e dizer-se, que corresponde ao mistério trinitário da encarnação, encerra em si que a palavra interior do espírito não se forma por um ato reflexivo. Aquele que pensa algo, isto é, diz-se algo, refere-se com isso ao que pensa, à coisa. Quando forma a palavra não está voltado, pois, para o seu próprio pensar. A palavra é realmente o produto do trabalho de seu espírito. Este a forma em si, na medida em que produz o pensamento, e o pensa até o final. Mas, à diferença de outros produtos, a palavra permanece inteiramente no espiritual. Este é o motivo da aparência de que se trate de um comportamento voltado para si mesmo, e de que o dizer-se seja uma reflexão. Na realidade não o é. Mas nessa estrutura do pensamento tem seu fundamento o fato de o pensar poder voltar-se reflexivamente para si mesmo e tornar-se presente. A interioridade da palavra, que perfaz a unidade íntima de pensar e falar, é a causa de que se ignore tão facilmente o caráter direto e irreflexivo da “palavra”. Aquele que pensa não passa de um a outro, do pensar ao dizer-se. A palavra não surge num âmbito do espírito, livre, ainda, do pensamento (in aliquo sui nudo). Daqui procede a aparência de que a formação da palavra tem sua origem num voltar-se-para-si-mesmo do espírito. Na realidade, na formação da palavra não opera reflexão alguma. A palavra não expressa o espírito, mas a coisa a que se refere. O ponto de partida da formação da palavra é a própria conjuntura, (a species) que enche o espírito. O pensamento que busca sua expressão não está referido ao espírito mas à coisa. Por isso a palavra não é expressão do espírito, mas se dirige à similitudo rei. A conjuntura pensada (a species) e a palavra são as que estão mais intimamente unidas. Sua unidade é tão estreita, que a palavra não ocupa um lugar no espírito, como um segundo elemento junto à species, mas é aquilo em que se leva a termo o conhecimento, onde a species é pensada por inteiro. Tomás alude a que, no conhecimento, a palavra é como a luz, na qual somente se faz visível a cor. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Assim como as coisas — essas unidades de nossa experiência do mundo, constituídas de apropriação e significação — alcançam a palavra, também a tradição, que a nós chega, é trazida novamente à linguagem na nossa compreensão e interpretação dela. A linguisticidade desse vir à palavra é a mesma que a da experiência humana do mundo em geral. E isso o que levou a nossa análise do fenômeno hermenêutico, finalmente, à explicação da relação entre linguagem e mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Não seguimos o grandioso auto-esquecimento desse pensamento, e ainda teremos que nos perguntar até que ponto podemos seguir sua renovação, sobre a base do conceito moderno da subjetividade, que o idealismo absoluto de Hegel representa. Pois a nós, nos guia o fenômeno hermenêutico, e seu fundamento mais determinante é precisamente a finitude de nossa experiência histórica. Para fazer justiça a isso, seguimos o rastro da linguagem; nesse, não se copia a estrutura do ser, simplesmente, mas é no seu envio que se forma, primeiramente e em constante mudança, a ordenação e a estrutura de nossa própria experiência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Não obstante, existe outra dialética da palavra, que dispõe a cada uma das palavras uma dimensão interna de multiplicação: Cada palavra irrompe de um centro e tem relação com um todo, e só é palavra em virtude disso. Cada palavra faz ressoar o conjunto da língua a que pertence, e deixa aparecer o conjunto da acepção do mundo que lhe subjaz. Por isso, cada palavra, como acontecer de seu momento, faz que aí esteja também o não dito, ao qual se refere, respondendo e indicando. A ocasionalidade do falar humano não é uma imperfeição eventual de sua capacidade expressiva, mas, antes, expressão lógica da virtualidade viva do falar que, sem poder dizê-lo inteiramente, põe em jogo todo um conjunto de sentido. Todo falar humano é finito no sentido de que, nele, jaz uma infinitude de sentido a ser desenvolvida e interpretada. Por isso também o fenômeno hermenêutico deve ser esclarecido a partir dessa constituição fundamentalmente finita do ser, que desde o seu fundamento está construída linguisticamente. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Se quisermos determinar corretamente o conceito de pertença, de que se trata aqui, será conveniente que observemos a dialética peculiar, contida no ouvir. Não se trata somente de que aquele que ouve é de algum modo interpelado. Antes, nisso está o fato de que quem é interpelado tem de ouvir, queira ou não. Não pode apartar seus ouvidos, tal como se aparte a vista de outra coisa, olhando numa determinada direção. Essa diferença entre ver e ouvir é para nós importante, porque ao fenômeno hermenêutico subjaz uma verdadeira primazia do ouvir, como Aristóteles já reconhece. Não há nada que não seja acessível ao ouvido através da linguagem. Enquanto nenhum dos demais sentidos participa diretamente na universalidade da experiência linguística do mundo, já que cada um deles abarca tão-somente o seu campo específico, o ouvir é um caminho rumo ao todo, porque está capacitado para escutar o logos. À luz da nossa colocação hermenêutica, esse velho conhecimento da primazia do ouvir sobre o ver alcança um peso novo. A linguagem, na qual o ouvir participa, não é somente universal no sentido de que nela tudo pode vir à fala. O sentido da experiência hermenêutica reside, antes, no fato de que, face a todas as formas de experiência no mundo, a linguagem põe a descoberto uma dimensão completamente nova, uma dimensão de profundidade, a partir da qual a tradição alcança os que [467] vivem no presente. Tal é a verdadeira essência do ouvir, já desde tempos remotos, e inclusive antes da escrita: O ouvinte está capacitado a ouvir a lenda, o mito, a verdade dos antepassados. A transmissão literária da tradição, como a conhecemos, não significa, face a isso, nada de novo, apenas altera a forma e dificulta a tarefa do verdadeiro ouvir. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ser uma e a mesma coisa e, ao mesmo tempo, ser distinto, esse paradoxo aplicável a todo conteúdo da tradição põe a descoberto que toda a tradição é, na realidade, especulativa. Por isso, a hermenêutica tem que deixar o olhar atravessar o dogmatismo de todo “sentido em si”, tal como o fez a filosofia crítica com relação ao dogmatismo da experiência. Isso não quer dizer que cada intérprete seja especulativo para sua própria consciência, isto é, possua consciência do dogmatismo implicado na sua própria intenção interpretadora. Ao contrário, trata-se de que toda interpretação é especulativa em sua própria realização efetiva e acima de sua autoconsciência metodológica; isso é o que emerge da linguisticidade da interpretação. Pois a palavra interpretadora é a palavra do intérprete, não a linguagem nem o vocabulário do texto interpretado. Nisso se torna patente que a apropriação não é mera reprodução ou mero relato posterior do texto interpretado, mas é como uma nova criação do compreender. Quando se destacou, com toda a razão, a referência de todo sentido ao eu, essa referência significa, para o fenômeno hermenêutico, que todo sentido da tradição alcança aquela concreção em que é compreendido, na relação com o eu que a compreende, e não, por exemplo, na reconstrução de um eu, pertencente à intenção de sentido originária. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Nossa reflexão tem sido guiada pela ideia de que a linguagem é um centro em que se reúnem o eu e o mundo, ou melhor, em que ambos aparecem em sua unidade originária. Elaboramos também o modo como se representa esse centro especulativo da linguagem, como um acontecer finito, face à mediação dialética do conceito. Em todos os casos que estivemos analisando, tanto na linguagem da conversação, quanto na da poesia e na da interpretação, tornou-se patente a estrutura especulativa da linguagem, que consiste não em ser cópia de algo que está dado de modo fixo, mas em um vir-à-fala, onde se anuncia um todo de sentido. Isso nos tinha aproximado da dialética antiga, porque tampouco nela se dava uma atividade metodológica do sujeito, mas um fazer da própria coisa, fazer que o pensamento “padece”. Esse fazer da própria coisa é o verdadeiro movimento especulativo que capta o falante. Rastreamos o seu reflexo subjetivo no falar. Agora estamos em condições de compreender que essa cunhagem da ideia do fazer da própria coisa, do sentido que vem-à-fala, aponta a uma estrutura universal-ontológica, à constituição fundamental de tudo aquilo a que a compreensão pode se voltar. O ser que pode ser compreendido é linguagem. O fenômeno hermenêutico devolve aqui a sua própria universalidade à constituição ôntica do compreendido, quando a determina, num sentido universal, como linguagem, e determina sua própria referência ao ente, como interpretação. Por isso não falamos somente de uma linguagem da arte, mas também de uma linguagem da natureza, e inclusive de uma linguagem que as coisas exercem. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Também com relação ao fenômeno hermenêutico, mostrou-se como uma restrição ilegítima entender a compreensão somente como esforço imanente de uma consciência filológica, indiferente à “verdade” de seus textos. De outra parte, também era claro que a compreensão dos textos não poderia ter pré-julgado a questão da verdade, a partir do ponto de vista de um conhecimento superior da coisa, e na compreensão somente seja experimentada a satisfação desse conhecimento superior e próprio da coisa. Ao contrário, para nós a dignidade da experiência hermenêutica — e também o significado da história para o conhecimento humano em geral — consistia em que nela não se produz a subordinação sob algo já conhecido, mas que o que sai ao nosso encontro a partir da tradição é algo que nos fala. A compreensão não se satisfaz então no virtuosismo técnico de um “compreender” tudo o que é escrito. É, pelo contrário, uma experiência autêntica, isto é, encontro com algo que vale como verdade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Portanto, a compreensão é um jogo, não no sentido de que aquele que compreende se reserve a si mesmo como num jogo e se abstenha de tomar uma posição vinculante frente às pretensões que lhe são colocadas. Pois aqui, não se dá, de modo algum, a liberdade da autopossessão, que é inerente ao poder abster-se assim e é isso o que pretende expressar, a aplicação do conceito do jogo à compreensão. Aquele que compreende já está sempre incluído num acontecimento, em virtude do qual se faz valer o que tem sentido. Está pois justificado que, para o fenômeno hermenêutico, se empregue o mesmo conceito do jogo que para a experiência do belo. Quando compreendemos um texto nos vemos tão atraídos por sua plenitude de sentido como pelo belo. Ele ganha validez e já sempre nos atraiu para si, antes mesmo que alguém caia em si e possa examinar a pretensão de sentido que o acompanha. O que nos vem ao encontro na experiência do belo e na compreensão do sentido da tradição tem realmente algo da verdade do jogo. Na medida em que compreendemos, estamos incluídos num acontecer da verdade e quando queremos saber o que temos que crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Penso que essa teoria da unidade entre Antiguidade e Cristianismo afirma um momento de verdade do fenômeno hermenêutico, que Schleiermacher e seus seguidores não conferiram o devido valor. Em virtude de sua energia especulativa, Ast evitou procurar na história o mero passado e deixar de lado a verdade do presente. A hermenêutica que provém de Schleiermacher aparece, nesse pano de fundo, como um achatamento em nível do metodológico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, [103] assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Quem presenciou a enorme repercussão que causou o aparecimento do artigo programático de Rudolf Bultmann sobre a desmitologização do Novo Testamento e analisa a influência que continua exercendo até hoje sabe muito bem que ali estão em jogo problemas teológicos e sobretudo dogmáticos. Quem conhece o trabalho teológico de Bultmann sabe também que aquele artigo nada tem a ver com sensacionalismo. O artigo apenas formulou o que de há muito já vinha acontecendo no trabalho exegético do teólogo. É justamente esse o ponto em que uma reflexão filosófica pode contribuir para a discussão teológica. Sem dúvida, o problema da desmitologização possui também um aspecto hermenêutico geral. Os problemas teológicos não atingem o fenômeno hermenêutico da desmitologização como tal, mas sim o seu resultado dogmático. Trata-se de saber se Bultmann estabelece corretamente ou não os limites do que corresponde a uma desmitologização, a partir da perspectiva da teologia protestante. As explanações que se seguem buscam abordar o aspecto hermenêutico do problema sob um horizonte que, segundo me parece, ainda não alcançou suficiente validade. A pergunta que norteia essas explanações é se a compreensão do Novo Testamento pode se dar suficientemente a partir do conceito fundamental da autocompreensão da fé ou se ali atua também um momento totalmente diverso, que ultrapassa a autocompreensão do indivíduo e até seu ser-próprio. Para isso fazem-se necessárias algumas reflexões preparatórias capazes de assinalar lugar do aspecto hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Compreender não é mera reprodução de um conhecimento, ou seja, não é mera execução reiterada do mesmo, mas está consciente do caráter repetitivo de sua execução. Como já formulara [122] August Boeckh, trata-se de conhecer o conhecido. Esta formulação paradoxal resume as ideias da hermenêutica romântica, que tinha clareza sobre a estrutura reflexiva do fenômeno hermenêutico. A inteireza do compreender exige que se traga à consciência o componente inconsciente da compreensão. Nesse sentido, a hermenêutica romântica tem por base um conceito fundamental da estética kantiana, o conceito de gênio, que cria a obra paradigmática, “de modo inconsciente” — como a própria natureza — , isto é, sem o emprego consciente de regras e sem imitar modelos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Com isso acabo antecipando — e empreguei a expressão involuntariamente — quais são as respostas às perguntas suscitadas realmente pelos fatos. O que constitui verdadeiramente o fenômeno hermenêutico originário é que não existe nenhum enunciado que não possa ser compreendido como resposta a uma pergunta, e é só assim que ele pode realmente ser compreendido. Isso em nada prejudica a extraordinária metodologia da ciência moderna. Quem quiser aprender uma ciência precisa dominar sua metodologia. Sabemos também que a metodologia em si não garante a produtividade de sua aplicação. Existe também (e isso pode ser comprovado por qualquer experiência de vida) uma esterilidade metodológica, isto é, a aplicação da metodologia a algo que não vale a pena conhecer, a algo que se faz objeto de investigação a partir de uma investigação não-autêntica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

Mas tampouco posso compreender por que o autor se distancia assim da relação dessa palavra com o Deus Hermes. Não posso partilhar o sentimento de triunfo do autor quando acentua que a moderna ciência da linguagem constatou que a derivação da palavra “hermenêutica” de Hermes não passa de uma ficção e que ignoramos seu significado etimológico (84, nota 160). Tomo conhecimento disso e não me deixo enganar quando vejo como Agostinho e toda a tradição compreenderam essa palavra. A referência a Benveniste (41, nota 17a) não pode alterar em nada a questão. O testemunho da tradição pesa muito, não como um argumento de linguagem, é claro, mas como uma indicação válida do alcance e universalidade com que se deve ver e se viu o fenômeno hermenêutico: como “mensageiro do pensamento”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a “manifestações vitais fixadas por escrito” (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam “interpretação” e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.