Entremos agora nesta pura realização do “sentir-se a si mesmo” e tentemos apreender o que nele se dá, o que ele constitui em si mesmo, a essência que nele se afirma. O que se sente a si mesmo, como esse mesmo sentir e nesse sentir, o que originalmente se dá a si mesmo como sua própria realidade, é o Si enquanto tal. “A afetividade é a essência da ipseidade” (MHEM:581). Esta afirmação implica uma dupla determinação: a do Si como afetividade e a da afetividade como ato do Si. Se o Si é (56) definido pela identidade do afetante e do afetado, se a possibilidade do Si reside nessa identidade, essa possibilidade realiza-se precisamente na afetividade. Na afetividade, a possibilidade do Si, a identidade abstrata do afetante e do afetado, encontra, como diz M. Henry, “a efetivação da sua efetividade fenomenológica”, isto é, a sua realização concreta. A afetividade é o fundamento da ipseidade; ela é, de fato, “aquilo que coloca tudo em relação consigo mesmo, e assim o opõe a todo o resto, na suficiência da sua interioridade radical” (Ibid).
Se a afetividade é a essência da ipseidade, do Si, o Si é a substância da experiência que constitui a afetividade; ou melhor, a afetividade como Si, o Si como afetar-se, forma uma substância viva. O puro ato de se sentir é o próprio ato do Si, um ato substancial em virtude da dupla determinação do Si pela afetividade e da afetividade como vida do Si.
A descoberta do Si e da sua essência na afetividade ou, inversamente, a determinação da afetividade como ato do Si, é de importância capital para a procura do fundamento de toda a manifestação: permite-nos apreender esse fundamento como autenticamente tal. Na origem de todo o afetar-se, no princípio de toda a experiência, não está uma possibilidade abstrata, uma condição formal e vazia, um puro sujeito lógico, mas uma substância viva, o próprio Si no ato constitutivo da sua realidade, na sua experiência essencial. “A ipseidade da essência, seu auto-afetar-se na imanência da pura afetividade, eis o Ser do sujeito como Ser efetivo e concreto, o Ser originário do afetar-se, que enquanto tal torna possível todo afetar-se, mesmo o afetar-se sensível, de tal modo que é ele, e não o sujeito lógico, que constitui a oposição, que é a ele, a um Si, que a oposição se opõe ao que se opõe, a ele que o ser oposto se propõe, de modo que é também ele que recebe o que precisamente só pode ser recebido por um Si, tornando assim toda a oposição e toda a recepção em geral possíveis ao mesmo tempo que a sua identidade” (MHEM: 584).
O conceito de afetividade responde à questão de saber como se revela a essência de qualquer manifestação. Ele aparece antes de mais na sua função fenomenológica descritiva. Mas todo o carácter fenomenológico é indivisivelmente um carácter ontológico. A elaboração do conceito de afetividade exige a sua extensão ao fundamento de toda a manifestação, bem como ao próprio ser, (57) fundamento de toda a realidade. Devemos, portanto, perguntar: como é que a afetividade envolve no seu poder de determinação fenomenológica um poder de determinação ontológica? Veremos que a elucidação do valor ontológico do conceito de afetividade levará o filósofo a desvendar o carácter fenomenológico último da essência, o próprio carácter em que se realiza o ser do fundamento absoluto.