Haar (1990:143-148) – rememoração (Andenken)

Alves

O salto, porque volta ao mesmo lugar, porque só deixa o ponto de partida para melhor se reapropriar dele, é ao mesmo tempo rememoração (Andenken). «O salto só se mantém salto se rememorar» (als andenkender)1. O segundo acto que define a essência do pensamento é a memória (Gedächtnis), a rememoração da História do Ser, o ser como história. Porque deve o «passo atrás», o movimento que volta da metafísica à sua essência impensada, a diferença ontológica 2, também revestir a instantaneidade e a imediatez do «salto»? Como pode uma rememoração fixar-se no instante? Sem dúvida, para marcar que a história do Ser se distingue do processo lógico-dialéctico da totalização, sobretudo no que esta oferece de olhar único do ser no seu ser-presente. A dedução cuidadosa das épocas do ser, segundo o fio condutor do obscurecimento sempre cada vez maior da aletheia, importa menos que a concreção actual do esquecimento no Gestell. O Gewesenes («o ter-sido-essencial) encontra-se presentemente reunido e pode ser tomado num só olhar. O salto faz ver a totalidade do passado como uma só e mesma destinação do ser:

«A história do pensamento ocidental só se manifesta como destinação do ser (Geschick des Seins) no momento em que, a partir do salto (sublinhado de Heidegger), nós revemos (zuruckblicken) a totalidade do pensamento ocidental e daí, ao rememorá-la, a preservamos como a destinação do ser, reunida no seu ter-sido essencial (Gewesenes). Ao mesmo tempo, nós só podemos preparar-nos para o salto falando a própria linguagem que nos fornece a História do Ser, já experimentada como destinação. O salto deixa o domínio da partida e, tendo-o deixado, recupera-o de novo pelo pensamento rememorante (andenkend), de maneira que o ter-sido essencial não possa daí em diante ser perdido. Quanto ao lugar alcançado pelo salto quando o pensamento antecipa (vordenkend), não é um distrito do ente dado aí-adiante, onde possamos directamente ter pé, mas o domínio do que não nos chega de imediato como que uma questão digna de ser pensada»3.

É surpreendente que o poder de visão retrospectiva, sinóptica e panorâmica, tanto como a conservação indelével (unverlierbar) do passado (o que parece hiper-hegeliano!) e enfim a visão prospectiva — que esses «poderes» sejam atribuídos conjuntamente ao pensamento como Sprung e ao pensamento como Andenken. Pois que o que está unificado, adquirido de uma vez por todas, e que abre para o futuro, deveria situar-se mais no ser do que no pensamento. Mas a intervenção do pensamento limita-se a uma constatação. Não é ela que reúne o Gewesenes. Ela age, à sua maneira, guardando a memória desta reunião. Por que é esta reunião daqui para a frente inesquecível? A fidelidade de Andenken não será ela ainda uma forma de adequação que deverá ser ultrapassada? É talvez a tradução de Andenken por «pensamento fiel» que cria esta impressão. Em todo o caso, Andenken não deve ser tomado por equivalente ou mesmo análogo ao conceito hegeliano de Erinnerung. Ele não reenvia nem para uma lógica acumulativa, nem exclusivamente para uma memória. An-denken é tomado no (139) sentido modificado de Denken am Sein selbst, pensamento que se mantém o mais próximo do próprio ser. A palavra é identificada com An-dacht, termo emprestado à linguagem da devoção e que designa o recolhimento de alma na prece ou na devoção (assim chama-se Andacht à adoração do Santo Sacramento). Andacht significa, diz Heidegger, o «recolhimento de alma» (Gemut) ao pé do ser. A palavra kantiana Gemut aparece (é o único lugar na obra) na elucidação de Andenken que dá o Curso Was heisst Denken?, a partir das palavras formadas da mesma raiz: Gedanke, Dank, Gedächtnis. O conjunto desta elucidação tem um acento de piedade. A alma que rememora faz-se obediente, sem ser simplesmente submissa: ela escuta no recolhimento o que diz a língua (hörenden Andacht). O pensamento rememorante é, sobretudo, ato de reconhecimento: ação de graças. Denken é Danken. Pensar é compreender o ser como um dom e estar contente com ele. «Ao que devemos agradecimentos, isso não o tiramos de nós. Isso é-nos dado»4. Mas se podemos agradecer a alguém, como podemos agradecer, experimentar reconhecimento por uma dimensão anônima, mesmo a mais original?! Não existirá aí uma tentativa de «repatriar» no plano ontológico um fenômeno pertencente a este nível à fé religiosa?

Todo Andenken é memória (Gedächtnis) — mas não lembrança — no sentido em que o pensamento re-tém, persiste, não deixa a sua guarda. A tradução de Andenken por «pensamento fiel», além de lembrar as alegorias da Carta do Terno (coração fiel/coração ingrato?) deixa escapar o sentido primeiro da palavra memória e, principalmente, diz o contrário do esquecimento do ser. Traduzir por «comemoração» (Préau) dá à palavra um sentido demasiado solene, demasiado enfático. É preciso distinguir o equivalente que propomos: rememoração, da memória psicológica e do relembrar (Wiedergedächtnis), mas Andenken e Gedächtnis são uma só e mesma atividade do pensamento. Rememoração ou memória é originalmente para Heidegger o «todo da alma» que tem a capacidade de habitar ao pé de… em relação com… totalidade que foi restringida pela metafísica da subjectidade à faculdade da recordação. Falar da recordação como duma faculdade à parte (140) seria então reduzir o todo à parte. «Inicialmente memória» não significa de todo «faculdade de recordar». A palavra designa o todo de alma no sentido de uma união íntima constante ao pé do que se dirige essencialmente a todo o pensamento Rinnen). Memória (Gedächtnis) significa originalmente An-dacht, recolhimento ao pé de…, infatigável manter-se junto, ao pé de… e aqui não apenas ao pé do passado, mas, da mesma maneira, ao pé do presente e do que pode vir 5. É estranho que Heidegger conceda à memória, em sentido alargado, uma tal capacidade de constância, de presença constante. Se o pensamento é também essencialmente e continuamente recolecção, como poderá ele alguma vez esquecer o ser? Todavia a memória humana não possui por si própria nenhum poder original de juntar e de conservar. «A reunião da rememoração não se funda numa faculdade do homem, tal como a de recordar e a de reter. Toda a rememoração do que é memorável habita já esta reunião, graças à qual é protegido por antecipação e escondido tudo o que falta pensar (…) A memória (Gedächtnis) como rememoração humana (Andenken) do que há a pensar repousa na salvaguarda (Verwahrnis) do que dá mais a pensar. É o fundamento do ser da memória… O homem não cria esta salvaguarda 6.

O homem só pode «guardar na memória», «guardar» em geral sobre o fundo desta «salvaguarda» sempre já realizada no ser. A nossa guarda repousa sobre um já guardado. Só podemos «guardar no espírito» o que o ser conserva para nós. «Só a salvaguarda liberta e dá o que deve ser guardado no pensamento…»7 Assim se esvaem as faculdades humanas, ou, pelo menos, a sua condição de possibilidade no homem. Pois o homem encontra-se despojado, se não do «uso» das suas faculdades, pelo menos de todo o poder sobre elas. Mas o que são «faculdades» sobre as quais não temos nenhum poder?

O pensamento como «vir à memória», enquanto «possui» a unidade dos três êxtases da temporalidade e não só o passado, não se limita a uma relação retrospectiva. Ele é também antecipação, (141) olhar sobre o futuro. Denken ist andenkendes Vordenken 8. «Pensar é prever rememorando». Esta previsão distingue-se duma representação; também não tem nada em comum com uma profecia sociológica, econômica ou política. Em que consiste este olhar não representacional do por-vir? Este não é de modo nenhum figurado, pois que se trata dum impensado, que está para vir porque lhe falta ainda ser pensado (zu-denkende). O futuro é desconhecido como conteúdo, mas ele é prefigurado nas suas estruturas essenciais que conhecemos pela História do Ser. Sabemos, assim, que a época da vontade de vontade não vai desaparecer amanhã, nem depois de amanhã, mas reforçar-se segundo uma uniformização planetária acelerada para a qual contribuem principalmente a informatização e a cibernetização. O futuro chega até nós do mais longínquo passado. A exigência, sobretudo de racionalidade, inscrita no começo grego requer-nos sempre ainda de novo. E só a Andenken pode «prever» um futuro tão antigo.

Titre 2

  1. P.R. p. 207.[↩]
  2. Cf Q.I p. 285.[↩]
  3. P.R. p. 197 (S.v.G. p. 150).[↩]
  4. Q.P. p. 149.[↩]
  5. Q.P. p. 146 (W.h.D. p. 92).[↩]
  6. Q.P. p. 153 (W.h.D. p. 97).[↩]
  7. Ibid.[↩]
  8. Q.P. p. 207 (S.v.G.p.159).[↩]

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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