Marquet (1995:197-198) – conversão

(Marquet1995)

Mas o nome por excelência para essa relação do mesmo com o mesmo é aquele introduzido pelo neoplatonismo — o nome de conversão (επιστροφή). A singularidade é o Uno convertendo-se sobre si mesmo (sobre seu ser), o que pressupõe uma saída, uma processão (πρόοδος) anterior. A vida é essa processão mesma — ela é, como saída do Uno, a potência do outro, do não-um, do contínuo em seu fluxo indiferenciado; o intelecto (νοῦς), ao contrário, é aquilo em que recai o ato, o evento da conversão, o lugar onde o Uno faz um nó consigo mesmo e se encontra pela primeira vez, pensando, como pensado (que o Único seja um nó, esse será o conteúdo do mistério cristão da Trindade, objeto da contemplação final de Dante). Resta que esses diferentes momentos só se articulam rigorosamente no evento único do absoluto: a singularidade finita (que não é o Uno, mas alguém) só pode suportá-los em sua disjunção — só pode entrar por arrombamento na fornalha do mesmo ao mesmo (essa sarça ardente de onde uma voz enuncia: ego sum qui sum). Para mim, que sou alguém, a vida se desencadeou em uma corrente anônima que me leva, me arrasta e me apaga; o pensamento se congelou em um sistema de ideias uni-versais que, como tais, ainda não foram retomadas no Uno e constituem, como a vida, um meio comum (portanto, não próprio) no qual estou destinado à comunicação. O erro do alguém, na verdade inevitável, é acreditar que ele é o próprio Único, cujo lugar ele simplesmente ocupa na primeira pessoa — acreditar que a vida é minha vida, que as ideias ou as palavras são minhas ideias ou minhas palavras e que posso confiar nisso com segurança. O ser-para-a-morte me lembra da verdade, ou seja, me revela a vida como algo que me é — irremediavelmente e terrivelmente — estranho; e só posso responder a essa estranheza deixando que o outro plano, o das ideias, também se torne estranho para mim, deixando que ele se expresse em uma palavra (oração, hino, oráculo) da qual não sou mais o ordenador. Entre essas duas instâncias devolvidas à sua grande liberdade, um jogo supremo se instaura, cujo ganho (também ele exceção e segredo) seria a própria ressurreição — a vida eterna, ser e ter sido, do mesmo ao mesmo.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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