LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973
Hume jamais quis saber das ideias inatas: para ele, todo conhecimento é conhecimento da experiência sensitiva e começa com simples impressões.1 Nunca pensou, tampouco, num cogito ativo; o cognoscente é puramente passivo, simples “receptor” de impressões, que são como “mensagens” ou “comunicações” de um mundo em que o cognoscente não vive.
Se perguntarmos o que o cognoscente conhece propriamente, a resposta não se faz esperar: impressões, ou seja, conteúdos de consciência. Para Hume, como, de resto, para todos os empiristas, tal resposta resulta de seu realismo, i. e, de ser o mundo concebido como separado do sujeito cognoscente. Com efeito, como se pode afirmar seriamente que o cognoscente conhece as próprias coisas do mundo, se o sujeito e o mundo são postos como duas realidades distintas ? Já Locke estatuira explicitamentc que o conhecido são as ideias em si.2 O conhecimento era concebido por ele como uma espécie de “armário” em que se guardam os conteúdos de consciência.3 O “armário” em si é perfeitamente separado do mundo, do qual recebe “informações”. Hume retoma essa concepção de Locke. Não pode, portanto, deixar de ver como objeto do conhecimento as “mensagens” ou “notícias” vindas do mundo em que o cognoscente não vive. São os “fenômenos”, as impressões subjetivas na interioridade do cognoscente, que são conhecidos.4 Qualquer tentativa de ultrapassar os fenômenos e apreender o que se esconde atrás deles — o que outros, antes de Hume, procuraram fazer com auxílio do princípio de causalidade — é para ele simplesmente um contra-senso filosófico.15 Com efeito, a ideia da causalidade, ao ver de Hume, resulta simplesmente da experiência da sucessão regular de impressões, da qual nasce a expectativa subjetiva de que após certa impressão se seguirá outra. Bem vistas as coisas, prossegue ele, deve reconhecer-se que a experiência sensitiva não dá senão a impressão de que o movimento de uma bola de bilhar B se realiza depois de receber a batida da bola A. Repetindo-se essa experiência, surge a esperança subjetiva de que isso sempre será assim. Por fim, o movimento da bola B é concebido como sendo, na realidade, produzido ou causado pela bola A. Mas a afirmação da existência de uma causa e de sua ação na realidade ultrapassa as possibilidades de qualquer afirmação justificável, desde que afirmações justificáveis só se podem referir a impressões subjetivas.6 Todas as afirmações que procuram atingir além das impressões subjetivas não passam de manifestações de uma “fé”, que pode ser útil para a vida cotidiana,7 mas que não se mantém à luz de uma reflexão crítica. Esta não concluirá senão por um fenomenalismo radical.8
Já os contemporâneos de Hume viram nesse fenomenalismo uma forma radical de ceticismo.9 Da possibilidade de conhecer a “realidade” nada resta em nosso filósofo.
Não podemos deixar de observar aqui que o ceticismo de Hume é a consequência inevitável e lógica de toda teoria representacionista do conhecimento, a qual recusa conceber a este como presença imediata do sujeito cognoscente a um real mundo presente. Em semelhante teoria o mundo “real” aparece como mundo-sem-sujeito. Ora, um mundo-sem-sujeito é um mundo de que nenhum sujeito tem consciência, do qual nenhum sujeito fala realmente, com o qual nenhum sujeito trata realmente, em que nenhum sujeito vive realmente e que não é afirmado realmente por nenhum sujeito. Um mundo assim evidentemente jamais pode ser afirmado. Daí conclui Hume que nunca afirmamos outra coisa senão nossas impressões.10 Antes dele houve filósofos que conceberam o mundo como “inumano”, “afirmando”, não obstante, a “existência” dele. Hume estava certo ao julgar que uma afirmação justificada e real de um mundo-não-afirmado é impossível, e só se pode admirar que a filosofia tenha esperado por Hume para cair declaradamente no ceticismo. O filósofo tinha razão ao pensar que o uso do princípio de causalidade não poderia salvar o mundo, porque a simples afirmação da “existência” de ações causais ultrapassa “realmente” a possibilidade de qualquer asserção justificada, visto que “existir na realidade” deve significar necessariamente “existir-num-mundo-não-afirmado”.
Hume foi o primeiro a ir realmente até as últimas consequências da teoria realística da representação, o que não acontecia com Locke. Para este, o mundo das coisas é separado do sujeito do conhecimento; não obstante, chama objetivas as ideias das qualidades primárias. Os objetos do conhecimento são as ideias em si mesmas e, apesar disso, Locke julga possível declarar que algumas ideias se manifestam como semelhanças das próprias coisas. Na teoria dele, porém, as “próprias” coisas são não-afirmadas, não-conhecidas: as coisas afirmadas e conhecidas são as ideias. Locke não viu absolutamente que sua afirmação de que as ideias das qualidades primárias são reproduções exatas supõe a possibilidade de comparar as ideias (logo, as coisas afirmadas e conhecidas) com os próprios corpos (logo, as coisas não-afirmadas e não-conhecidas). Semelhante comparação, entretanto, é evidentemente impossível e, por isso, carece, por completo, de base a diferença entre as ideias de qualidades primárias e as de qualidades secundárias.11 Nas ideias o sujeito não pode “ver” se representam ou não as qualidades não-conhecidas dos corpos em si mesmos.
Em Hume não se encontra mais resquício dessa ambiguidade. Conforme ele, afirmações justificadas referem-se exclusivamente a impressões subjetivas na consciência. A “realidade existente”, ou seja, o mundo não afirmado e não conhecido, é inatingível. O chamado ceticismo de Hume é bem inteligente.
Muitas vezes, porém, a consciência do cético é uma “consciência infeliz” (conscience malheureuse). É “com pena” que o cético reconhece que deve ser cético. Mas o que denota esse sentimento ? Revela que o cético alimenta ainda um falso ideal de verdade, a qual deve ser a concordância do juízo com a realidade bruta. A fenomenologia rejeita tanto o ceticismo como a “pena” do cético, pois mostra que o ideal de verdade do cético é uma contradição.
“Portanto, devemos contentar-nos aqui em estabelecer uma proposição geral: que todas as nossas ideias simples na sua primeira aparição são derivadas de impressões simples, correspondentes a elas e que elas representam exatamente”. D. Hume, A Treatise on Human Nature, I, part. 1, sect. I. ↩
“Sendo todo homem consciente de si mesmo, do que pensa e de que aquilo a que se aplica sua mente, enquanto pensa, são as ideias presentes, não há dúvida de que os homens têm, em sua mente, muitas ideias como ‘brancura, dureza, doçura, pensamento, movimento, homem, elefante, exército, embriaguez’ e outras”. J. Locke, An Essay Concerning Human Understanding, II, 1, 1. ↩
“A princípio, os sentidos introduzem ideias particulares e guarnecem o armário ainda vazio: e a mente gradualmente se familiariza com algumas delas, guardando-as na memória e dando-lhes nomes”. J. Locke, op. cit., I, 2, 15. ↩
“Na caracterização da doutrina de Hume não se esqueça de que essa absolutamente certa realidade das impressões é só a sua presença como representações. Nesse significado e nessa limitação o conhecimento intuitivo abrange não apenas as realidades da experiência interna, mas também as da externa, entendendo-se, porém, que as últimas não passam de uma espécie das primeiras, ou seja, um saber de estados de representação”. W. Windelband, Lehrbuch der Geschichte der Philosophie, ed. Heinz Heimsoch, Tübingen, 1957, p. 405. ↩
“Todo nosso saber se limita à constatação das impressões e às relações delas entre si”. W. Windelband, op. cit., p. 406. ↩
W. WlNDELBAND, Op. Cit., p. 407. ↩
“Assim se exclui toda teoria, toda investigação causal, toda doutrina do ‘verdadeiro ser’ oculto nas ‘aparências’”. W. Windelband, op. cit., p. 408. ↩
W. WlNDELBAND, Op. Cit., pp. 407-408. ↩
“A ideia de existência, pois, é idêntica à ideia do que concebemos que exista. Refletir sobre qualquer coisa simplesmente e refletir sobre ela como existente, não são coisas diferentes. Por conseguinte, desde que nada está sempre na mente e dado que todas as ideias são derivadas de algo já presente na mente, segue-se que é impossível sequer conceber ou formar uma ideia de qualquer coisa especificamente diversa de ideias e impressões”. D. Hume, op. cit., I, part. II, sect. IV. ↩
“Asseguro que, em lugar de explicar as operações dos objetos externos por meio deles, aniquilamos totalmente todos esses objetos, e limitamo-nos a opiniões do mais extravagante ceticismo com relação a eles. Se cores, sons, gostos e cheiros são meramente percepções, nada do que podemos conceber é dotado de uma existência real, continuada e independente, nem mesmo movimento, extensão e volume, que são as qualidades primárias sobre as quais se insiste principalmente”. D. Hume, op. cit., I, part. IV, sect. IV. ↩