Excertos de W. Luijpen, “Introdução à fenomenologia existencial”
Chamamos “sentido” o correlato da intencionalidade ou do sujeito-como-cogito, existente. Denominemos agora “percepção” o ato do sujeito-como-cogito. Se concebermos a percepção como intencionalidade e analisarmos com exatidão essa forma de intencionalidade, surpreender-nos-emos com coisas que na psicologia tradicional da percepção levaram às mais estranhas hipóteses. Contudo, não é tão fácil descrever bem essas coisas. Por isso, desculpamo-nos se, a princípio, empregamos uma terminologia que depois se verá imprópria.
Quando percebo uma casa, não hesito em dizer que avisto realmente uma casa, embora só enxergue certo perfil da casa. Vejo a fachada, um dos lados e uma parte do telhado, mas não propriamente o fundo, o outro lado e a parte restante do telhado. Poderia, sem dúvida, ver as partes não vistas da casa, desde que mudasse meu ponto de vista no espaço em relação à mesma, mas com isso deixaria de ver o perfil que via antes. Em princípio, eu poderia perceber um número infinito de aspectos (Abschattungen, como diz Husserl), pois que posso ocupar infinitos pontos de vista em relação a ela.1 Um objeto de percepção, portanto, exibe um horizonte interno. Uma infinita pluralidade de mutáveis atos parciais envolve-me numa infinita pluralidade de fugazes aspectos. Isso vale para qualquer objeto de percepção.2 Em todo ato parcial e em todo perfil que atualmente aparece, entretanto, tenho consciência de que se trata sempre de perfis de uma e mesma coisa.3
Como, porém, se unem entre si os vários atos parciais do sujeito e os vários aspectos aparentes do objeto da percepção ? Seria um engano julgar que a percepção, tanto em seu lado subjetivo (noesis) como no objetivo (noema), tenha de consistir numa espécie de “adição”.4 A percepção como totalidade não consta de atos parciais colados entre si. Porque todo perfil da casa percebida se refere intrinsecamente a outros perfis,5 que aparecem se mudo de posição. Posso seguir as várias linhas de um perfil atual até um ponto em que não as vejo mais. Indicam, entretanto, a aparição de outro perfil, preso à minha futura percepção a partir de outro ponto de vista. Se se tivesse de “concluir” que de fato isso não se dá, ou que, no exemplo aduzido, o frontispício de uma casa não indica um fundo, é sinal de que de fato não percebi realmente uma coisa, ou, no nosso exemplo, uma fachada. Se percebo as costas de meu amigo e depois “verifico” que seu corpo não tem frente — não só a frente que eu esperava, mas toda e qualquer frente — não vi umas costas na realidade. Todo perfil atual indica, pois, intrinsecamente, um perfil que aparece em potência, e isso significa que, sem essa indicação, o perfil atual não é o que ele é. Também sem referência a possíveis percepções não existe realmente a percepção atual. Logo, o que chamamos percepção inclui não só atualidade, mas também potencialidade, e esses distintos momentos da percepção não são o que são quando não dizem respeito um ao outro. A potencialidade pertence à realidade do atual, e o atual pertence à realidade do potencial.6 O objeto da percepção, portanto, é um sistema de significados mutáveis, “próximos” e “longínquos”, correlativos aos sempre mutáveis momentos da atualidade e da potencialidade da percepção. Esta mostra, tanto em seu lado noético como no noemático, um horizonte espacio-temporal, interno, só accessível a uma análise intencional.
Já é tempo, porém, de corrigir nossa terminologia. Não devemos dizer que o percipiente vê “propriamente” só certo perfil de uma casa, mas não outro. Não se diga tampouco que certo perfil está presente e outro não. Quem assevera tal coisa parte da suposição de que é realidade exclusivamente o momento da atualidade da percepção, deixando de considerar que esse momento da atualidade não é o que é sem o momento da potencialidade. Também esquece que a presença presente de um perfil que atualmente aparece não é o que é sem a presença ausente de um perfil a aparecer potencialmente. O percipiente vê presenças presentes e ausentes, o que só é possível porque a própria percepção inclui essencialmente momentos de atualidade e potencialidade.
O objeto da percepção apresenta não só um horizonte interno, mas também um externo. Não é só a totalidade do objeto de percepção que deve ser exclusivamente acentuada, mas também a unidade da totalidade com todo o campo de percepção. Cada objeto aparece como certa “figura” sobre um fundo, sobre um horizonte de significados. A maçã que percebo como unidade e totalidade numa infinita série de perfis, só aparece como maçã real sobre o horizonte da mesa, da fruteira, do guarda-comidas ou do livro em que está. Uma maçã que não está numa mesa, numa fruteira, numa caixa de quitandeiro, na mão de uma criança ou pendurada em um galho, não aparecendo, portanto, sobre um fundo, não é simplesmente uma maçã real, o objeto de uma percepção real, mas uma imagem da fantasia, produto de um sonho ou de uma alucinação.7 A percepção mesma de uma maçã inclui essencialmente o campo de percepção, o fundo, o horizonte.
Desde que dirijo minha atenção à maçã e não à mão da criança, onde ela se acha, a maçã aparece como uma figura central, como um significado que, por assim dizer, ressalta de um fundo de significados. A mão, o braço, o corpo da criança, o assoalho sobre que esta se encontra, o quarto, a casa etc. são, entretanto, co-constitutivos da maçã real. Uma maçã que não tenha nenhum horizonte exterior não pode ser percebida e não é real.
Por conseguinte, a percepção é sempre percepção da coisa total, compreendida num campo mais amplo, o qual, por sua vez, é abrangido em um horizonte de significados mais distantes.8 O conjunto desse complicado sistema de sempre mutáveis significados “próximos” e “longínquos”, ligados aos sempre mutáveis momentos de atualidade e potencialidade da percepção, eis o que se chama “mundo” na fenomenologia.
“Na necessidade da essência pertence a uma ‘múltipla’, continuamente unitária e autoconfirmante consciência da experiência de uma mesma coisa, um múltiplo sistema de continuadas diversidades de aparências e aspectos, nas quais, se vigoram atualmente, se representam ou aparecem na consciência da identidade e em determinadas continuidades, todos os momentos objetivos da percepção que possuem o caráter de autonomia corporal”. Ideen, I, p. 93. ↩
Ideen, I, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 100-101. ↩
“Partamos de um exemplo. Vendo sempre esta mesa, mas rodeando-a, mudando sempre minha posição no espaço, tenho continuamente consciência do ser-aí corporal de uma e mesma mesa, idêntica, imutável em si. A percepção da mesa, porém, está sempre mudando: é uma continuidade de percepções em mudança”. Ideen, I, p. 92. ↩
“Os pedaços e fases da percepção não se colam exteriormente um ao outro…” E. Husserl, Cartesianische Meditationen und pariser Vorträge, (Husserliana I). P. 17. ↩
E. Husserl, Erfahrung und Urteil, Redigiert und herausgegeben von L. Landgrebe, Hamburg, 1948, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 26-27. ↩
“Tão essencial como a atualidade da vida é a potencialidade, que não se reduz a uma vácua possibilidade. Todo cogito — como, p. ex., uma percepção exterior ou uma recordação — traz em si mesmo, podendo ser descoberta, uma potencialidade imanente de vivências possíveis, referíveis ao mesmo objeto intencional e a ser realizadas a partir do eu”. E. Husserl, Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge, p. 18. ↩
“Quando a teoria da Gestalt nos diz que uma figura sobre um fundo é o dado sensível mais simples que podemos obter, não se trata de um caráter contingente da percepção de fato, que nos deixaria livres, numa análise ideal, de introduzir a noção de impressão. É a própria definição do fenômeno perceptivo, aquilo sem o qual um fenômeno não pode chamar-se percepção”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 10. ↩
“A visão é um pensamento sujeito a certo campo e é isso que se denomina um sentido”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 251. ↩