No fim da sua obra, o próprio Heidegger considerava que a «experiência fundamental» que impulsionou toda a sua meditação foi a da Seinsvergessenheit: do esquecimento do ser; ser que muito precocemente reconheceu que não «era» à maneira do sendo, que era o Outro de qualquer sendo. Mas restava dar conta desse esquecimento. Se este foi primeiro imputado ao pensamento, foi depois reconhecido como procedendo do próprio ser: o pensamento só se caracteriza pelo esquecimento porque o ser desenvolve a sua essência enquanto retirada. A Kehre torna possível essa passagem da problemática do esquecimento à da retirada. Claro, a viragem tal como se esboça no início dos anos 30, ainda não é o reconhecimento da retirada; mas é a tomada a sério da história. E é no caminho aberto por esse novo ponto de partida que o pensador, desde 1935 e sobretudo nos anos 40 1, poderá marcar o «permanecer-ausente» do ser ao longo da história: ausência rapidamente reconhecida como única modalidade da sua disposição. Desta forma aparece a ideia de melhoria enquanto retirada, onde se ordena finalmente um acesso à essência do ser e da verdade.
Consideremos de mais perto essa retirada, origem essencial e fundamento do esquecimento. O acto através do qual o ser se subtrai ou se esquiva é reconhecido como constitutivo do seu desenvolvimento: é retirando-se que pode dar lugar ao sendo, escondendo-se que pode tornar possível qualquer descoberto, e (167) propriamente falando, «ser». Daí a formulação decisiva de Heidegger: «O ser dá-se a conhecer a nós subtraindo-se na sua essência e oculta-a nessa retirada2.» O ser dispensando-se, só retirando-se, temos de manter juntos estes dois traços (que na verdade são «um e o mesmo»3) e reconhecer que é nesta paradoxal disposição na forma de ausência que repousa toda a história do pensamento ocidental. Visto que o sendo só pode aparecer à luz do ser, este último é sempre dado em toda a revelação do sendo; mas porque só se dá ocultando-se, já se retirou sempre a favor do único sendo, de que permite o aparecimento — e precisamente para permitir o seu aparecimento.
Daí o esquecimento. A retirada uma vez desenvolvida, o esquecimento pode ser restituído dentro da essência do ser, à qual deu acesso: «O esquecimento do ser, que constitui a essência da metafísica e que foi o impulso para o Sein und Zeit, pertence à própria essência do ser4.» Desta forma fecha-se a boca: o ser só foi esquecido porque se esconde, e esconde-se porque é a sua única maneira de «ser».
[ZARADER, Marlène. A Dívida Impensada. Heidegger e a Herança Hebraica. Lisboa: Instituto Piaget, 2000]- Evolução já esboçada em L’Origine de l‘oeuvre d’art (1935), e que encontrará o seu pleno desenvolvimento em Nietzsche II (1940-1946), nomeadamente em Die Seinsgeschichtliche Bestimmung des Nihilismus, pp. 350-390 (280-312).[↩]
- GA10:SvG, p, 110 (PR, 151).[↩]
- Ibid., p. 109 (150).[↩]
- Sem ZuS, ZSD, p. 32 (Q IV, 58-59).[↩]