Quando se põe aquela questão das três perguntas fundamentais (Grundfrage) de Kant: “o que posso saber?” (was kann ich wissen?) “o que devo fazer?” (was soll ich tun?) “o que me é permitido esperar?” (was darf ich hoffen?), quando essas três perguntas são remetidas por Kant à solução de uma quarta, “que é o homem?”, temos de perceber que as três perguntas são feitas no âmbito transcendental, portanto, no âmbito da solução das ciências da natureza (Naturwissenschaft), da solução das questões da ética (Ethik) e das soluções das ideias regulativas transcendentais (Transzendenz). Ora, se a solução para essas três perguntas transcendentais depende da pergunta que é o homem?, esta só pode ter um caráter transcendental. Então, que é o homem? não deveria permitir aos neokantianos fazerem, de um lado, uma problematização puramente epistemológica da proposta de Kant e, também, não poderia permitir a outros, sobretudo neokantianos também, buscarem uma solução antropológica. Porque nem a solução epistemológica, nem a antropológica, são soluções transcendentais daquele problema que nos levaria para fora da antinomia cartesianismo/empirismo. E, justamente, a leitura de Heidegger vai ser nessa direção: que é o homem? é uma pergunta transcendental que já tem esse sentido em Kant. Kant não quer saber do homem enquanto objeto da antropologia (Anthropologie), ele quer saber do homem enquanto o homem é a base do método (Methode). É uma pergunta essencialmente metodológica. Assim, a pergunta que é o homem? é uma pergunta que é uma construção kantiana em função da solução do problema do conhecimento (Kenntnis), ou melhor, da antinomia fundamental do problema do conhecimento, racionalidade (Rationalität) e empirismo (Empirismus), cartesianismo (Kartesianismus) versus empirismo.
Se olharmos a coisa assim, veremos que a pergunta que é o homem? de Kant é que vai facultar a construção de uma expressão em Heidegger como a palavra Dasein. O Dasein, portanto, não remete nem a um sujeito transcendental (transzendentale Subjektivität), nem a um sujeito empírico. O Dasein é construído de uma maneira que se fuja de uma espécie de antinomia que sobra em Kant ainda, que é o eu (Ich) transcendental e o eu empírico. O eu transcendental e o eu empírico devem receber, em Kant, elemento que produza a unidade dos dois – e esse elemento é o esquematismo (Schematismus), quer dizer, é a imaginação (Vorstellung), é o tempo (Zeit). Então, o Dasein é propriamente aquilo que Heidegger põe entre o eu transcendental e o eu empírico, no sentido comumente aceito. (ESVerdade:36)