teoria do real

Será a ciência (Wissenschaft), apenas, um conjunto de poderes humanos, alçado a uma dominação planetária, onde seria ainda admissível (40) pensar que a vontade humana ou a decisão de alguma comissão pudesse um dia desmontá-lo? Ou será que nela impera um destino superior? Será que algo mais do que um simples querer conhecer da parte do homem rege a ciência? É o que realmente acontece. Impera uma outra coisa. Mas esta outra coisa se esconde de nós, enquanto ficarmos presos às representações habituais da ciência.

Esta outra coisa consiste numa conjuntura (Sachverhalt) que atravessa e rege todas as ciências, embora lhes permaneça encoberta. Somente uma clareza suficiente, sobre o que é a ciência, será capaz de nos fazer ver esta conjuntura. Mas como poderemos alcançá-la? A forma mais segura parece ser uma descrição da atividade científica atual. Uma tal exposição poderia mostrar como, de há muito, as ciências se encaixam, de maneira sempre mais decidida e ao mesmo tempo cada vez menos perceptível, em todas as formas da vida moderna: na indústria, na economia, no ensino, na política, na guerra, na comunicação e publicidade de todo tipo. É importante conhecer este enquadramento. Todavia, para se poder apresentá-lo, devemos já saber em que repousa a essência da ciência. Pode-se dizê-lo numa frase concisa: a ciência é a teoria do real.

Esta frase não pretende dar uma definição acabada e nem proporcionar uma fórmula manejável. A frase contém somente questões, mas questões que apenas surgem e se levantam quando é explicada. Antes, porém, devemos notar que, na frase “a ciência é a teoria do real”, o termo “ciência” visa sempre e exclusivamente a ciência moderna. A frase “a ciência é a teoria do real” não vale nem para a ciência medieval e nem para a ciência antiga. A doutrina medieval possui uma essência tão diversa de uma teoria do real quanto ela mesma difere da antiga episteme. E, não obstante, a essência da ciência moderna que, fazendo-se europeia, tornou-se, entrementes, planetária, funda-se no pensamento grego que, desde Platão, tem o nome de filosofia. (GA7 40)


Como teoria do real, a ciência moderna não é, pois, nada de espontâneo e natural. Não se trata de um simples feito do homem e nem de uma imposição do real. Ao contrário, a vigência do real (49) carece da essência da ciência quando se ex-põe na objetidade do real. Este momento, como qualquer outro semelhante, é um mistério. Se os grandes pensamentos sempre chegam com os pés do silêncio, muito mais ainda é o que acontece com a transformação da vigência de todo vigente.

A teoria assegura para si uma região do real, como domínio de seus objetos. O caráter regional da objetidade aparece na antecipação das possibilidades de pesquisa. Todo novo fenômeno numa área da ciência será processado até enquadrar-se no domínio decisivo dos objetos da respectiva teoria. Trata-se de um domínio que, às vezes, se transforma, enquanto a objetidade, como tal, permanece imutável, em suas características básicas. Numa concepção rigorosa, a essência do “objetivo” propicia o fundamento para se predeterminar comportamento e procedimento. Há teoria pura quando um objetivo determina por si mesmo a teoria. Esta determinação provém da objetidade do real vigente. Abandonar esta objetidade equivaleria a negar totalmente a essência da técnica. Tal é o sentido, por exemplo, da frase de que a física de hoje não abole e elimina a física clássica de Newton e Galileu, apenas restringe-lhe o âmbito de validade. Esta restrição confirma também a objetidade decisiva para a teoria da natureza. Segundo ela, a natureza se oferece à representação num sistema de movimento espaço-temporal, de alguma forma, previsível pelo cálculo. (GA7)