Esse é o significado de Prometeu acorrentado, cujo fígado é devorado pela águia de Zeus. Por meio dessa vingança olímpica, uma melancolia primordial, portadora de todos os fantasmas, todas as hipocondrias, todas as misantropias atrabiliárias, precederá como sua possibilidade a comunidade hermenêutica.
Com o fogo que entregou em suas mãos, Prometeu determinou o tipo de alimento que é próprio dos homens mortais. […] Como o fígado imortal do Titã, a fome dos homens perecíveis volta a crescer dia após dia, inalterada, exigindo a constante renovação dos alimentos que os mantêm na forma precária e encurtada de vida que agora é a deles 1.
Como a fome, o frio, o trabalho e as preocupações primordiais retornam todos os dias, para nunca serem mais do que adiados, como o futuro é tão inelutável quanto implacavelmente indeterminado, o fígado devorado pelo dia e repelido pela noite é o relógio de Prometeu 2 — que se tornou a festa do sacrifício — tanto quanto sua provação. É a incessância da {différance} na qual o tempo é constituído por esse único golpe de tecnicidade que é a mortalidade. “Por que o fígado? É o espelho orgânico onde a hermenêutica divinatória é praticada, onde as mensagens divinas são interpretadas em sacrifício. E é Hermes que, em Ésquilo, conta a Prometeu sobre seu tormento. O órgão de todos os humores, dos sentimentos em todas as situações, porque é a sede do “sentimento da situação”, o fígado também é, como um espelho da mortalidade incessante — que nunca acontece — do corpo e do coração, a miragem do espírito ([?Gemüt]). Como um relógio, sua vesícula biliar contém as pedras que secretam a bile negra, [melas kholie->https://speculum.hyperlogos.info/tag/melancolia/].
[STIEGLER, Bernard. La technique et le temps [TT]. Tomes 1-3. Paris: Fayard, 2018 (ebook)]