Sloterdijk (2012:285-289) – amoralismo sistemático de Heidegger

A obra (Ser e Tempo) pressiona o leitor, com uma espécie de convocação patética, a levar uma existência autêntica, mas se omite em seu mutismo diante da questão: como se faz isso? A única resposta, aliás, fundamental, que poderíamos extrair daí deveria ser, decodificada (no sentido acima), a seguinte: de modo (285) consciente. Não se trata mais de uma moral concreta que fornece instruções sobre fazer e deixar fazer. Mas se o filósofo não é capaz de dar diretrizes, ele ainda é capaz de sugerir que se seja autêntico. Assim sendo: podes fazer o que queres, podes fazer o que precisas; mas faze-o de tal modo que possas permanecer intensamente consciente disso que fazes. Amoralismo moral: será essa a última palavra possível da ontologia existencial a respeito da ética? Parece que o ethos de uma vida consciente é o único capaz de se afirmar no meio das correntes niilistas da modernidade, porque no fundo ele não é uma delas. Ele não preenche nem mesmo a função de uma moral de substituição (do gênero das utopias, que colocam o bem no futuro e ajudam a relativizar o mal do caminho). Quem realmente pensa para além de bem e mal encontra uma única oposição importante para a vida, que é ao mesmo tempo a única de que, sem excessos idealistas, podemos dispor a partir do nosso próprio existir: a oposição entre agir consciente e agir inconsciente. Sigmund Freud formulou aquela célebre convocação na sentença: “Onde estava o id, o eu deve vir a ser”. Heidegger diria aqui: onde se encontrava o impessoal, deve advir a autenticidade. A autenticidade seria, interpretada de modo livre, esse estado a que acedemos quando produzimos em nossa existência (Dasein) um continuum da consciência.1 É somente isso que rompe o curso da inconsciência (Unbewusstheit) em que vive a vida humana, sobretudo na medida em que é socializada; a consciência distraída do impessoal está condenada a permanecer descontínua, impulsivo-reativa, automática e não livre. O impessoal é o “ter que” (das Müssen). Em relação a isso, a autenticidade consciente — aceitamos provisoriamente essa expressão — elabora uma qualidade superior de vigília. Ela põe em seu agir todo o vigor de sua decisão e de sua energia. O budismo se refere a isso com expressões comparáveis. Enquanto o Eu-impessoal dorme, a existência (Dasein) do si-mesmo autêntico está desperta para si mesma. Quem explora a si mesmo numa contínua vigília, encontra a partir de sua situação, para além das morais, o que tem a fazer.

A que profundezas chega o amoralismo sistemático de Heidegger, eis o que se mostra em sua reinterpretação do conceito de consciência (Gewissen). Ele constrói, ao mesmo tempo com prudência e de uma maneira revolucionária, uma “consciência sem consciência (Gewissen)”. Se, nos milênios da história europeia da moral, a consciência foi considerada uma instância interior que me diz o que é o bem e o que é o mal, Heidegger a compreende agora como uma consciência vazia, que nada anuncia. “A consciência fala unicamente e constantemente no modo do silenciar.” (Sein und Zeit, p. 273) Uma vez mais aparece a figura de pensamento característica de Heidegger: a intensidade que nada diz. Além de bem e mal, tudo que há é o silêncio “murmurante”, a intensa consciência (Bewusstsein) que não julga e que se limita a ver em estado de vigília “o que é o caso”. A consciência (Gewissen), outrora compreendida como instância moral que prescreve conteúdos, aproxima-se agora do puro ser-consciente (Bewusst-Sein). A moral, enquanto parte de convenções e princípios sociais, apenas concerne ao comportamento do impessoal. Como domínio do si-mesmo autêntico, sobrevive apenas uma consciência (Bewusstsein) resoluta pura: uma presença vibrante.

Numa démarche patética do pensamento, Heidegger descobre que essa “consciência sem consciência (Gewissen)” contém uma convocação a nós — uma “convocação para ser culpado (Schuldigsein)”. Ser culpado de quê? Sem resposta. Será que a vida “autêntica” possui, de algum ponto de vista, uma culpa a priori? Será que a doutrina cristã do pecado original retorna sub-repticiamente aqui? Teríamos assim apenas aparentemente abandonado o moralismo. Mas se o ser-si-mesmo autêntico é descrito enquanto ser-para-a-morte, somos levados a acreditar que essa “convocação para ser culpado” estabelece um liame existencial entre nosso próprio ainda-estar-na-vida e a morte dos outros. Viver enquanto deixar morrer; o autêntico vivente é alguém que se concebe como sobrevivente, como alguém diante de quem a morte acaba de passar, e que concebe como protelação o lapso de tempo até o novo e definitivo encontro com ela. É, portanto, nessa fronteira (287) extrema da reflexão amoral que se move a análise de Heidegger. E sua interrogação deixa claro que ele tem consciência de que se encontra num solo explosivo: “Convocar a ser culpado… não significaria isso uma convocação à maldade?” Poderia haver uma “autenticidade” em que apareceríamos como agentes decididos pelo mal? Do mesmo modo que os fascistas reivindicaram para si o além de bem e mal de Nietzsche para fazer o mal acima de tudo neste mundo? Heidegger recua diante dessa lógica. O amoralismo da “consciência sem consciência (Gewissen)” não é concebido como convocação ao mal, isso é certo. (…)

E Diógenes? Será que a aventura ontológico-existencial valeu a pena para ele? Afinal, sua lanterna encontrou homens? Conseguiu instilar nas mentes a coisa inefavelmente simples? Acho que não está seguro disso. Nosso personagem há de considerar a possibilidade de parar com toda essa história que é o empreendimento filosófico. A filosofia não está à altura da triste complexidade da situação. A estratégia do “cooperar para transformar” enreda o agente transformador na melancolia coletiva. No fim, ele, que era dentre todos o mais vivo, faz-se o mais triste dos homens, e não poderia ser de outro modo. Diógenes renunciará provavelmente um dia à sua cátedra, e então poderemos ler num mural de informes: os cursos do professor X estão cancelados até nova ordem. Corre o boato de que ele teria sido reconhecido no American Shop comprando um saco de dormir. Tê-lo-iam visto pela última vez instalado sobre um contêiner de lixo, consideravelmente embriagado e risonho, como alguém que não anda bem da cabeça.

  1. Esse é um equivalente moderno do “conhece-te a ti mesmo” délfico. Mas o Eu freudiano coincide na verdade com o impessoal. Será o analisado um adaptado, um nivelado?[]