Que significa ‘ser virgem’? (§1)
O título e sua tradução: Tradução problemática do latim para o alemão, por ser relaxada (intravit por “subia” adiciona uma nuance, fora do texto); “Jesus” se torna “Nosso Senhor Jesus Cristo”; o ativo da versão latina, excepit, se torna passivo, “foi recebido”; a menção da domus está omissa da tradução, e de modo errôneo: mulier quaedam, Martha nomine não significa “uma virgem que era mulher” (virgem se refere à mulher ou a Marta?); a equivalência entre “Marta” e “mulher” – mais precisamente “mestra da casa” – pode estar se referindo a exegese tradicional; nos sermões de Eckhart a aproximação entre nomes bíblicos e conceitos filosóficos são frequentes (segundo Eckhart: em interpretando a Escritura importa sempre fazer eclodir o sentido oculto sob a letra” (Prólogo do Liber porabolarum Genesis).
As articulações dos argumentos do sermão se dão por fórmulas oratórias ou interpelações, que definem os passos seguido por Eckhart em sua exegese. Por exemplo: “Agora então, prestem bastante atenção a esta palavra…”, ou algo do gênero.
“‘Virgem’ designa alguém liberado de todas as imagens, tão franco se foi quando ainda não era”. Esta interpretação apela a uma tradição filosófica, a uma teoria da “impressão” que uma representação põe sobre o intelecto (noûs).
A recepção de Jesus por uma “virgem” pode se comparar a de uma imagem no intelecto: se quer recebê-la, o intelecto deve necessariamente estar vazio da determinação que ela aporta: entbildet. Quando a imagem entra em ti, Deus deve ceder com toda sua divindade; pertences então às imagens, e não mais a Deus. O homem maduro “sabe muitas coisas, e tudo isto são imagens”. Eis porque o intelecto deve estar inteiramente vazio, pura receptividade, para acolher Jesus por inteiro. Eis o que significa “ser virgem”.
O homem por quem Jesus quer ser recebido deve se tornar livre de toda representação “que seja então como não era”. Antes que eu fosse, antes de meu nascimento na terra, eu existia segundo um modo antes do mundo. Eu ainda não era este ser que conhece as coisas por meio de representações e de fantasmas: eu era inteiramente livre de toda imagem retirada do mundo, pois do mundo, eu dele nada tinha. Nesta existência originária, quando eu era e no entanto ainda não era, nenhuma necessidade me ligava ao conhecimento das coisas sensíveis pelas representações retiradas do sensível: nenhuma imagem em mim estava. A totalidade das coisas não me era estranha como o são as representações, pois tudo se mantinha em mim enquanto uma “ideia”. Nesta preexistência, cada ideia está igualmente próxima de todas as outras; graças a sua possessão simultânea, eu era inteiramente “franco”, ledic, “virgem” de todas as imagens.
Quem queira receber Jesus deve se liberar de todas as imagens exteriores e se tornar tão livre quanto era antes de vir ao mundo.
Eckhart não se atarda aqui sobre esta existência eterna do homem antes de sua vinda ao mundo; traça ao invés o caminho que convida ao engajamento: uma via de liberação e de recuperação da liberdade originária, eis o que importa; toda a continuação do sermão é uma retomada incansável desta solicitação ao caminho aberto para a existência.
O parágrafo inicial é também uma alusão à Virgem Maria (Theotokos): o termo empregado por Eckhart, enpfangen significa “receber” e “conceber”, mas sendo este último sentido secundário. O tema central desta concepção, de influência augustiniana, é que as criaturas preexistem por todo eternidade em Deus, em seu ser ideal. Concepção cara a Platão (vide o diálogo “Menon”), passada pelos primeiros padres cristãos , em particular Orígenes enquanto doutrina da “preexistência da alma” (psyche).
A teoria das imagens no intelecto, em Eckhart, é devida à Aristóteles em seu tratado da alma, tendo sido desenvolvida por Tomás de Aquino. Assim a conexão necessária, segundo Eckhart, entre a virgindade e a recepção de Jesus no homem é fundada na filosofia aristotélica do “intelecto receptivo”.
Um novo comércio com as coisas (§§2-3)
O desapego ou a “não identificação” (segundo) e (terceiro) parágrafos do SERMÃO II de Eckhart (43).
O termo-chave do (segundo parágrafo) é eigenschaft, apego, podendo significar também propriedade. Se apegar às imagens, como a uma propriedade, deixa o espírito estupefato e cria obstáculo à recepção.
Logo a oratória de Eckhart faz lembrar o “Hino à caridade” (agape; 1Co 13:1-13) em São Paulo, levando de imediato a seu ponto principal: eis quão grande deve ser o Desapego daquele que quer ser livre e liberado como era em sua preexistência e como é em seu intelecto (nous). Qualquer que seja minha ciência, posso me tornar “virgem”, pois todo meu saber não impediria a acolhida de Jesus em mim senão na medida que possua esta ciência com avidez. O apego fere a liberdade. Vê-se: o que cria obstáculo ao espírito e se opõe à virgindade espiritual, não são as representações como tais, mas o apego às representações.
Uma única coisa importa: relaxar a empresa exercida sobre as coisas, e se despossuir. Deixar aí todo apego e receber em troca a Serenidade — atingida isto serei livre como era quando não era. A via de Mestre Eckhart é a via do Desapego.
Esse mesmo parágrafo estabeleceu um elo entre o que Eckhart chama o apego, e a temporalidade. O homem apegado às coisas está disposto entre um antes e um depois, habita a duração, enquanto que o desapego é uma questão de «este atual agora» (que dizem “gegenwertigen nû”). O homem desapegado habita o instante. Depois é uma questão de «o que faço ou não faço», isto é das obras. As obras são colocadas em paralelo com as representações intelectuais: para umas e para outras pode-se considerar como a uma propriedade. Ter uma cultura, empreender obras: uma e outra fazem obstáculo tanto quanto esta cultura e essas obras são adquiridas ou executadas na duração, isto é projetadas, realizadas, possuídas. O «antes» de uma obra é seu projeto (mais adiante se encontrará a expressão «obras premeditadas»), o «depois», sua recompensa. Projeto e recompensa são marcas de propriedade e não podem ser conformes à «vontade muito amada de Deus». A duração é o modo de temporalidade correspondente ao apego.
A temporalidade do desapego, o instante, aniquila o projeto tanto quanto a recompensa. Não é senão ele próprio. Qualquer que seja minha ciência e quaisquer que sejam minhas obras, se nesse instante atual onde me entrego eu disponho como se não dispusesse disso, se sou livre e acessível à seu olhar como se estivesse na origem, então sou verdadeiramente desapegado. É em «esse agora» sempre novo que sobrevém e se verifica o desprendimento.