Digamo-lo de vez numa afirmação: para Michel Henry, o êthos da Ética é a Vida enquanto poder de se auto-experienciar e de se auto-revelar. Tal é o seu lugar ontológico (”le site ontologique”), a sua morada originária. Falamos, porém, não do eidos (ideia) da vida, mas da vida real, concreta e invisível de todos viventes, que não recebe injunções exteriores, à maneira de leis positivas, regras, normas, códigos, etc. Falar de Vida ética é, assim, uma redundância, porque a Vida é ética e o êthos é a Vida, num enlace patético primordial.
E para que a destempo não se pense que M. Henry envereda por qualquer vitalismo romântico ou irracional – orientação que, justamente, critica na vontade em Schopenhauer e no ludus vitae de Nietzsche: apesar da importância que deram à vida, erraram absolutamente ao afirmarem-na impulso cego, absurdo e sem sentido, i.e., desconheceram radicalmente a natureza da Vida e o seu pathos originário -, apresentemos um exemplo do próprio autor, para que, a partir destes poderes primordiais da carne, cheguemos à auto-revelação da Vida.
Propõe M. Henry:
“Pensemos num estudante de Biologia que está para ler uma obra sobre o código genético. A leitura da obra é a repetição, por um acto da própria consciência, dos processos complexos de conceptualização e de teorização contidos no livro, quer dizer, significados pelos caracteres impressos. Mas à medida que lê e para que a sua leitura seja possível, o estudante vira as páginas do livro com as mãos, move os olhos para percorrer e de juntar em si as linhas do texto, umas a seguir às outras. Quando estiver cansado pelo esforço intelectual, o estudante levantar-se-á, deixará a biblioteca, descerá por uma escada para ir ao bar descansar um pouco, comer e beber alguma coisa. O saber contido na obra de biologia e que o estudante assimilou ao longo da leitura, é o saber científico. A própria leitura da obra é a execução de um saber da consciência: a intuição das palavras, a captação dos significados que elas têm. O saber que tomou possível o movimento das mãos, o dos olhos, o acto de se levantar, de descer a escada, de beber e de comer, o próprio repouso, é o saber da Vida.”1
Encontramos neste exemplo de M. Henry, três tipos de saberes: os científicos e objectivos; os da consciência e os saberes imediatos da Vida. Estes últimos, de costume, permanecem saberes e poderes esquecidos, despercebidos, no anonimato – é sobretudo quando nos faltam que nos apercebemos de como são primordiais. Se perguntarmos a alguém qual dos três saberes considera mais importante, é provável que, eivado de ideologia positivista, responda que é o da Biologia, sem referir sequer o da consciência que o possibilita e muito menos o da Vida. Até certo ponto, é compreensível este esquecimento, visto a “vida não ter nenhum objecto, pois a sua essência não é de relação com um objecto.” A vida é auto-revelação e auto-afectividade: junta, junge, unifica; não separa, não objectiva, não põe à distância para ver num horizonte de luz. “Se o saber presente no movimento de mexer as mãos, e que o toma possível, tivesse (que ter) um objecto (…) tal movimento jamais se produziría,”2 Porque o je peux presente em todos os poderes humanos3 a começar pelos mais humildes e imediatos, ligados à sensibilidade e à carne sensível e senciente, só é possível na imanência absoluta da subjectividade, quer dizer, na Fenomenalidade pura da Vida, que a si mesma se experiência, se frui e se padece, qual ontológica e primordial paciência de ser. É neste sentido que a Vida é um pathos originário: “Cet accroissement de la vie (…) est bien un pathos, un s’éprouver soi-même”, e isto é “quelque chose qu’elle subit constament dans un subir plus fort que sa liberté”4.
É, pois, na auto-revelação da Vida absoluta, como doação passiva para si mesma, que também cada Soi-même é dado e vem a ser, não apenas como eu transcendental, mas como vivente, singular, concreto, nas suas moções mais secretas e humildes e em todos os seus poderes. Não é, portanto, a vida ideal, noemática, essência abstracta, mas a vida concreta dos viventes (o Pedro, a Ivete) a começar pelos poderes mais experienciais e basilares do homem, ligados aos poderes do corpo vivido, i.e., da carne. Poderes mínimos, que são nossos num poder que nos é anterior. As modalidades subjectivas mais imediatas para nós desta passividade são o sentir-se a sentir, o ver-se a ver (videre videor) o padecer-se (de pathos), ser para si mesmo uma doação originária que, depois, todas as outras modalidades da nossa subjectividade assumem: a alegria, o prazer, o medo, a dor, a satisfação, a tristeza e assim por diante. (O ‘ethos’ da Ética, p. 10-13)
- Michel HENRY, “Question de la vie et de la culture…”, pp. 17-18.[↩]
- Michel HENRY, “Question de la vie et de la culture…”, p. 18.[↩]
- Cf. as várias dimensões deste je peux em Paul Ricoeur, Soi-même comme un autre, Paris, Éditions du Seuil, 1990.[↩]
- Michel HENRY, “Question de la vie et de la culture…”, p. 21; Cf. igualmente Michel Henry, ’épreuve de la vie (Actes du Colloque de Cerisy 1996, sous la dir. d’Alain David et de Jean Greisch), Paris, Cerf, 2001.[↩]