(…) A República de Platão retrata uma opção fundamental que aguarda todo o ser humano na entrada da idade adulta, colocando-o, como Hércules, numa encruzilhada: a escolha entre uma vida de verdade e uma vida de mentira (apate) e esquecimento de si — sendo a palavra alethes, ‘verdadeiro’, formada por um alfa privativo e o radical ‘lethe’ significando, entre outras coisas, ‘esquecimento’. Provavelmente inspirada por uma imagem semelhante encontrada na tradição pitagórica, que também contrasta dois caminhos, um à esquerda, que é o do prazer (hedone), do vício e do esquecimento, e outro à direita, que é o do esforço e da dor (ponos) e, portanto, também da preocupação (melete) consigo mesmo , a imagem platônica já liga estreitamente a questão da preocupação consigo mesmo à da preocupação com a verdade: uma vida de verdade é uma vida em que cuidamos de nós próprios e não nos esquecemos de nós próprios. A verdade não é apenas uma questão de discurso, é também uma questão de vida. E quando Sócrates, no decurso do seu processo, censura os cidadãos de Atenas, não os critica apenas por não cuidarem das suas almas (psyche) e preferirem cuidar dos seus negócios ou das suas fortunas; critica-os por não cuidarem da verdade, da sua verdade, da verdade dos seres que eles próprios são: “Mas e os teus pensamentos, a tua verdade (aletheia), a tua alma, que precisa de ser melhorada, não pensas nela, não te preocupas com ela ? ” A verdade não diz respeito apenas a questões impessoais; diz respeito aos aspectos mais pessoais da própria vida. É por isso que, como diria Aristóteles, não existem apenas palavras falsas, mas também homens falsos.
Être soi-même: une autre histoire de la philosophie. Paris: Gallimard, 2018