Romano (1999:28-29) – ser-para-morte

Toda a analítica do ser-para-a-morte, de fato, repousa na afirmação de que somente uma compreensão que desconsidera a Eigentlichkeit fundamental da morte propriamente dita, da morte como minha morte, pode converter essa possível impossibilidade de ser, propriamente dita, que ainda é uma maneira de ser propriamente seu ser, em um mero “fato certo (gewissen Tatsache)” [SZ:258] de uma “certeza empírica”, ou em um mero “acontecimento que ocorre no mundo circundante (umweltlich begegnendes Ereignis)” [SZ:257]. Ao mesmo tempo — uma consequência raramente notada — o acontecimento é sempre entendido por Heidegger em Sein und Zeit no sentido de um fato intramundano, cujo modo de ser é a subsistência (Vorhandenheit) 1. Assim, somente uma compreensão inadequada do Dasein torna possível nivelar o morrer, originalmente revelado pela angústia, e perverter seu significado ao compreendê-lo como “um acontecimento que ocorre publicamente (ein öffentlich vorkommendes Ereignis)” [SZ:253]. Em tal acontecimento, o próprio Dasein não está mais em jogo em sua ipseidade; a morte, convertida em falecimento, torna-se um simples fato, um incidente ou um acidente, que não provoca mais angústia, mas medo: “O Impessoal (das Man) toma conta de inverter esta angústia em medo do acontecimento que ocorre (Furcht vor einem ankommenden Ereignis)” [SZ:254]; mas esse medo em si é uma fuga e uma esquiva, uma insciência preocupada (besorgen Sorglosigkeit) (Ibid.) que só vem à tona porque o Dasein inapto não tem mais o coração ou a coragem (Mut) para se angustiar. Essa morte que aguardo e pela qual anseio como se fosse um acontecimento no mundo nada mais é, portanto, do que a recuperação de meu poder-morrer, como uma possibilidade irresolúvel e inalienável de meu ser. “A morte é cada vez apenas como sua própria” — e Heidegger enfatiza o “é” aqui: essa é, de fato, a última palavra de uma ontologia da morte [SZ:265]. Até esse ponto, a morte, o acontecimento de uma morte esperada, a crônica de uma morte anunciada, é necessariamente fundada no morrer, na cronologia de uma morte antecipada.

[ROMANO, Claude. L’événement et le monde. Paris: PUF, 1999]
  1. Cf. também nossos dois artigos: “Le possible et l’événement”, em Philosophie, n° 40, dez. 1993, p. 68-93 (primeira parte) e n° 41, março 1994, p. 60-86 (segunda parte), e “Mourir à autrui”, em Critique, n° 582, nov. 1995, p. 803-824[]