A este apelo (da consciência) o que responde o Dasein? O apelo, dissemos, procura retirar este último da sua dispersão no Nós (das Man) e reuni-lo numa totalidade articulada. Ele não diz nada, não dá qualquer acontecimento a conhecer: ele apenas desvela ao Dasein o seu poder-ser fundamental. É por isso que não temos de nos interrogar sobre o que o apelo «diz». Basta constatar que ele «acusa»; «o apelo acusa o Dasein de estar em falta»1. Que há «falta» (Schuld), todas as doutrinas morais o testemunham. Mas elas deixaram na obscuridade o seu sentido ontológico. Ora, para Heidegger, a falta não é uma noção moral, mas um «conceito Existencial» constitutivo do ser do Dasein·, «…de onde tiraremos o critério do sentido Existencial originário da falta? Do facto do “em. falta ” surgir como predicado do “eu estou ”».
O que significa a «culpabilidade» no sentido ontológico, enquanto modo de ser do Dasein? Um exame fenomenológico impõe-se, se quisermos encontrar uma resposta. E impõe-se tanto mais quanto o pensamento quotidiano tende a encobrir o sentido da falta. Estar em falta significa para este estar em dívida 2. É ser devedor, ter uma dívida para com alguém, ou pedir por empréstimo, receptar, roubar… Neste caso, a falta é sempre entendida em relação a outrem que eu privo dum bem. Ela não tem ainda o sentido ontológico que a liga ao ser próprio do Dasein e não ao ser de outrem. Ora, a nossa questão é o que é «ser» culpado? «É preciso», repete Heidegger, «que a questão verse antes de mais fundamentalmente sobre o ser culpado do Dasein, para que a ideia de culpa seja compreendida a partir do gênero de ser do Dasein.»
A origem da culpabilidade deve estar no Dasein. Com efeito, a culpa provoca uma carência. Mas esta carência não é a carência dum objeto de que outrem é privado por minha culpa: ela diz respeito ao próprio sujeito. É o Dasein que está em falta. Por conseguinte, a falta não tem uma causa exterior: ela tem a sua origem no culpado. A sua origem deve ser compreendida de tal forma que, quando eu cometo uma falta, possa declarar que a culpa não é minha, a culpa é da culpa! Esta toma uma dimensão exclusivamente ontológica. O culpado é o ser, o seu crime é ek-sistir. «Tudo isto resume-se ao seguinte: o estar-em falta não resulta antes de mais duma falta cometida, é pelo contrário esta que apenas se toma possível com base num estar em falta originário.»
(…)
Podemos ver, agora, que não são faltas pessoais concretas do Dasein que estão na origem da sua culpabilidade fundamental, é esta que é a sua origem. Ora, o que há na origem do Dasein? Há o estar lançado, a projeção, a decadência. Há o facto de estar lançado aí, no mundo, sem o ter querido. Estas características não são acidentais: elas fazem parte do ser do Dasein e acompanham-no enquanto ele ek-siste. O Dasein não é senhor do seu ser, ele escapa-lhe constantemente. Uma fatalidade inultrapassável pesa desde sempre sobre ele: a de ek-sistir, de sair de si e de cair no nada. Eis a falta: ek-sistir. Não se trata dum mal moral, mas duma infelicidade Existencial: «A estrutura do estar lançado, tal como a da projeção, comporta essencialmente uma nulidade. E é ela que está na origem da possibilidade da nulidade do Dasein inautêntico na sua decadência, tal como ele é já a cada instante facticamente. O cuidado está ele próprio na sua essência totalmente impregnado de nulidade. O cuidado — o ser do Dasein — significa, assim, enquanto projeção lançada: o ser fundamento (nulo) duma nulidade. O que indica que o DASEIN ESTÁ COMO TAL EM FALTA…». Do mesmo modo, a seguir: «Um ente cujo ser é cuidado não pode apenas ser culpado de falta fáctica, pelo contrário, ele está, no fundamento do seu ser, em falta…». (p. 138-141)
- Schuldigsein é traduzido por ser culpado ou estar em falta (N. R.)[↩]
- Aqui, Heidegger joga com o duplo sentido da palavra Schuld.[↩]