português
Trata-se do seguinte: falam os homens hoje, a toda hora, da lei e do direito, do estado, da nação e do internacional, da opinião pública e do poder público, da política boa e da má, de pacifismo e belicismo, da pátria e da humanidade, de justiça e injustiça social, de coletivismo e capitalismo, de socialização e de liberalismo, de autoritarismo, de indivíduo e de coletividade, etc., etc. E não somente falam no jornal, na tertúlia, no café, na taberna, mas, além de falar, discutem. E não só discutem, mas também combatem pelas coisas que esses vocábulos designam. E, no combate, acontece que os homens chegam a matar-se uns aos outros, às centenas, aos milhares, aos milhões. Seria inocência supor que, no que acabo de dizer, há alusão particular a qualquer povo determinado. Seria inocência, porque semelhante suposição equivaleria a crer que essas tarefas truculentas ficam confinadas a territórios especiais do planeta, quando são, muito mais, um fenômeno universal e de extensão progressiva, do qual serão muito poucos os povos europeus e americanos que conseguem ficar isentos por completo. Sem dúvida, a feroz contenda será mais grave em uns do que em outros e pode ser que algum conte com a genial serenidade necessária para reduzir ao mínimo o estrago. Porque este, certamente não é inevitável, mas em verdade muito difícil de evitar-se (51). Muito difícil porque, para sua evitação, teriam de juntar-se muitos fatores em colaboração, fatores de qualidade e classe diversas, magníficas virtudes junto a humildes precauções.
Uma dessas precauções, humilde, — repito, — porém imprescindível, se se quer que um povo atravesse indene estes tempos atrozes, consiste em conseguir que um número suficiente de pessoas desse povo perceba até que ponto todas essas ideias, — chamemo-las assim, — em torno das quais se fala, se combate, se discute e se trucida, são grotescamente confusas e superlativamente vagas.
Fala-se, fala-se de todas essas questões, mas o que se diz sobre elas carece da clareza mínima, sem a qual a operação de falar acaba sendo nociva. Porque falar traz sempre algumas consequências e, como dos citados temas se tem falado muito, — há anos quase não se fala, nem se deixa falar de outra coisa, — as consequências dessa loquacidade são, evidentemente, graves.
Uma das maiores desgraças do tempo é a aguda incongruência entre a importância que têm no presente todas essas questões e a rudeza e confusão dos conceitos sobre as mesmas, que esses vocábulos representam.
Note-se que todas essas ideias, — lei, direito, estado, internacionalidade, coletividade, autoridade, liberdade, justiça social, etc., — quando já não o ostentam em sua expressão, implicam sempre, como seu ingrediente essencial, a ideia do social, de sociedade. Se esta não está clara, todas essas palavras não significam o que pretendem e são meros espaventos. Ora, — confessemo-lo ou não, — todos, em nosso fundo insubornável, temos a consciência de não possuir, sobre essas questões, senão noções errantes, imprecisas, néscias ou turvas. E, desgraçadamente, a rudeza e confusão a respeito de tal matéria não existe somente no vulgo, mas também nos homens de ciência, até o ponto de que não é possível dirigir-se o profano a nenhuma publicação onde possa, de verdade, retificar e polir seus conceitos sociológicos. (52)
Não esquecerei jamais a surpresa, pintada de vergonha e de escândalo, que senti quando, faz muitos anos, consciente de minha ignorância sobre este tema, acudi cheio de ilusão, soltas todas as velas da esperança, aos livros de sociologia, e me encontrei com uma coisa incrível, a saber, que os livros de sociologia não nos dizem nada claro sobre o que é o social, sobre o que seja a sociedade. Mais ainda: não somente não conseguem dar-nos uma noção precisa do que é o social, do que é a sociedade, como ainda, ao ler esses livros, descobrimos que seus autores, — os senhores sociólogos, — nem sequer tentaram, um pouco a sério, pôr-se eles mesmos em claro sobre os fenômenos elementares em que consiste o fato social. Inclusive em trabalhos que, pelo seu título, parecem enunciar que se vão ocupar a fundo do assunto, logo vemos que o eludem, — diríamos, — com plena consciência. Passam sobre esses fenômenos, — repito: preliminares e inevitáveis, — como sobre brasas e, salvo alguma exceção, essa mesma, sumamente parcial — como Durkheim, vemo-los lançar-se com invejável audácia a opinar sobre os temas mais terrivelmente concretos da convivência humana.
Eu não posso, é claro, demonstrar isso agora, porque tal intento ocuparia muito, do escasso tempo que temos a nossa disposição. Baste-me fazer esta simples observação estatística que me parece ser o cúmulo.
Primeiro: as obras nas quais Augusto Comte inicia a ciência sociológica sobem a mais de cinco mil páginas com letra bem apertada. Pois bem: entre todas elas, não encontraremos linhas bastantes para encher uma página e que tratem de dizer-nos o que Augusto Comte entende por Sociedade.
Segundo: o livro em que essa ciência ou pseudociência celebra o seu primeiro triunfo sobre o horizonte intelectual, — os “Princípios de Sociologia”, de Spencer, publicados entre 1876 e 1896, — não contará menos de duas mil e quinhentas páginas. Não creio que cheguem a cinquenta as linhas dedicadas (53) a perguntar-se o autor que coisas sejam essas estranhas realidades, as sociedades, de que a obesa publicação se ocupa.
Enfim, há poucos anos apareceu o livro de Bergson, — no mais, encantador — intitulado “As Duas Fontes da Moral e da Religião”. Sob este título hidráulico, que por si mesmo é já uma paisagem, se oculta um tratado de sociologia, em que não existe uma única linha em que o autor nos diga formalmente que são essas sociedades sobre as quais especula. Saímos de sua leitura, isso, sim, como de uma selva, cobertos de formigas e envoltos nos voos palpitantes das abelhas, porque tudo que faz o autor, para esclarecer-nos sobre a estranha realidade das sociedades humanas, é referir-se ao formigueiro e à colmeia, às presumidas sociedades animais, das quais, — certamente, — sabemos menos do que da nossa.
Isso não quer dizer, nem muito menos, que nessas obras, como em algumas outras, faltem entrevisões, às vezes geniais, de certos problemas sociológicos. Carecendo, porém, de evidência, no elementar, esses acertos permanecem secretos e herméticos, inatingíveis, para o leitor normal. Para aproveitá-los, teríamos de fazer o que os seus autores não fizeram: tentar trazer à luz esses fenômenos preliminares e elementares, esforçar-nos denodadamente, sem escusas, em precisar o que é o social, o que é a sociedade. Porque esses autores não o fizeram, chegam como cegos geniais a apalpar certas realidades, — eu diria: a tropeçar nelas, — mas não conseguem vê-las e, muito menos, esclarecê-las para nós. De modo que nosso trato com eles vem a ser o diálogo do cego com o entrevado: ……
Como anda você, bom homem? — pergunta o cego ao entrevado.
E este responde ao cego:
Como vê, amigo…
Se isso acontece com os mestres do pensamento sociológico, mal pode estranhar-nos que as gentes, na praça pública, vociferem em torno dessas questões. Quando os homens não têm nada claro a dizer sobre uma coisa, em vez de calar-se, costumam (54) fazer o contrário: dizem em superlativo, isto é, gritam. E o grito é o preâmbulo sonoro da agressão, do combate, da matança. Dove si grida non è vera scienza — dizia Leonardo. Onde se grita não há bom conhecimento.
Eis aí como a inépcia da sociologia, enchendo de ideias confusas as cabeças, chegou a converter-se em uma das pragas do nosso tempo. Com efeito, a sociologia não está à altura dos tempos; por isso, os tempos, mal sustentados em sua altitude, caem e se precipitam.
Se isso é assim, não lhes parece que seria uma das melhores maneiras de não perder por completo o tempo que vamos passar juntos, dedicar-nos a esclarecer um pouco o que é o social, o que é a sociedade? Muitos sabem bem pouco ou sabem nada do assunto. Por que não juntar nossas ignorâncias? Por que não formar uma sociedade anônima, com um bom capital de ignorância, e lançarmo-nos à empresa, sem pedantismo ou com a menor dose possível, mas com vivo afã de ver claro, com alegria intelectual, — uma virtude que começava a perder-se na Europa, — com essa alegria que suscita em nós a esperança de que subitamente vamos encher-nos de evidências?
Partamos, pois, mais uma vez, à procura de ideias claras. Isto é: de verdades.
Señoras, señores:
SE trata de lo siguiente: Hablan los hombres hoy, a toda hora, de la ley y del derecho, del Estado, de la nación y de lo internacional, de la opinión pública y del Poder público, de la política buena y de la mala, de pacifismo y belicismo, de la patria y de la humanidad, de justicia e injusticia social, de colectivismo y capitalismo, de socialización y de liberalismo, de autoritarismo, de individuo y colectividad, etc., etc. Y no solamente hablan en el periódico, en la tertulia, en el café, en la taberna, sino que, además de hablar, discuten. Y no sólo discuten, sino que combaten por las cosas que esos vocablos designan. Y en el combate acontece que los hombres llegan a matarse, los unos a los otros, a centenares, a miles, a millones. Sería una inocencia suponer que en lo que acabo de decir hay alusión particular a ningún pueblo determinado. Sería una inocencia, porque tal suposición equivaldría a creer que esas faenas truculentas quedan confinadas en territorios especiales del planeta, cuando son, más bien, un fenómeno universal y de extensión progresiva, del cual serán muy pocos los pueblos europeos y americanos que logren quedar por completo exentos. Sin duda, la feroz contienda será más grave en unos que en otros y puede que alguno cuente con la genial serenidad necesaria para reducir al mínimo el estrago. Porque éste, ciertamente, no es inevitable; pero sí es muy difícil de evitar. Muy difícil, porque para su evitación tendrían que juntarse en colaboración muchos factores de calidad y rango diversos, magníficas virtudes junto a humildes precauciones.
(Agradeceré a ustedes, en el caso de que, no obstante la complicidad de este amplificador, mi voz —las cenizas de mi voz— no alcance a todos los lugares de estas salas, que me lo adviertan enérgicamente. Nada me será más grato. Pues sé muy bien que, si escuchar una conferencia es ya de suyo una operación heroica, escucharla sin oírla es el único tormento que Dante olvidó, tal vez porque le pareció excesivo).
Una de esas precauciones, humilde —repito— pero imprescindible, si se quiere que un pueblo atraviese indemne estos tiempos atroces, consiste en lograr que un número suficiente de personas en él se den bien cuenta de hasta qué punto todas esas ideas —llamémoslas así—, todas esas ideas en tomo a las cuales se habla, se combate, se discute y se trucida, son grotescamente confusas y superlativamente vagas.
Se habla, se habla de todas esas cuestiones, pero lo que sobre ellas se dice carece de la claridad mínima, sin la cual la operación de hablar resulta nociva. Porque hablar trae siempre algunas consecuencias, y como de los susodichos temas se ha dado en hablar mucho —desde hace años, casi no se habla ni se deja hablar de otra cosa—, las consecuencias de esas habladurías son, evidentemente, graves.
Una de las desdichas mayores del tiempo es la aguda incongruencia entre la importancia que al presente tienen todas esas cuestiones y la tosquedad y confusión de los conceptos sobre las mismas que esos vocablos representan.
Noten ustedes que todas esas ideas —ley, derecho, Estado, internacionalidad, colectividad, autoridad, libertad, justicia social, etc.—, cuando no lo ostentan ya en su expresión, implican siempre, como su ingrediente esencial, la idea de lo social, de sociedad. Si ésta no está clara, todas esas palabras no significan lo que pretenden y son meros aspavientos. Ahora bien; confesémoslo o no, todos, en nuestro fondo insobornable, tenemos la conciencia de no poseer, sobre esas cuestiones, sino nociones vagarosas, imprecisas, necias o turbias. Pues, por desgracia, la tosquedad y confusión respecto a materia tal, no existe sólo en el vulgo, sino también en los hombres de ciencia, hasta el punto de que no es posible dirigir al profano hacia ninguna publicación donde pueda, de verdad, rectificar y pulir sus conceptos sociológicos.
No olvidaré nunca la sorpresa teñida de vergüenza y de escándalo que sentí cuando, hace muchos años, consciente de mi ignorancia sobre este tema, acudí lleno de ilusión, desplegadas todas las velas de la esperanza, a los libros de sociología, y me encontré con una cosa increíble, a saber: que los libros de sociología no nos dicen nada claro sobre qué es lo social, sobre qué es la sociedad. Más aún: no sólo no logran darnos una noción precisa de qué es lo social, de qué es la sociedad, sino que, al leer esos libros, descubrimos que sus autores —los señores sociólogos— ni siquiera han intentado un poco en serio ponerse ellos mismos en claro sobre los fenómenos elementales en que el hecho social consiste. Inclusive, en trabajos que por su título parecen enunciar que van a ocuparse a fondo del asunto, vemos luego que lo eluden —diríamos concienzudamente. Pasan sobre esos fenómenos —repito, preliminares e inexcusables— como sobre ascuas; y, salvo alguna excepción, aun ella sumamente parcial —como Durkheim—, les vemos lanzarse con envidiable audacia a opinar sobre los temas más terriblemente concretos de la humana convivencia.
Yo no puedo, claro está, demostrar ahora a ustedes esto, porque intento tal consumiría mucho tiempo del escaso que tenemos a nuestra disposición. Básteme hacer esta simple observación estadística que parece ser un colmo.
Primero: Las obras en las cuales Augusto Comte inicia la ciencia sociológica suman por valor de más de cinco mil páginas con letra bien apretada. Pues bien: entre todas ellas no encontraremos líneas bastantes para llenar una página que se ocupen de decirnos lo que Augusto Comte entiende por Sociedad.
Segundo: El libro en que esta ciencia o pseudociencia celebra su primer triunfo sobre el horizonte intelectual —los Principios de sociología, de Spencer, publicados entre 1876 y 1896—, no contará menos de 2500 páginas. No creo que lleguen a cincuenta las líneas dedicadas a preguntarse el autor qué cosa sean esas extrañas realidades, las sociedades, de que la obesa publicación se ocupa.
En fin: hace pocos años ha aparecido el libro de Bergson —por lo demás, encantador—, titulado Las dos fuentes de la moral y la religión. Bajo este título hidráulico, que por sí mismo es ya un paisaje, se esconde un tratado de sociología de 350 páginas, donde no hay una sola línea en que el autor nos diga formalmente qué son esas sociedades sobre las cuales especula. Salimos de su lectura, eso sí, como de una selva, cubiertos de hormigas y envueltos en el vuelo estremecido de las abejas, porque el autor, todo lo que hace para esclarecernos sobre la extraña realidad de las sociedades humanas es referirnos al hormiguero y a la colmena, a las presuntas sociedades animales, de las cuales —por supuesto— sabemos menos que de la nuestra.
No es esto decir, ni mucho menos, que en estas obras como en algunas otras falten entrevisiones, a veces geniales, de ciertos problemas sociológicos. Pero, careciendo de evidencia en lo elemental, esos aciertos quedan secretos y herméticos, inasequibles para el lector normal. Para aprovecharlos, tendríamos que hacer lo que sus autores no hicieron: intentar traer bien a luz esos fenómenos preliminares y elementales, esforzarnos denodadamente, sin excusa, en precisarnos qué es lo social, qué es la sociedad. Porque sus autores no lo hicieron, llegan como ciegos geniales a palpar ciertas realidades —yo diría, a tropezar con ellas—; pero no logran verlas, y mucho menos esclarecérnoslas. De modo que nuestro trato con ellos viene a ser el diálogo del ciego con el tullido:
—¿Cómo anda usted, buen hombre? —pregunta el ciego al tullido. Y el tullido responde al ciego:
—Como usted ve, amigo…
Si esto pasa con los maestros del pensamiento sociológico, mal puede extrañarnos que las gentes en la plaza pública vociferen en torno a estas cuestiones. Cuando los hombres no tienen nada claro que decir sobre una cosa, en vez de callarse suelen hacer lo contrario: dicen en superlativo, esto es, gritan. Y el grito es el preámbulo sonoro de la agresión, del combate, de la matanza. Dove si grida non è vera scienza —decía Leonardo. Donde se grita no hay buen conocimiento.
He aquí cómo la ineptitud de la sociología, llenando las cabezas de ideas confusas, ha llegado a convertirse en una de las plagas de nuestro tiempo. La sociología, en efecto, no está a la altura de los tiempos, y, por eso, los tiempos, mal sostenidos en su altitud, caen y se precipitan.
Si esto es así, ¿no les parece a ustedes que sería una de las mejores maneras de no perder por completo el tiempo durante estos ratos que vamos a pasar juntos, dedicamos a aclararnos un poco qué es lo social, qué es la sociedad? Ustedes —por lo menos, muchos de entre ustedes— saben muy poco o no saben nada del asunto. Yo, por mi parte, no estoy seguro de que no me acontezca lo mismo. ¿Por qué no juntar nuestras ignorancias? ¿Por qué no formar una sociedad anónima, con un buen capital de ignorancia, y lanzarnos a la empresa, sin pedantería o con la menor dosis de ella posible, pero con vivo afán de ver claro, con alegría intelectual —una virtud que empezaba a perderse en Europa—, con esa alegría que suscita en nosotros la esperanza de que súbitamente vamos a llenarnos de evidencias?
Partamos, pues, una vez más, en busca de ideas claras. Es decir, de verdades.