Nietzsche (VP:676): SOBRE A PROVENIÊNCIA DE NOSSAS APRECIAÇÕES DE VALOR

Podemos dissecar espacialmente o nosso corpo, e então obtemos dele uma representação que é em tudo idêntica à do sistema estelar, e a diferença entre orgânico e inorgânico não salta mais aos olhos.

Outrora se explicava o movimento das estrelas como efeitos de seres (Wesen) que tinham uma consciência final: não se necessita mais disso, e, desde há muito, nem em relação ao movimento do copo, quando ele se modifica, se crê mais que basta uma consciência que estabelece fim. A maior quantidade dos movimentos não tem nada a ver com consciência: nem com (341) sensação. Sensações e pensamentos são algo extremamente pequeno e raro em relação ao inúmero acontecer em cada momento. Ao contrário, percebemos que uma finalidade domina os menores acontecimentos, dos quais o nosso melhor saber não está à altura, um cuidado, uma seleção, uma reunião, um restabelecimento etc. Em resumo, encontramos uma atividade que se deveria atribuir a um intelecto imensamente mais elevado e supervisor do que aquele de que temos consciência. Aprendemos a pensar menor em relação a todo consciente: desaprendemos a nos fazer responsáveis por nosso ser-próprio (Selbst), pois nós, como seres (Wesen) conscientes que estabelecem fins, somos somente a menor parte. Das numerosas influências em cada momento, por exemplo: ar, eletricidade, não sentimos quase nada: podería haver bastantes forças que nos influenciassem constantemente e que, não obstante, jamais nos chegassem à sensação. Prazer e dor são manifestações muito raras e econômicas em relação aos inumeráveis estímulos que uma célula ou um órgão exerce sobre outra célula ou outro órgão.

Essa é a fase da modéstia da consciência. Por fim, entendemos o eu consciente só como um instrumento a serviço daquele intelecto mais elevado e supervisor: e então podemos perguntar se todo querer consciente, todos os fins conscientes, todas as apreciações de valor não seriam talvez apenas meios com os quais deve ser alcançado algo essencialmente diverso do que aparece no interior da consciência. Opinamos: trata-se de nosso prazer e des-prazer — — — mas prazer e desprazer poderíam ser meios pelos quais haveríamos de produzir algo que está fora de nossa consciência — — — Há de mostrar-se quanto todo consciente permanece na superfície: como ação e imagem da ação são diferentes, quão pouco se sabe sobre o que precede uma ação: como são fantasiosos os nossos sentimentos de “liberdade da vontade” e de “causa e efeito”: como pensamentos são somente imagens, e como palavras são somente sinais de pensamentos: a insondabilidade de cada ação: a superficialidade de todo louvar e reprovar: como são essenciais a invenção e a imaginação, dentro das quais vivemos conscientemente, como, em todas as nossas palavras, falamos de invenções (afetos também), e como o liame da humanidade repousa sobre uma transmissão e uma contínua composição dessas invenções: enquanto, no fundo, o real liame (por meio da procriação) segue um curso desconhecido. A crença nas invenções comuns modifica realmente os homens? Ou todos os seres ideais e de apreciação de valor são apenas uma expressão mesma de desconhecidas modificações? Há, pois, realmente vontade, fins, pensamentos, valores? E se toda a vida consciente fosse só uma imagem especular? E se, no fundo, acontecesse algo totalmente diferente, mesmo que a apreciação de valor pareça determinar um homem? Em resumo: (342) se se alcançasse explicar a finalidade na atividade da natureza sem a suposição de um eu que estabelece fins, não podería, talvez, afinal, também o nosso estabelecer fim, o nosso querer etc., ser somente uma linguagem cifrada para algo essencialmente outro, a saber, algo que não-quer e é inconsciente? Somente a finíssima aparência daquela finalidade natural do orgânico, e nada diferente?

(NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Tr. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, §676)