Nietzsche (VP:333): vício e virtude são efeitos, não causas

Hoje, quando todo “o homem deve ser deste e daquele modo” coloca-nos uma pequena ironia nos lábios, quando sustentamos inteiramente que, a despeito de tudo, alguém vem a ser apenas aquilo que é (apesar de tudo quer dizer: educação, instrução, meio, acasos e acidentes), aprendemos a inverter de maneira curiosa, nas coisas da moral, a relação de causa e efeito, — talvez nada nos diferencie mais fundamentalmente dos antigos crentes da moral. Não dizemos mais, por exemplo, que “o vício seja a causa de que um homem também pereça fisiologicamente”; nós tampouco dizemos que “um homem prospere por meio da virtude, que ela leve a viver muito e à felicidade”. Nossa opinião é, antes, a de que vício e virtude não são nenhuma causa, mas apenas consequências. Alguém se torna um homem decente porque é um homem decente: isto é, porque nasceu como um capitalista de bons instintos e de relações prósperas… Chega-se pobre ao mundo, de pais que em tudo apenas dissiparam e não amealharam nada; então se é “incorrigível”, quer dizer, maduro para penitenciárias e manicômios… Hoje, sabemos não pensar mais a degenerescência moral separada da fisiológica: ela é um mero complexo de sintomas da última; (uma pessoa) é necessariamente má, assim como se é necessariamente doente… Ruim: a palavra exprime aqui certas incapacidades que estão ligadas fisiologicamente com o tipo da degenerescência: por exemplo, a debilidade da vontade, a insegurança e a pluralidade da “pessoa”, a impotência de suspender a reação sobre um estímulo qualquer e de “dominar-se”, a não liberdade perante toda espécie de sugestão de uma vontade estranha… Vício é uma delimitação conceitual bastante arbitrária para reunir certas consequências da degeneração fisiológica. Uma sentença universal, como a que o cristianismo ensinava, “o homem é mau”, haveria de ser legítima se fosse legítimo tomar o tipo do degenerado como um tipo normal do homem. Mas isso talvez seja um exagero. Decerto a sentença tem uma legitimidade ali onde justamente o cristianismo prospera e está por cima: pois, com isso, está comprovado um solo mórbido, um campo para a degenerescência.

(Excerto de NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Tr. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, p. 183-184)