Nietzsche (VP:281) – eticidade

Quando nos fazemos prescrições e nos interditamos certas ações a partir do instinto comunitário, então nós vedamos, se há nisso razão, não uma modalidade de “ser”, não uma “mentalidade”, mas antes apenas uma certa direção e aplicação útil desse “ser”, dessa “mentalidade”. Mas então vem, pelo seu lado, o ideólogo da virtude, o moralista, e diz: “Deus vê o coração! Que importa que vos abstenhais de determinadas ações: nem por isso sois melhores!” Resposta: meu nobre senhor virtuoso e de orelhas compridas, não queremos de forma alguma ser melhores, estamos muito satisfeitos conosco, queremos apenas não nos prejudicar uns aos outros, — e por isso nos vedamos certas ações em uma certa atenção a nós mesmos, enquanto não sabemos honrar o bastante as mesmas ações, na suposição de que elas se refiram ao opositor da coletividade — ao senhor, por exemplo. Educamos nossos filhos tendo em vista essas ações; nós os disciplinamos até tornarem-se adultos… Caso fôssemos daquele radicalismo agradável a Deus, como recomenda a vossa absurdidade sagrada, e fôssemos bastante estúpidos para condenar com aquelas ações a sua fonte, o “coração”, a “mentalidade”, isso significaria então condenar a nossa existência e, com ela, a sua mais alta pressuposição -uma mentalidade, um coração, uma paixão que nós honramos com as supremas honras. Por meio de nossos decretos, evitamos que essa mentalidade se parta de modo inoportuno e busque caminhos para si, — somos inteligentes quando damos tais leis para nós mesmos, e, com isso, também somos éticos… Não desconfiais, ao menos de longe, que sacrifício isso nos custa, quanta domesticação, autossuperação, dureza contra nós mesmos se fazem necessárias para isso? Somos veementes em nossos apetites, há instantes em que nos devoraríamos a nós mesmos… Mas a “solidariedade” impera sobre nós: notem, todavia, que isso é quase uma definição da eticidade.

(NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Tr. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, p. 163)